Por Ed Lincon Barros da Silva
É noite de sexta-feira, 31 de agosto de 1984. O local é o prédio construído em 1907 em estilo mourisco localizado na av. Floriano Peixoto n° 54, esquina com a Sete de Setembro, onde funciona o cinema mais antigo de Manaus ainda em atividade, o Guarany. Em sua tela, dois filmes em exibição: Moças Sem Véu, das 21 às 22 horas e A Ilha dos Mil Prazeres, das 22 às 23 horas. É a última sessão dupla deste cinema, que nesta noite encerra as suas atividades cinematográficas exibindo filmes de sexo explícito, predominantes nos últimos tempos.
Durante toda a semana, a Empresa Bernardino, arrendatária do prédio do Cine Guarany, publicou nos jornais da cidade o seguinte aviso: “A Ilha dos Mil Prazeres será o último filme deste cinema que funcionará até 6° feira. Aos distintos espectadores que frequentam esta casa de espetáculo muito obrigado. Empresa de Cinemas Bernardino Ltda”.
Há alguns meses, em entrevista aos jornais locais, Adriano Bernardino Filho, que há anos explora o cinema, disse que o prédio pertence aos herdeiros de J. G. Araújo, que não quiseram mais renovar o contrato de arrendamento, preferindo vende-lo para o Banco Itaú de São Paulo que construirá no lugar um prédio moderno para abrigar mais uma de suas agências.
Na platéia do cinema não mais que 15 pessoas assistem a sessão de encerramento. No corredor central andando nervoso de um lado para o outro, está o seu gerente Antonio Pereira da Cunha, 53 anos, conhecido pelos frequentadores como “Português”. O seu nervosismo é devido ao fechamento do cinema: “Hoje é o fim dele!”, repete várias vezes agitando as mãos e questionando os repórteres de um matutino local. “O que nós podemos fazer? Esse é o único cinema em Manaus ‘popular com todo mundo’ apesar da falta de conforto. Todo mundo entra aqui como quer, de bermuda, sandália”. Na terça-feira, 28 de agosto, em plena praça Heliodoro Balbi ou popularmente da Polícia, um grupo de 35 frequentadores do Guarany fizeram um protesto tardio contra o seu fechamento.
Na bilheteria, D. Ana Rocha Leão, uma das primeiras mulheres a ser admitida pela Empresa A. Bernardino onde trabalha há mais de 12 anos, vendeu o último ingresso de n° 676927453, a um antigo frequentador assíduo do Guarany que preferiu permanecer no anonimato. As galerias cujos ingressos eram mais baratos estão vazias. Na tela o filme chega ao fim, acendem-se as luzes e, os últimos e poucos espectadores saem da sala de espetáculos em silêncio.
Na cabine de projeção, após desligar um dos gigantescos projetores à carvão, está José Soares Sobrinho, funcionário da Empresa Bernardino desde 1976 e no Guarany onde trabalha desde 1981, mexe na “Enroladeira”, que como o próprio nome diz é a máquina que enrola ou rebobina o filme para a sua próxima exibição que infelizmente não vai mais acontecer. José Soares, e mais quatro funcionários irão trabalhar em outro cinema da empresa.
Chorando, Antonio Pereira ocupando a gerência do cinema desde a morte em agosto de 1969 de Vasco José de Faria (o querido e popular vovô Vasco da criançada pobre de Manaus), com um martelo e um formão, dá início a desmontagem das cadeiras da platéia. Lá fora, um caminhão as espera para levá-las ao depósito em que foi transformado o prédio do ex-cine Ipiranga, localizado na praça General Carneiro no bairro da Cachoeirinha e também vendido pela A. Bernardino (atualmente funciona no local uma loja de eletrodomésticos da TV Lar).
Alguns ex-frequentadores entram no prédio à procura de coisas raras: cartazes, fotos, pedaços de celuloides etc. Outros pedem permissão para levar algumas das cadeiras da platéia para casa. Todos querem guardar consigo uma lembrança do velho cinema. A tela que outrora exibira grandes filmes está vazia e em silêncio. O que se ouve apenas é o barulho dos carros que passam pela rua.
Entretanto, o último e triste filme do Cine Guarany, ainda não havia sido exibido: o da sua destruição total. E ele não tardou a chegar. O local onde várias gerações costumavam se divertir, principalmente nas tardes de domingo iria virar ruínas.
Na esquina da av. Getúlio Vargas com a Sete de Setembro, seu rival e vizinho, o prédio do ex-cine Teatro Politeama (1912-1973), depois de alguns anos funcionando como loja de eletrodomésticos, seria reformado para transformar-se também em agência bancária. As sereias da fachada do Politeama testemunham silenciosas, a queda do companheiro de muitos anos e ficam quietas para também não serem notadas e destruídas.
O progresso é implacável com as coisas antigas da cidade. O engenheiro responsável pela demolição do Guarany, disse em tom de deboche que o prédio era feio e que não valia a pena ser restaurado porque estava caindo aos pedaços.
No dia 23 de setembro, quando a demolição do Cine Guarany começa pra valer e com a poeira tomando conta do local, já é possível vislumbrar pedaços de madeira entulhadas de um lado, as telhas de barro português que antes recobriam o teto amontoadas do outro, algumas estão empilhadas na escada de ferro rusticamente trabalhada, onde muitas vezes nas festas de aniversário do Guarany, a criançada subia fazendo tremenda algazarra.
Em outro canto, um monte de latas contendo filmes de todos os gêneros: bang-bang, seriados, paixões de Cristo, entre outras, encontram-se espalhadas pelo chão, não servindo mais para projeção, nem como entretenimento. Os operários responsáveis pela demolição são impiedosos e implacáveis, e com suas marretas e picaretas destroem tudo o que vêem pela frente. Alguns fotógrafos registram em suas máquinas os últimos momentos do Guarany, cuja agonia dentro de poucos dias chegaria ao fim, como de fato chegou.
No dia 8 de outubro de 1984, depois de 77 anos de existência, o que restava do prédio do Julieta, do Alcazar e do Guarany era um amontoado de entulhos removidos pelos tratores. Não havia mais nada a fazer. A última sessão do Cinema Guarany chegara ao fim.
Hoje, neste ano de 2007, se ainda estivesse existindo, estaria completando 100 anos. Evoé, Guarany!