Folclore Nativo

O sumiço do garrote Luz de Guerra

Mestre Maranhão e o garrote Luz de Guerra, que parecia um boi bumbá
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Fundador do bumbá Corre Campo, Mestre Tó era taifeiro de motor de linha e, ainda nos anos 40, envolveu-se em uma briga dentro de uma embarcação. Ele foi esfaqueado nas tripas, sobreviveu milagrosamente, mas o ferimento deixou sequelas. Mestre Tó passou a sofrer de “intestino preso” e, de vez em quando, precisava ser internado na Beneficente Portuguesa para ser medicado. Seu fiel escudeiro nesses momentos de agonia era seu primo Eduardo, que muitos anos depois fundaria o bumbá Gitano.

Excessivamente apegado ao bumbá que fundara, Mestre Tó nunca permitiu outra pessoa, além dele próprio, de colocar o boi na rua. Por esse motivo, toda vez que sua saúde estava periclitante o Corre Campo não saía do curral. Isso aconteceu nos anos de 1964, 1966, 1967, 1968 e 1969, quando Mestre Tó faleceu. A partir de 1970, o Corre Campo passou a ser comandado por Mestre Miro, irmão de Mestre Tó.

O fato é que mesmo estando doente Mestre Tó sempre reunia os brincantes no dia 1º de maio (data de fundação do Corre Campo), explicava por que o bumbá não iria sair naquele ano e liberava a moçada para brincar nos demais bumbás existentes na cidade. Muito deles, como os amos Zé Preto e Clóvis, iam para o bumbá Caprichoso, da Praça 14. Outros iam para o bumbá Pai do Campo, da Matinha. E também havia aqueles que preferiam o bumbá Tira Prosa, de Santa Luzia.

Em junho de 1969, Chico Biela, um dos principais miolos da famosa fugida do Corre Campo, resolveu brincar no garrote Luz de Guerra. Para quem não se lembra mais da presepada, a fugida do boi acontecia um dia antes da matança, que encerrava a brincadeira anual. Nessas ocasiões era utilizado um boi genérico, um pouco mais pesado que o boi original. Para fugir dos vaqueiros eram necessários de quatro a cinco miolos, que se revezavam na correria pelas ruas, becos, quintais e igarapés do bairro.

O boi fugia do curral na tarde de sábado e precisava ser recapturado, por meio de laçada, até à tarde de domingo. Era um verdadeiro pega-pra-capar porque o boi podia avançar em cima dos vaqueiros e derruba-los com cabeçadas, coices e pernadas. Os vaqueiros, entretanto, só podiam parar o boi se conseguissem laça-lo. Para segurar Chico Biela, por exemplo, era preciso a laçada de três vaqueiros. Menos do que isso, ele ia embora, porque possuía uma força descomunal.

Naquele ano, o garrote Luz de Guerra foi convidado para fazer uma apresentação especial no terreiro do Sr. Anacleto Benevides, um próspero comerciante do bairro de São Raimundo. Apesar de ser um garrote, o Luz de Guerra era quase do tamanho do bumbá Corre Campo, com o detalhe de ser armado em madeira de lei (açacu, cedro e pau de ferro), que pesa que nem a moléstia.

O simpático Mestre Maranhão, dono do garrote, convocou os brincantes para uma reunião no curral do Luz de Guerra, na Cohab-AM do Parque Dez, e contou a novidade. Todos vibraram. Mas aí veio a parte ruim da brincadeira: como o “cachê” era um pouco magro, eles teriam de ir a pé do curral até o local da apresentação “como nos velhos tempos”. Todos concordaram.

Por volta das 15h do dia da apresentação, um sábado, os brincantes devidamente fantasiados se reuniram no curral, puxaram algumas toadas de aquecimento e iniciaram a procissão. Quando conseguiram atravessar o Conjunto Eldorado e atingir a Av. João Alfredo (atual Djalma Batista), o miolo Chico Biela já estava com um palmo de língua pra fora. Sim, porque carregar uma armação de 50 quilos nas costas sob um sol de rachar concreto não é para qualquer um.

Da Av. João Alfredo, a procissão pegou a Av. João Valério, atravessou o bairro do Vieiralves e saiu na Av. Constantino Nery. O miolo Chico Biela já estava mais suado do que pai-de-santo. Começaram a surgir as primeiras bolhas d’água nos seus pés, acondicionados dentro de um surrado tênis Bamba e, ainda por cima, sem meião.

– Ainda falta muito? – ele gemeu para o Amo do Boi, enquanto parava para descansar um pouco.

– Não, não, estamos quase chegando! – devolveu o sujeito.

Encurvado pelo peso do garrote, tendo como única paisagem seus próprios pés caminhando no asfalto, Chico Biela recomeçou a penosa caminhada.

Quando alcançaram a Estrada de São Raimundo, umas três horas depois do início da procissão no Parque Dez, Chico Biela já havia se transformado em um zumbi. Só continuava caminhando com a cara e a coragem. Os demais brincantes animadíssimos, já haviam se distanciado mais de 50 metros. Ele era o último da fila.

No meio da ponte de São Raimundo, Chico Biela parou para descansar mais uma vez. O cortejo continuou na mesma pisada, não dando a mínima para o infeliz retardatário. Ele então saiu da armação do boi, reuniu as últimas forças que lhe restavam, passou um lenço no rosto empapado de suor e gritou a pleno pulmões para o chefe da tropa, que estava a uns 50 metros de distância:

– Êi, Mestre Maranhão, pra mim chega que eu não tenho a mãe na zona! Pegue esse seu garrote de merda e enfie no rodiscley!

Dito isso, Chico Biela pegou o Luiz de Guerra no asfalto, levantou sobre a própria cabeça e jogou o boizinho dentro do igarapé de São Raimundo. Aí, meteu o pé na carreira, em direção ao Boulevard Amazonas.

Mestre Maranhão ficou em estado de choque. Vaqueiros, índios, Pai Francisco, Mãe Catirina, Cazumbá e vários componentes da batucada ainda entraram no igarapé para tentar resgatar o Luz de Guerra, mas a escuridão reinante e a forte correnteza se encarregaram de fazer o boizinho desaparecer de vez e ir morar para sempre no reino dos encantados. A apresentação foi cancelada. O miolo Chico Biela tomou rumo incerto e não sabido e nunca mais foi visto. Dizem que ele foi morto por Mestre Maranhão seis meses depois. Há controvérsias.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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