Folclore Nativo

A história da Ciranda de Tefé

Pássaro Carão, o principal personagem da Ciranda de Tefé
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Quando surgiu em Tefé, por volta de 1890, pelas mãos do mulato pernambucano Antônio Felício, ele próprio mestre cirandeiro e cantador de coco de embolada, a brincadeira era uma curiosa mistura de ciranda tradicional e cordão de bichos.

Os personagens principais eram o Chefe, o Subchefe, o Oficial da Ronda, o Padre, o Sacristão, o Soldado, o Velho, a Velha, o Caçador e o Carão.

No enredo amazônico, o caçador resolve matar o pássaro carão para satisfazer o desejo de comer um ensopado da ave, formulado pela sua enjoada mulher que estava grávida. O carão é um pássaro negro, que vive nas beiras do rio caçando o caramujo uruá e não faz mal a ninguém.

O caçador mata o carão e o casal de velhos, que eram apaixonados pela simpática avezinha, denuncia o crime ao oficial da ronda, que manda o soldado prender o caçador.

O padre e o sacristão são chamados para ouvir a confissão do caçador e, depois de muitas idas e vindas, o carão acaba ressuscitando, por que não estava morto, havia apenas sido ferido de raspão pelo tiro.

As músicas da brincadeira incluíam tanto as toadas tradicionais de ciranda (“Ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a volta e meia / vota e meia vamos dar”) quanto de rodas de coco pernambucano adaptadas para a nossa região (“Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é corredor / vai buscar a minha amada / na santa paz do Senhor / Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é alazão / vai buscar a minha amada / no meio do barracão / Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é singular / vai buscar a minha amada / no seringal do Juá”).

O que fez a ciranda nascida em Tefé se espalhar rapidamente pelas comunidades próximas do município, como Coari, Maripi, Fonte Boa, Amaturá, Javari, Tabatinga, Caiçara, São Matias, Boa Vista e Tocantins, foram as inovações introduzidas na brincadeira por um cidadão chamado Isidoro Gonçalves de Souza.

Nascido no dia 6 de dezembro de 1884, em Nogueira, distrito separado da cidade de Tefé pelo lago de mesmo nome, Isidoro era o terceiro filho do casal Theodolindo Gonçalves de Souza e Theodolinda Araújo e Souza.

Ele aprendeu a falar a língua geral (“nheengatu”) com sua bisavó, uma índia legítima da tribo dos uairiris-surimãs, tendo vertido para esse idioma diversas poesias, contos, fábulas, desafios de violeiros e hinários, incluindo o Hino Nacional brasileiro que foi batizado de Hino Tetamauara.

Isidoro também aprendeu espanhol com a peruana Madalena do Nascimento e Souza, com quem casou em 1922, aos 38 anos de idade.

Dessa união nasceram os filhos Theodolindo Surimã, Luís Ataualpa, José Silvestre, João Bosco, Danilo, Marcelo, Margarida Maria, Macrina, Isidoro Filho, Maria Rosa, Helena Maria e Tarcísio Augusto.

Durante a adolescência, depois que sua família se mudou de Nogueira para Tefé, Isidoro participou como brincante da ciranda de Antônio Felício durante alguns anos.

– Em 1894, quando conheci a pequena cidade de Tefé, verifiquei tratar-se de um verdadeiro e autêntico celeiro de riso e de bonança, nada faltando à sua ingênua e diminuta população, haja vista a fartura de peixes nos rios, de caça nos matos e de aves no céu – contou ele, em depoimento ao seu filho José Silvestre. – A quase totalidade de seus habitantes se dedicava à caça, à pesca, à agricultura e a outros afazeres próprios da região e da época. De índole alegre, o caboclo tefeense, em vez de polcas, modinhas ou valsas, de tão bom gosto presente para as elites, dançava a roda, o lundu, o coco e outras danças parecidas, acompanhadas de viola, violão, violino, sanfona, cavaquinho e bandolim. Dentre as danças de roda, sobressaía a ciranda que, dado o forte antagonismo existente entre os moradores de Tefé e os de Nogueira, pequena povoação à margem esquerda da primeira, acredito tratar-se de uma crítica mordaz aos nogueirenses, todos humildes roceiros, vivendo àquela época em completo estado de primitivismo, possuindo alguns apenas poucos trapos para lhes cobrirem o corpo. Os grupos compunham-se de pares, cujo número não era definido, chegando, no entanto, ao máximo de 20 e, no mínimo de 10. As damas, homens disfarçados de mulheres, vestiam-se como roceiras, trazendo indumentária feita de fazendinhas estampadas, as mais baratas da região, e que se compunha de saia e blusa para elas e de calça curta para os cavalheiros. Compunha-se o grupo de um Chefe e um Subchefe. O primeiro era geralmente um violeiro, sendo esse o único instrumento do cordão. Com o desaparecimento da viola, começou a ser utilizado o violão, hoje complementado por cavaquinho e pandeiro.

Depois de adulto, quando passou a exercer o cargo de professor e diretor do Seminário São José, em Tefé, Isidoro Gonçalves de Souza começou a montar uma nova ciranda, que passou a ser conhecida como “Ciranda de Tefé”, a partir da introdução de novos personagens.

A Constância foi inspirada na quadrilha francesa para homenagear as debutantes tefeenses. O Cupido era uma forma de homenagear os casais de namorados que frequentavam a pracinha da cidade. A Mãe Benta era uma homenagem à baiana Sebastiana, mulher de Antonio Felício, considerada a melhor doceira do município.

Os personagens Galo Bonito, seu Manelinho e seu Honorato foram criados pelos sobrinhos de Isidoro, Odonei e Temístocles Alencar, inspirados em moradores da cidade. Galo Bonito – porque vivia dando em cima das franguinhas locais – era o apelido de Valentim, que se considerava o “Don Juan de Tefé” e, de tão exigente na escolha das parceiras, morreu no caritó.

Seu Manelinho era um regatão que vivia embriagado e gostava de contar proezas inimagináveis sobre as suas viagens pelos rios da Amazônia. Seu Honorato era um famoso rezador da região, que dominava como poucos os segredos das ervas medicinais.

Da ciranda de Antônio Felício, o professor Isidoro Souza manteve os cordões de entrada e de saída, o puxa-roda e o auto do pássaro carão (sendo que agora o pássaro era “ressuscitado” por uma milagrosa “garrafada” de ervas medicinais preparada pelo rezador Honorato), mas deletou o padre e o sacristão (provavelmente para evitar problemas com os padres da Congregação do Espírito Santo, responsáveis pelo Seminário São José, que ele dirigia) e o casal de velhos.

A coreografia, um bailado até certo ponto heterogêneo, utilizava-se de palmas, embaladas pela cadência ritmada de suas canções, a maior parte delas em tom menor.

Os passos da brincadeira eram constituídos de Ciranda (entrada), Cupido, Puxa-Roda (ou Açaí), Constância, Sabiá, Seu Manelinho, Araponga, Mãe Benta, Seu Honorato, Cabeça de Bagre, Guarda de Ronda, Viola Encantada, Galo Bonito, Carão e Ciranda (despedida).

A Ciranda de Tefé desenvolveu a seguinte dinâmica cênica:

O cordão de cirandeiros inicia sua apresentação com a cantoria mais conhecida da brincadeira: Ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a volta e meia / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual largue seu par / boa noite, meu senhores / boa noite, autoridades / todos nós vos desejamos / saúde e felicidade / essas moças já diziam / que a ciranda não saía / a ciranda está na rua / com prazer e alegria / quem quer ficar sempre moço / e nunca mais se acabar / mande às favas os seus bofes / e vem conosco cirandar / senhoras, gentis senhores / nesta nossa cirandada / vos saudamos jubilosos / relevai nossa maçada / ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual pegue seu par.

Os cirandeiros começam a cantar o puxa-roda para apresentar seus principais destaques (Cirandeiro, Cupido, Galo Bonito, Constância, Oficial, Subchefe e Chefe).

Os personagens se apresentam ao público e começam a dançar dentro da roda: Puxa roda, minha gente / que uma noite não é nada / se não dormires agora / dormirás de madrugada / ô vira ainda e torna a virar / revira comigo, ai sou seu amor / olha o Cirandeiro que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Cupido que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Galo Bonito que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha a Constância que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Oficial que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Subchefe que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Chefe que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver.

Os personagens saem de dentro da roda, enquanto o cordão de cirandeiros faz uma série de evoluções. Tem início a apresentação-solo dos personagens.

Os cirandeiros começam a cantar a música da Constância e ela começa a bailar no centro da roda: Constância, tu me juraste / Constância, eu te jurei / no jardim da bela rosa / Constância, eu te namorei / amor tanto do meu gosto / só por morte deixarei! / pretendo escolher a noiva / porque quero, porque quero me casar / ando a roda a escolher a noiva / porque quero me casar / porque quero me casar / eu não te quero, tu nem mereces / só a ti, só a ti hei de querer / só a ti hei de querer.

A Constância sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do Cupido e ele começa a bailar no centro da roda: Cupido quando nasceu / leite doce apeteceu / por isso é o amor tão doce / no coração que nasceu / Cupido montou um bazar / com ares de mercador / vendia mentiras e intrigas / em troca, beijos de amor / fui ao bazar de Cupido / encostei-me num balcão / para ver se me vendia / um mil réis de compaixão / Cupido subiu a serra / de arco e flecha nas mãos / Cupido se divertia / flechando nos corações / Cupido desceu a serra / descaço, pisando em flor / foi dizendo viva, viva / morra quem não tem amor / Cupido foi o meu mestre / ensinou-me ser ladrão / para roubar moreninha / da casa do seu patrão.

O Cupido sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do seu Manelinho e ele começa a bailar no centro da roda: Seu Manelinho quando veio do Pará / Carregadinho de peixinho mapará / ele bebe, ele fica chirrado / cai em baixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou do Pará / Seu Manelinho quando veio de Codajás / Carregadinho de farinha e ananás / ele bebe, ele fica chirrado / cai em baixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Codajás / Seu Manelinho quando veio de Maceió / Carregadinho de muito mocotó / ele bebe, ele fica chirrado / cai em baixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Maceió / Seu Manelinho quando veio de Coari / Carregadinho de pimenta murupi / ele bebe, ele fica chirrado / cai em baixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Coari.

Os versos são repetidos mudando-se apenas a região e a mercadoria: “Do Maranhão, carre-gadinho de muito camarão”, “Do Piauí, carregadinho de farinha suruí”, “De Alagoas, carregadinho de fubá e muita broa”, “De Alenquer, carregadinho de panos de mulher”, “De Salvador, carregadinho de dendê e couve-flor”.

Seu Manelinho sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do seu Honorato e ele começa a bailar no centro da roda: Minha cabeça me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / meu ouvido me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / Minha garganta me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / Meu braço me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói.

Seu Honorato sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do Galo Bonito e ele começa a bailar no centro da roda: Meu Galo Bonito / de pena de arara / tu querias amar, meu ladrão / a bonita Mara / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem / meu Galo Bonito / canta de alegria / tu querias amar, meu ladrão / a doce Luzia / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem / meu Galo Bonito / canta na varanda / tu querias amar, meu ladrão / a bonita Wanda / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem.

Os versos são repetidos, fazendo a rima com algumas damas: “Crista em matelete, tu querias amar, meu ladrão, a doce Gorete”, “Crista de pepira, tu querias amar, meu ladrão, a bela Jacira”, “Cantador do morro, tu querias amar, meu ladrão, a linda Socorro”.

O Galo Bonito sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música da Mãe Benta e ela começa a bailar no centro da roda: Mãe Benta, fiai-me um bolo / não posso, senhor tenente / os bolos são de Iaiá / não foram feitos pra muita gente / ananás nasceu na serra / bananeira de pendão / do homem nasce a firmeza / da mulher, a ingratidão / quem tiver o seu amor / durma na porta da rua / da pedra faz travesseiro / do sereno, cobertor / ninguém se fia em mulher / mesmo estando ela dormindo / os olhos estão fechados / as pestanas estão bulindo / vamos dar a despedida / como deu a saracura / essas moças estão dizendo / mal de amor nunca tem cura.

A Mãe Benta sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do carão e ele começa a bailar no centro da roda até a chegada do caçador: Já vem chegando o verão / para a morte do carão / ai, ai, ai, para a morte do carão / carão é um pássaro preto / comedor de uruá / ai, ai, ai, / comedor de uruá /para comer uruá / por cima do matupá / ai, ai, ai / por cima do matupá / dona senhora, me diga / com que se engorda o carão? / ai, ai, ai, / com que se engorda o carão? / ai, ai, ai / azeite de coco verde / gordura de camarão / ai, ai, ai, gordura de camarão / cadê meu atirador / pra atirar neste carão? / ai, ai, ai, / pra atirar neste carão / já morreu nosso carão / já morreu nosso carão / ai, ai, ai, / já morreu nosso carão.

O pássaro é morto pelo caçador e depois de muito puxa-encolhe acaba sendo ressuscitado pelo seu Honorato (em algumas cirandas, o carão simplesmente desaparece de cena).

Depois que o pássaro ressuscita (ou simplesmente é morto e desaparece), os cirandeiros começam a cantar a música de despedida: Adeus, prados, adeus, bosques / adeus, moço sonhador / adeus, povo da cidade / e também do interior / a ciranda se despede / com a maior satisfação / dando vivas a Santo Antônio / a São Pedro e a São João / ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual pegue seu par.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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