Por Simão Pessoa
O escritor paulista Mário de Andrade se tornou bastante conhecido por sua obra poético-literária e sua contribuição ao conhecimento do folclore, sobretudo no que diz respeito à música e à dança.
É famoso o seu livro “Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter”, uma história que ele recria sobre os episódios da mitologia dos índios taulipang e arecunás, da fronteira Brasil-Venezuela, publicados pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg.
Foi também um dos participantes do evento marcante para a literatura e as artes brasileiras, a Semana da Arte Moderna de 1922.
Em 1927, Mário de Andrade fez uma viagem à Amazônia com intenções etnográficas, para observar e colher manifestações folclóricas.
Apesar de ter combinado a viagem com vários amigos, percebeu na hora de embarcar no navio “Pedro I”, no porto do Rio de Janeiro, que a maioria tinha desistido e que seria acompanhado apenas por três mulheres: Olivia Guedes Penteado, da alta sociedade paulista e mecenas dos modernistas, Margarida Guedes Nogueira, sobrinha dela, e Dulce do Amaral Pinto, filha da artista Tarsila do Amaral.
Mário de Andrade relata sua viagem no livro “O Turista Aprendiz”, que foi publicado após a morte do autor.
A parte do livro de mais interesse para esta compilação é o trajeto pelo Solimões e alto Amazonas, de Manaus a Nanay (no Peru), ida e volta, de 8 de junho de 1927 a 2 de julho do mesmo ano.
Não se trata de um diário de verdade. Embora as datas sejam reais e muito do que narra também, Mário de Andrade toma a liberdade de introduzir acontecimentos fictícios.
Assim, o texto “A tribo dos Pacaás Novos”, introduzido logo após a saída de Manaus, é pura fantasia. Outros, sobre os índios Do-Mi-Sol, são assumidamente fictícios.
O discurso que um índio uitoto fez ao autor em Nanay, justificando porque não lhe vendia um punhado de coca, também é imaginário. Mas há muitas coisas reais e curiosas.
Ele viu uma brincadeira – a ciranda – num lugar chamado Caiçara, que deve ser hoje Alvarães, na época apenas um pequeno distrito de Tefé.
O texto que publicou sobre a brincadeira no Diário Nacional, de São Paulo, de 8 de dezembro de 1927, está no final do volume:
Dentre as nossas festas populares, reisados, bois-bumbás, congos, maracatus, uma das menos conhecidas é a ciranda. No Norte do Brasil inda ela se realiza em alguns lugares e tive ocasião de assistir a uma em Caiçara – pouco além da cidadezinha de Tefé, no Solimões.
Era de noite e o gaiola parara para carregar lenha e como o serviço ia durar muitas horas, os rapazes de bordo decidiram dar um passeio de montaria. Fomos. Já tínhamos remado uns vinte minutos quando se desenharam na margem esquerda do igarapé uns vultos de casas. Abicamos para descansar e por um caminho trilhado fomos dar num lugarejo com umas trinta casas.
Havia iluminação por toda a parte e gente na rua. Então nos contaram que o lugar se chamava Caiçara e a animação era por causa da ciranda que se ia realizar. Andamos um pouco mais e topamos com o bando de festeiros.
Dois a dois, rapaz e moça, eles marcham num bamboleio saltitado que nem o passo de marcha dos cordões cariocas, cantando em coro uníssono a ciranda-cirandinha. Não se amolaram conosco apesar do farrancho extravagante que formávamos entre aquela gente pobríssima, nós vestidos de exploradores, pullovers, luvas, chapéus coloniais.
Seguiram até mais animados, berrando, religiosamente compenetrados, dirigidos por um tapuio bancando padre. A vestimenta é berrante e gostosa de se ver. Chapéus inspirados nos cocares indígenas, cheios de penas de arara, flores de papel e naturais; blusas e calções de cores claras, rosa, encarnado, amarelo, verde, as mesmas cores cruas com que Tarsila abrasileirou tão sabiamente os quadros dela.
Quando o cordão chegou na casa, dum sírio negociante de caucho, a ciranda principiou. O reisado não tem muita originalidade dramática não, inspira-se na dança de roda infantil e no bumba meu boi. Os figurantes, em roda, cantam e saracoteiam, esboçando um enredo vago sem continuidade.
Uma orquestrinha de violões e cavaquinhos acompanha as cantorias, ritmadas com força pela assistência batendo palmas. Um ou dois cantores solistas, fazendo mais ou menos o papel do Histórico dos oratórios clássicos, puxam os cantos, enquanto outros figurantes solistas representam dentro da roda o que o Histórico vai contando.
O enredo é uma barafunda, não possui o nexo e a legitimidade dramática do boi-bumbá. O padre, que é a figura principal, faz de elemento cômico da dança. Indaga dos amores das coristas; casa namorados; distribui comunhão numa paródia regional curiosíssima em que se queixa da fome dos comungantes imaginando que a hóstia é pedaço de pirarucu.
Para acabar vem a morte e salvamento dum animal como no bumba meu boi. Só que o boi, de pouca frequência no meio daquela gente ictiófaga, é substituído pelo carão. Essa a parte mais viva da festa. Um caçador persegue o pássaro representado por um rapaz bem enfeitado no meio da roda.
O caçador está de fora e forceja para dar um tiro no carão enquanto o coro com idas e vindas em bate-pé procura impedir o tiro. Afinal o carão morre, mas é ressuscitado pelo padre que bota a estola na cabeça do cadáver. E todos fazem a festa juntos e a ciranda acaba.
Afinal essa trapalhada dramática não passa duma brincadeira de crianças a que gente adulta mais primitiva deu uma função interessada mais característica e perceptível, macaqueando o amor, a religião, a caça e os animais tabus.
Nem a dança vale de nada, monótona, sem originalidade, primitiva, muito parecida com as danças indígenas que Martius e Léry descreveram. O que vale mesmo é a música.
Pude pegar dois temas interessantes. O lamento coral sobre a morte do carão é belíssimo e por uma coincidência espantosa lembra fortemente os cantos populares escandinavos. É quase que unicamente composto de deformações rítmicas de elementos melódicos do norte europeu.
Possuo duas cantigas suecas, Om Dagenvid mitt arbete e Sven i Rosengard, que juntas apresentam todos os elementos melódicos do canto que escutei entre gente absolutamente desviajada e isolada no deserto Solimões.
Se a semelhança da nossa melódica com a russa já é coisa assentada e não espanta mais, confesso que essa coincidência entre música tapuia e sueca me deixou atarantado. Porque os elementos melódicos originais são verdadeiras sínteses étnicas e parece inconcebível que a tapuiada caiçarense tenha concebido certos movimentos sonoros que são normas nacionais de nórdicos europeus.
Nota: A ciranda-cirandinha é cantada como entremeio no bumba meu boi, do Rio Grande do Norte, segundo indicação que acabo de receber.