Por Mouzar Benedito
Andei pensando na origem e na “capacidade de transformação” de nossos mitos. Não no Saci, que já escrevi dezenas de vezes sobre sua origem indígena, o ganho da cor, a perda da perna e a aquisição do gorrinho vermelho.
Primeiro, o Mapinguari, mito pouco conhecido em outras regiões, mas presente e temido na Amazônia, principalmente nos seringais do Acre e do Amazonas. Segundo alguns linguistas, o nome dele é de origem aruak, mas Câmara Cascudo diz que pode ser tupi, seria uma contração de mbaé-pi-guari, “coisa do pé torto”. Só que ele não tem nada a ver com pé torto. E sua origem, podemos dizer, tem algo a ver com a pré-história.
Cientistas brasileiros e estrangeiros procuram fósseis dele na região. Era uma preguiça gigante, com mais de três metros de altura, em outros tempos não tão antigos quanto o dos dinossauros. No imaginário popular dos moradores da floresta, principalmente seringueiros, o Mapinguari não é de outras eras, é atual.
Ele é peludo, tem um bocarrão vertical na barriga e anda pela mata dando urros medonhos. Quando encontra seringueiro trabalhando em domingo ou dia santo, come a cabeça dele, e larga o resto do corpo sangrando. Então, além de tudo, ele é anticapitalista e católico! Respeita domingos e dias santos.
Por falar em católico, tem também – no outro extremo do Brasil, o Rio Grande do Sul – outro mito de origem católica, o Negrinho do Pastoreio, que era órfão e foi criado por um fazendeiro mau que tinha um filho igualmente malvado. Judiavam do Negrinho, que nem nome tinha. Castigado com uma surra de chicote pelo fazendeiro por ter deixado escapar um cavalo, ele teve que reencontrar o animal, mas o filho do fazendeiro o soltou para que o pai castigasse o Negrinho de novo.
O Negrinho levou nova surra e foi colocado sangrando num formigueiro, para ser comido vivo pelas formigas. Mas quando o fazendeiro foi ver, dias depois, o resultado desse castigo, encontrou o Negrinho são e salvo, com a pele luzindo, ao lado de Nossa Senhora, protetora do menino. E o cavalo perdido, ao lado deles. O menino montou no cavalo e saiu a galope, e até hoje quando alguém perde alguma coisa reza para o Negrinho do Pastoreio e pede que encontre o objeto perdido.
Um mito mais moderno é a Perna Cabeluda, em Recife e Olinda. Ela é o contrário do Saci. Tem só uma perna, falta o resto do corpo. E é uma perna danada, braba, que dá belas surras de chutes em algumas pessoas. Quando cercada pela polícia, ela dá um arroto alto e fedido, some e reaparece noutro lugar. Tudo começou com um guarda noturno que chegou em casa de manhã, um pouco mais cedo que de costume, deitou-se ao lado da mulher e sentiu que tinha alguma coisa debaixo da cama. Olhou e viu só uma perna cabeluda…
Tem também as transformações: a Iara, na origem, não era mulher, chamava-se Ipupiara, era o Senhor das Águas. Com a chegada dos europeus, o ser que dominava as águas foi comparado com as sereias europeias e virou mulher.
Tem ainda as diferenças do mesmo mito conforme a região, e mitos muito parecidos, com nomes diferentes em outras. Por exemplo: o Caipora, protetor dos animais da mata, em certas regiões do Nordeste é mulher, a Caipora, por sinal muito namoradeira e ciumenta. Namora homens e, quando é traída, bate bastante no sujeito.
Já o Curupira, protetor das matas, é confundido com o Caipora em vários lugares. E o Pé-de-garrafa na região do cerrado se parece muito com os dois, no sentido de castigar quem entra na mata para matar animais sem necessidade, mas tem uma perna só, com um pé redondo, que justifica o seu nome.
Bom, e quem vê todos esses seres? Olha, com certeza quem vive isolado tem mais chances. Parece que os mitos não gostam de aparecer para multidões. Lembro-me de uma história contada pelo grande escritor Simão Pessoa, em Manaus. Um amigo dele, viajando de barco, parou numa cabana na beira do rio, onde morava um velho sozinho, sem nenhum vizinho em muitos quilômetros, e perguntou ao velho:
– Como é, tem visto muito Saci por aqui?
O velho respondeu:
– Saci, até que tem aparecido bastante. O que tá em falta é Mapinguari.