Por Thiago de Mello
G da segunda guerra mundial
A respeito da qual já contei o interesse da cidade em ouvir as notícias do que ocorria no “front” através dos alto-falantes públicos e nas poucas casas que dispunham de rádio, o mais famoso deles o rádio “Scott”, instalado na residência de Mr. Brown, na Vila Municipal.
Mas cabe uma notícia sobre a inevitável divisão ideológica da juventude ocasionada pelo conflito mundial. Uma parte aliou-se ao integralismo, aos camisas-verdes da época, e apoiava francamente o fascismo. Outra corrente, anti-nazista, se ramificava em vários integrais. Como também se afirmava, sem destemor, um pensamento de esquerda, à frente do qual se distinguia Aldo Moraes.
G do Galo Carijó,
que não era o Galo Carijó ainda. Era a casa da esquina da Pedro Botelho com a dos Andradas, onde a minha querida e velhinha dona Ana tinha a sua quitanda com bananas e jerimuns, vizinha à casa de número 100, onde morou minha família até os começos dos 50, e moraram também antes de nós os Menezes. Dona Ana já era viúva, mãe do Plácido, do Paulo e do Alfredo, que hoje leva, com a ajuda do filho Alfredinho, o restaurante onde se come o melhor peixe frito de Manaus: tucunaré, pacu, acará-açu, embora a especialidade da casa seja o jaraqui, servido com o tucupi, a pimenta murupi, a farinha do Arini e o baião-de-dois, com toucinho de porco.
Estou promovendo o restaurante do Alfredo, autêntica tasca portuguesa? Estou, sim senhor. Dever de companheiro de infância. A virtude maior do Galo Carijó, ao qual faço questão de honra de levar todos os amigos (que, de tantas partes deste mundo, sempre chegam a Barreirinha e aos quais sempre trago de retorno a Manaus) para provar o peixe especial da casa, era, faz menos de um ano, ostentar na parede o distintivo verde da Sunab que o qualificava com uma enorme letra D, quer dizer, sofrível.
Era uma garantia dos seus encantos, fascínio dos seus fregueses, a maioria operários, seduzidos pelo tempero e perícias das cozinheiras caboclas. Faz menos de um mês o Galo ganhou letra B, depois de caiadas as paredes de imenso pé direito. Já avisei ao Alfredo que devemos fazer o possível para rebaixá-lo, quero dizer, enriquecê-lo, com pelo menos um C.
H do Hércula,
como eu tinha a alegria de chama-lo, crescendo no timbre da voz, que ele reconhecia sempre e logo se erguia para o abraço e o beijo na face, toda vez que de surpresa, de chegada a Manaus, eu ia a seu encontro na redação do jornal em que exercia, com paixão e sabedoria, as funções de secretário, que no jornalismo moderno é chamado de editor. Nunca fiz jornalismo em Manaus. Mas frequentava todas as manhãs a redação da Gazeta (ao tempo do Avelino Pereira e do Arthur Virgílio), vespertino de curta duração do qual o Hércula foi secretário, e principalmente todas as noites a redação de A Crítica, que ele secretariou por vários anos, e onde o Calderaro me tinha uma mesa cativa, onde eu redigia as crônicas para O Globo, do Rio, jornal em que eu colaborava na época.
A redação de A Crítica, que em 49 reapareceu para se firmar de vez, ainda com a presença ativa do velho Calderaro pai, funcionava nos fundos de um grande galpão elevado, ao qual se tinha acesso por uma escada de muitos degraus de madeira e era protegida por uma grade que o Ulisses de Azevedo comparava ao tombadilho de um navio.
Herculano Castro e Costa, cuja casa generosa tanto frequentei e cujo diálogo era uma festa para o espírito, era casado com minha amiga Bebé e pai da hoje prestigiada jornalista Baby, que lhe herdou a vocação. Um dos melhores amigos que a vida já me deu. Formou toda uma geração de jornalistas. De dois deles quero deixar aqui o testemunho sobre a figura maior da imprensa amazonense.
O primeiro é de Arlindo Porto, cria de Herculano e um dos nomes maiores do nosso jornalismo atual: “Mal entrei no Ginásio, em 41, logo me iniciei no jornalismo. Na época era o Jornal do Comércio, dos Associados, o de maior importância, ao lado do O Jornal, da empresa Archer Pinto. Herculano era o secretário. Comecei como revisor, função em que só fiquei duas semanas. Passei a repórter de polícia, que era por onde se começava de fato a carreira; depois fui para a reportagem geral e afinal cheguei a redator, quer dizer, jornalista mesmo.
Tudo que aprendi no jornalismo devo ao Herculano. Naquele tempo tudo girava em torno do secretário-de-redação. Nenhuma matéria saía sem o visto dele. Impunha certos pontos de vista pessoais aos donos do jornal. A dedicação ao jornalismo era a sua alma. Conhecia profundamente a sociedade onde vivia, sabia a vida de todo mundo. Era extremamente bem-informado, atualizado, lia muito. Autodidata com suficiência sobre qualquer matéria. Tudo isso ao lado da boêmia, à qual sabia se dar com gosto e capricho, sem fazer dano a ninguém. Foi mestre de uma geração de jornalistas: Miranda Braga, Júlio Cesar da Costa, Guilherme Gadelha, Ulisses Azevedo, Benedito Azevedo, Frânio Lima, Armando Menezes.”
Pois é justamente do Armando o outro testemunho que quero trazer:
– Comecei a trabalhar com o Herculano no Jornal do Comércio, ao tempo em que eu era presidente, reeleito, da União Estadual dos Estudantes. Quero começar dizendo que ao Herculano devo muito do que sei em geral e do meu saber escrever, do meu aligeiramento redacional. Tinha havido uma debandada no JC, o Herculano aceitou assumir a secretaria do jornal, quando eu já era acadêmico de Direito. Recebi um recado dele pelo meu irmão mais velho, o Aderson, que eu fosse lá ao jornal. Cheguei à redação com o Erasmo Alfaia, que também foi dos primeiros a compor a nova turma do Herculano, que nos recebeu sem rodeios: “Bem, vocês querem me ajudar. Pois bem. Então vocês vão ser focas. Podem começar, saiam, vão buscar notícias para o jornal. Se não as encontrarem, não precisam voltar”. Homem da maior qualidade jornalística nesta terra. Não fez curso superior. Mas era intelectualmente muito bem formado. Não conheci ninguém com a capacidade de Herculano de conseguir estar sempre bem informado a respeito de tudo. Era generoso. Trabalhava na perna, escrevendo sempre à mão. Fazia de tudo: da composição da oficina ao editorial. Te falo dos anos 48 aos 50. Herculano corrigia tudo. Era ele quem promovia o foca a repórter, sem que este nem imaginasse, nem pretendesse. Porque só trabalhar com o Herculano, conviver com ele, já bastava. Um dia fiz uma entrevista, por ordem dele, com uma viúva de um soldado da segunda guerra mundial. Entreguei a matéria, como de costume, para que o Herculano a revisasse, e fui-me embora. No dia seguinte abri o jornal e lá encontrei a reportagem, de página inteira, e levei um susto de alegria quando vi o meu nome impresso no jornal pela primeira vez: “Reportagem de Armando de Menezes”. Herculano dava ao jovem a oportunidade rigorosa da aprendizagem da redação. Foi sem dúvida o maior jornalista que já tivemos na nossa cidade.
I dos ingleses e europeus do meu tempo,
que já eram os da segunda leva. Por mais que bem se dessem com a gente da terra (que de algum modo acabou fazendo a cabeça de muito inglês), formavam um grupo à parte. Ou por dificuldades de idioma, talvez por exigências culturais comuns. Tinham os seus lugares, os seus clubes de campo, como o Bosque dos Ingleses. Eram exportadores, engenheiros, técnicos.
Os mais conhecidos eram o Kirk, Edward Kirk, canadense, da Manaus Tramways, que se casou com uma moça de Manaus de origem maranhense e adquiriu aquele casarão com jeito de fortaleza que ainda erguida se encontra ali na Sete de Setembro, pouco depois do Palácio Rio Negro. Dos dois irmãos Turner, só um deles, o Long, mantinha vida social e frequentava os clubes. O outro era retraído, morava afastado numa casa nas cercanias da Praça 14 (onde hoje funciona a Codeama), com motor de luz própria, dedicando-se à criação de cavalos.
O Taylor, diretor da Manaus Tramways era tão entrosado na vida da cidade quanto o Mr. Brown, que veio da Inglaterra para trabalhar com a casa exportadora Amazon Hevea e depois se passou para a empresa do J.G.
O jovial George Brown – que se casou com amazonense, Teles de Menezes, e cuja maior virtude nos parecia ser o pai da linda e morena ginasiana Grace, sua filha única, jogadora de tênis e três anos seguidos campeã das corridas de bicicleta que então se disputavam em Manaus – cultivava o gosto de reunir os amigos em almoços domingueiros na bela casa da rua Teresina, na Vila Municipal, adquirida a um médico da colônia inglesa, o famoso dr. Thomas, um canadense que fez do jardim da residência um verdadeiro bosque com árvores de todo o Brasil e da América Latina, jardim sempre bem cuidado, ao tempo dos Brown, pelo jardineiro japonês Nakadima.
Casa frequentada pelo Silvino Santos, o famoso e pioneiro cineasta, a quem Mr. Brown aproximou dos membros da expedição Rice, interessada na descoberta das nascentes do Rio Branco e de minérios, dirigida pelo presidente da Sociedade de Geografia de Nova York, Hamilton Rice, que confiou a Silvino a documentação dos trabalhos da expedição.
I de Ildefonso Pinheiro.
Confesso a emoção saudável com que escrevo o nome desse cidadão, cuja vida penetrou a alma da cidade sem memória. Não perco a oportunidade de revelar aqui a influência que seu Ildefonso exerceu em minha vida, durante o período, acho que de ano e meio, durante o qual, para ajudar nas finanças caseiras, que andavam magras, passei a frequentar o curso noturno no Ginásio e trabalhar, durante o dia, no escritório do seu Amazonino Aguiar, que era o despachante da SNAPP.
Bem ao lado, ali na Marechal Deodoro, ficava a leitaria “Café Tropical”, do seu Ildefonso, na qual diariamente eu merendava um sanduíche de pernil, preparado por ele, com um refresco de coco, que era uma das especialidades da casa. Nunca me cobrou um tostão pela merenda, muito saborosa, mas não tanto quanto a conversa que ele mantinha comigo, sentado à mesma mesa, enquanto eu me alimentava. Me falava muito de literatura, recitava de memória sonetos de Camões e me relatava as façanhas do Antonio Conselheiro, e me sugeriu que anotasse, em caderno especial, só para mim, as coisas importantes que acontecessem em minha existência provinciana. Na véspera de minha viagem para o Rio, fui abraça-lo de despedida: além do sanduíche e o refresco, ganhei de presente os dois volumes de “Os Maias”, do Eça.
Seu Ildefonso, homem bondoso, era, por índole, um empreendedor. Construiu um edifício na rua dos Barés, do qual doou um apartamento para a Santa Casa, outro para a Casa Fajardo. Dedicou-se depois ao ramo das ferragens, cuja casa é levada atualmente pelos herdeiros, após o fim melancólico e ainda um tanto sombrio da morte do avô.