Por Isabel Lustosa
Curiosamente, as músicas que Nássara fez com os parceiros mais célebres não fizeram o menor sucesso: Ari Barroso (Garota colossal), Lamartine Babo (Cadência) e Noel Rosa (Retiro da Saudade), todas interpretadas pelo famosíssimo Chico Alves. Retiro da saudade foi apelidada de “marcha urbanística” porque era também o nome de um loteamento situado às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. A música, cantada por Carmen Miranda e Francisco Alves, numa das únicas duas vezes que gravaram juntos, teve um destino misterioso: a matriz com a gravação desapareceu e Nássara não conhece uma só antologia, um só historiador da MPB que tenha registrado sua existência. A parceria com Noel surgiu de um encontro casual no Ponto Chic, lá em Vila Isabel.
“Noel mostra-lhe o estribilho de uma música em que está trabalhando: Quando por amor suspiro / A saudade vem então / Encontrar o seu retiro (encontrar o seu retiro) / Dentro do meu coração. (…) A marcha é construída a quatro mãos, trechos de melodia de um e de outro. A mesma coisa em relação à letra. Nássara não resiste a fazer, num de seus versos, um trocadinho urbanístico: “Arranjei um trocadilho / Pra cantar como estribilho: / Teu retiro dá… saudade”. (DIDER e MÁXIMO, p. 219/220)
Sempre que falava de Noel Rosa, Nássara ressaltava que o Noel, naquele tempo, não tinha esse prestígio todo que depois veio a ter. Em meio a toda aquela irresponsabilidade boêmia em que eles todos viviam em Vila Isabel, não dava para avaliar todo o seu talento. Nássara diz que só se admirava da espantosa facilidade com que ele fazia música, fazia versos, tocava e cantava. No tempo do Noel, lembra ele, o próprio João de Barro fazia mais sucesso.
“O Lamartine, então, nem se fala: o Lamartine era uma espécie de proprietário do sucesso. Modéstia à parte, até eu fazia mais sucesso, também o Assis Valente, o Ari. Apesar de todo o imenso valor do Noel, foi de Orestes, que não era de explorar cadáver, que partiu a consagração popular, com a ideia de se fazer um busto em homenagem ao Noel.”
Mas Nássara teve outra composição, esta sem parceiro, gravada em 1934, pela então já célebre Carmen Miranda acompanhada pelos Diabos do Céu. Chamou-se “Tome mais um chopp” e pode ser considerada uma espécie de instantâneo do Nice, com o seu chope, seu café e seu bife malpassado, ambiente que Mário Lago tão bem descreveu em seu livro “Na rolança do tempo”. Nássara tinha cadeira cativa lá.
“Já vai? Tão cedo?… Tome mais um chope… / Com você ausente ninguém vai ficar contente / O ambiente num instante vai mudar… / Tome mais um chope, vê se come mais um bife / Que ainda é cedo pra você se retirar / Meu amor, por favor não vá s’imbora / Espere ao menos que desponte a autora (bis) / Com você lá fora todo o mundo logo chora / E lhe imploro pelo menos pra voltar. / Tome mais um chope, vê se come mais um bife / Que ainda é cedo pra você se retirar.”
Naqueles tempos, também já se fazia música com o objetivo descarado de cavar uma grana. Em 1933, diz o Nássara, “a gente estava numa miséria safada, sem um níquel, Orestes muito apertado com um filho nascendo. Então, fiz um samba com o Orestes para tomar um dinheiro do coitado do Álvarus, que era o chefe da publicidade da Caixa”. A música seria do Nássara e os versos seriam escritos pelos dois. O estribilho dizia: “Você quer roubar o meu sossego / me vendo morrer no emprego / pra depois pode gozar / essa vida é muito cômica / mas eu não sou Caixa Econômica que dá juros a ganhar.” Orests botou outro verso: “Você diz que eu sou moleque, / porque não vou trabalhar, / eu não sou livro de cheque / para você ir descontar. / E você vive tranquila, / sempre fazendo chiquê, / mora na primeira fila, / me fazendo de guichê… / Você quer comprar o seu sossego…” Depois dos versos de Orestes, vinha outro verso do Nássara, que dizia: “Meu avô morreu na luta / e meu pai, pobre coitado / e, pra falar com justiça,/ eu declaro aos empregados / ser em mim esta preguiça / herança de antepassado.”
Nássara fez a música para ser cantada pelo Luís Barbosa, que, como sempre, encheu de bossas a interpretação. O samba da Caixa, gravado por João Petra de Barros e Luís Barbosa, com o selo da RCA Victor, foi, junto com “Seu Libório”, o primeiro sucesso de Luís Barbosa. “Caixa Econômica” agradou tanto que o Álvaro mandou pagar 25 contos: “Aí, eu dividi: uma parte para mim, uma para o Orestes, outra para o Luís Barbosa, outra para o Custódio Mesquita, que estava no piano e foi quem fez o acompanhamento, e outra para o João Petra de Barros.”
Foi no tempo em que trabalhava na Crítica, jornal de que falaremos a seguir, que Nássara conheceu Orestes Barbosa. Orestes era muito mais velho do que ele, pois estreara na imprensa em 1907, como revisor no jornal O Século, dirigido por Rui Barbosa. Possuía uma capacidade incrível de imitar vozes tiques e atitudes pessoais e adorava teatralizar nos papos, a maneira de falar do Conselheiro Rui Barbosa, que admirava, contrastando-a com a de um tal Póvoa do Lameirão (famoso diretor de teatro português do começo do século). Outra das suas grandes imitações era a do jurista Evaristo de Morais. Orestes frequentava o Tribunal do Júri como repórter e vira a atuação de Evaristo, a quem considerava uma das maiores vocações de advogado que jamais conhecera.
Orestes reproduzia com perfeição a voz do velho Evaristo, sua postura na tribuna do Júri, seus gestos largos na direção dos jurados, até mesmo o hábito de falar cofiando os espessos bigodes, típico em Evaristo – tudo numa encenação que, frequentemente, adquiria mais vida e calor que o desempenho real do advogado no Tribunal. E resumia: “Como advogado, o velho Evaristo seria um sucesso até mesmo no Afeganistão.”
A partir do jornal do Rui, teve início a longa carreira jornalística de Orestes, que passou pelo Diário de Notícias, O Imparcial, A folha, Crítica, A Manhã, A Gazeta e A Notícia. Precursor do radiojornalismo, por volta de 1925, num tempo em que só existiam três rádios no Rio de Janeiro, Rádio Sociedade, Rádio Clube do Brasil e Rádio Mayrink Veiga, ele foi um dos primeiros a manter uma coluna radiofônica no jornal A Manhã. No tempo em que Nássara o conheceu, ele fazia uma seção sobre a Câmara Municipal. Apesar da diferença de idade ficaram logo muito amigos.
Em 1933, ele e Nássara foram parceiros numa marchinha: “As lavadeiras”, que o próprio Orestes gravou pela Columbia. Foi mais ou menos nessa época que Orestes fundou a Jornada, jornal que durou seis meses e que tinha como epígrafe “Não quero saber quem descobriu o Brasil; quero saber quem é que bota água no leite”. A resposta para as duas perguntas era a mesma: o português, alvo do jacobinismo meio atrasado que Orestes herdara de alguns intelectuais do fim do século (Raul Pompéia. Artur Azevedo etc.)
“Éramos, nessa época, estudantes e, naturalmente, ao jornal de Orestes todos se dirigiam para pleitear e expor seis anseios. Orestes e Mário Cordeiro eram os diretores, Nássara, o caricaturista e paginador que emprestava, ao rapidamente vitorioso jornal, o seu atraente aspecto. Mário Martins, os irmãos Maurício e Carlos de Lacerda, Pandiá Pires, Rafael de Holanda, Celso Figueiredo e os mais brilhantes jornalistas de então largaram sólidas posições em jornais estabilizados para colaborarem com Orestes e Mário Cordeiro. Havia um ambiente de agitação nas salas e corredores do jornal. Mário Martins com um incipiente cavanhaque, já naquela época deblaterava com o jornalista Carlos de Lacerda.” (OZON, p. 17.)
Conta o Nássara que Noel Rosa compôs o samba “Não tem tradução” (1933) sob a influência do discurso antilusitano do Orestes. Os dois, Orestes e Noel, foram, aliás, naquele mesmo ano, parceiros no samba “Positivismo”, gravado pelo próprio Noel na Columbia. Orestes, o poeta de “Chão de estrelas”, foi parceiro também de Custódio Mesquita, Nonô, Noel Rosa, Francisco Alves, Wilson Batista. Mas seu parceiro mais constante foi também seu melhor intérprete: Sílvio Caldas.
Exemplar do antilusitanismo furioso do Orestes é uma história que me contou Ademar Casé. Uma vez, Casé trouxe ao seu programa Manoel Monteiro, famoso fadista português. Orestes Barbosa era um dos redatores e sua antipatia pelos nossos colonizadores já era então bem conhecida pela colônia que também não o tolerava. Orestes ia para o estúdio e ficava lá atrás conversando com o Júlio Barata. Diz o Casé que o português começou a cantar mas ficou de olho no fundo do estúdio onde estava o Orestes. De repente, cismou que o Orestes estava falando mal dele gritou: “Eu não canto mais!” E desistiu de cantar com o programa no ar. Me disse Ademar Casé que o Orestes deu um pulo pra cima do português, com um punhal na mão. “Por pouco…”, dizia o Casé. “Então, quando eu procurei o Manoel Monteiro, não sei se ele foi pela escada ou… eu sei que não o encontrei mais.”
Em 1965, um velho amigo de Orestes, J. Ozon, organizou um livro em homenagem ao poeta e compositor que, dois anos antes de morrer, vivia recolhido com a família na ilha de Paquetá. Um elenco composto pelos nomes mais representativos do jornalismo, da música popular, da literatura, expressou sua admiração ao poeta, ao longo das mais de 300 páginas do livro “Chão de estrelas”. E Nássara está ali, através de um texto em homenagem, mas, principalmente, com uma adorável sequência de caricaturas de Orestes e da boa-vida que estaria levando em Paquetá. Bem no espírito do bom malandro que sempre foi o Nássara, os desenhos idealizavam o dolce far niente do amigo, pescando na praia à sombra dos coqueiros…
“Orestes era um sujeito formidável, engraçadíssimo e tinha uma facilidade espantosa para fazer letras. Era um poeta mesmo. Uma das primeiras que ele fez foi aquela Flor do asfalto: “Deixou-me a flor do asfalto abandonado…” Aquelas letras, a meu ver, marcam uma época muito valiosa da música popular. Continuo achando Orestes Barbosa um monstro como letrista. O Orestes ficava até tarde na Cinelândia e, depois, ia para o cassino jogar até de madrugada… Não era bom você ser inimigo dele: o Orestes era um pouco indelicado, ele era muito perverso. Mas era um camarada formidável, também.”
No citado livro de J. Ozon, Nilo Bruzzi escreveu uma página que intitulou “O crime de Orestes Barbosa” onde o descreve como um sujeito desabusado, meio brigão, que usava faca na cava do colete e bengala de junco e, quando necessário, metia o porrete nos outros. A coisa era contraste para os seus versos delicadíssimos. O crime do Orestes que Nilo Bruzzi conta tem a ver com isto. Uma fã, apaixonada pelos seus versos, convidou-o sem o conhecer para um chá. Orestes, qye era bastante sem jeito para essas coisas, aceitou. Tudo normal até que a moça se retirou da sala para preparar o chá e, pela porta entreaberta, entrou um cachorrinho que se lançou sobre o Orestes, cravando-lhe os dentes na perna. Ele não deve dúvida, passou a faca no cachorrinho que caiu imediatamente morto e ainda limpou a arma do crime na toalha da mesa diante da família estarrecida, que acorrera aos gemidos do animal moribundo.