Caxuxa Blues

Como um rio, a arte de Rui de Carvalho comanda a vida

Postado por Simão Pessoa

Por Mário Adolfo

Estamos em 1982. O telefone do jornal em que eu trabalhava, A Crítica de Manaus, tocou. Era a minha sogra, Magnólia Pessoa Figueiredo que, com a voz angelical de sempre, me pediu. E pedido da minha sogra, era uma ordem.

– Queria que você fosse buscar um grande amigo nosso que acaba de chegar a Manaus. (na verdade, ele é amigo do Sérgio Figueiredo, meu cunhado), mas como meu filho anda muito ocupado eu pensei em você. E como ele trabalha no Jornal do Brasil, vocês vão se entender muito bem.

– Tá bom, dona Meg. Amanhã é sábado, eu não trabalho. Pode deixar que eu passo lá pela manhã! – concordei.

O JB era o jornal dos sonhos de qualquer aprendiz de jornalista, que nem eu, que acabara de sair do curso de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Naquela época, passar pela redação do JB significava trabalhar ao lado de nada menos que Carlos Drummond de Andrade, Millôr Fernandes, Ziraldo, Zózimo Barroso do Amaral, Chico Caruso, Castello Branco, João Saldanha, Carlinhos de Oliveira e outras feras do jornalismo.

O velho amigo da família estava hospedado em casa de parentes, no bairro de Petrópolis. Entrou no carro abrindo o largo sorriso e me olhando com olhar de peixe morto. Trazia um violão debaixo do braço, o que já me deixou animado.

– Você é o Mário Adolfo, cunhado do Sérgio?

– Sim, e você é o Rui de Carvalho, jornalista do JB?

– Sim. Mas não jornalista. Sou design gráfico. Músico nas horas vagas.

Acelerei o carro. Mas não para casa e sim rumo à praia da Ponta Negra. No caminho passei pra pegar o poeta e escritor anarquista Simão Pessoa que, na época, ainda não era nem poeta e nem escritor, mas já era anarquista. A terceira parada foi para pegar o diagramador Jorge Esteves e seus 120 Kg, que completou a trupe rumo à praia do mais belo e enigmático rio da Amazônia, o Rio Negro.

Lá, sentados na areia e nos encharcando de caipirinha, ouvimos a história do Rui, que trocou a selva de árvores pela selva de pedra. Nasceu em Rondônia, foi criado em Manaus e virou cidadão do mundo no Rio de Janeiro. Naquela manhã de mormaço, escutamos Rui dedilhar suas primeiras canções, no tom de voz grave que lembrava muito João Nogueira.

Sem medo de ser piegas, lembro que meus olhos umedeceram quando ouvi “Já Faz Muito Tempo”, e me vi moleque na matinê do Cine Ypiranga. Como Rui passou a infância em Manaus, viveu as mesmas coisas que nós havíamos vivido na infância: filmes de bang-bang nos cinemas Ypiranga e Guarany, “pulos de rã” na cachoeira do Tarumã e o gosto do primeiro beijo, que também foi de “fruta proibida”.

Ouvindo Rio Madeira, é como se nosso corpo estivesse mergulhando nas águas barrentas em que Rui foi batizado – “tarrafa beira de proa / água tirada de cuia / o rio bordado de peixe/e o gosto de vida pura, ah!…”

Aquele foi um dia que marcou para sempre a história do Rui e a nossa própria história. A identificação foi tamanha que jurei diante do Rio Negro que Rui gravaria aquelas canções. Na hora, eu nem saberia como fazer isso. Mas fizemos.

Em dezembro de 1982, depois de uma peregrinação por órgãos públicos e pé de ouvido com alguns amigos do poder – frente ao que se investe hoje em cultura, o disco do Rui foi uma merreca –, conseguimos parir “Enfieira”, um sofisticado LP com direção musical de Ruy Quaresma e capa pintada em aquarela por Edna Madureira. O disco era tão perfeito que ninguém entendeu (nem nós) como conseguimos tal façanha em época de inflação, arrocho e vacas magras.

Contei essas passagens para dizer que sigo a canoa do Rui de Carvalho, aonde ele navegar, há quase 40 anos. E olha que, com tamanho talento, o cara navega pra caramba. Navega nas águas da música, da arte plástica, da publicidade e do design gráfico. É tanto talento, que eu convencionei batizá-lo, carinhosamente, de “Rui do Caralho!”.

E agora, como se não bastasse tudo isso, Rui nos surpreende mais uma vez mostrando uma outra faceta do seu inesgotável talento: a de escritor, lançando o seu primeiro livro – “Travesso Como É o Tempo”, onde navega desde a sua infância até os dias de hoje, numa trajetória cheia de surpresas.

Em tempo: não é o Rui que navega, quem navega é a vida. E ele vai na correnteza, descobrindo novos portos, enfrentando tempestades, deslizando em calmarias. Às vezes cobro que o destino teria que ser mais justo com a trajetória artística do meu amigo.

Não consigo entender o porquê de uma música como “Enfieira” – onde se ouve os peixes cortando, veloz, o rio e o rebuliço dos jaraquis, piabas e peixes bois agitando as águas – não ter emplacado em uma novela, série ou filme que retrate a vida amazônica. Com certeza o produtor musical não parou para ouvir.

Mas ainda é tempo. Afinal, Rui é como as águas do rio. Segue sempre em frente e, qualquer hora, vai encontrar o mar. Até porque, como ele mesmo cantou, “o rio tem segredos que só conta para o mar”.

Mário Adolfo é jornalista, escritor, compositor, desenhista e cartunista

 

Nota da Redação: Para adquirir o livro do Rui de Carvalho, envie um e-mail para ruidecarvalho2@gmail.com ou escreva para Rua Barão de Mesquita, 510 – Apto. 104 – Tijuca – RJ – CEP 20540-156. WhatsApp: +55 21 98110 9699

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Comentar

  • Sempre fui fã do Mario e gostaria de encontrar algumas obras suas, tenho algumas coisas em comum com esse grande artista, sou da cachoeirinha, compositor e poeta e torço também para o botafogo, coisa que me identifica muito com o Mario Adolfoi, como ele mesmo escreveu eu,sou um rio que está correndo sempre para a frente e que, um dia vai encontrar o mar

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