Por Thiago de Mello
Já esclareci, de começo, que esta crônica provinciana foi feita para os de casa, com o intuito de dar alguma ajuda à perdida memória da cidade. Agora, ao começar a redigir os verbetes das ruas, quero prevenir que os escrevo especialmente para os antigos moradores da José Paranaguá, da rua Isabel, da Quintino Bocayuva, da Dr. Almino e da Lima Bacury. Em alguns momentos, não passam de um rol de nomes. Pena que não seja um rol completo. Mas quem quiser vir passear conosco, pode vir, que nada tem a perder.
Este abecedário já se encontrava em composição gráfica, quando me chega aqui à floresta, captada pela estaçãozinha de rádio-amador da nossa casa, a voz de um companheiro de infância a quem eu não revejo há mais de trinta anos: Amarilio Pinto. Das camadas mais antigas de sua memória, ele me envia, pelos caminhos mágicos do espaço, pedaços do tempo que juntos repartimos nas salas de aula e no pátio de recreio do Grupo Escolar José Paranaguá, onde lecionava sua mãe, dona Maria Rosaura de Souza Pinto, toda uma vida dedicada ao magistério.
Escuto na sua voz, de bonito timbre musical, os nomes do Bianor Garcia, do Chico Trigueiro, do Oswaldo Said e do Clovis Bacury, colegas queridos. E fico sabendo que o Mauro, o nome todo dele era Mauro Brito Inglês, o pintor de quem já falei, pois o Mauro morreu afogado numa travessia do igarapé dos Educandos, ele que de todos nós era quem melhor nadava. Amarilio morava na rua Dr. Almino, e, já aluno do Ginásio, passava a maior parte de suas férias viajando os rios do Amazonas acompanhando o pai, o comandante fluvial Almerindo Pinto, que teve em suas mãos o leme de famosos navios da época, o Madeira-Mamoré, o Júpiter, o Envira.
Aqui na equina da Dr. Almino, lado esquerdo de quem sobe, está a taverna do seu Marciano e ainda está o próprio seu Marciano de nossa infância. Um dos raríssimos taverneiros da época que não era português (na esquina do lado direito ficava a taverna do seu Coelho e dona Maria, que já chegaram casados de Portugal), seu Marciano me oferece uma cadeira na calçada e me conta:
“Meu nome é Marciano Leão. Nasci no dia 5 de junho de 1903 no rio Tapajós, num lugar chamado Cachoeira dos Feixes. Vou fazer oitenta anos. Cheguei a Manaus sozinho, em 1923. Vim de aventura, de bolso vazio. Eu gostava de trabalhar. Vim no Júpiter, um gaiola que fazia a linha Belém-Manaus. Desembarquei com mil e seiscentos réis.”
“Só achei logo foi trabalho de rua. Na municipalidade. Trabalhei um mês e tal limpando rua. Depois consegui um lugar no Yara Bar, ali bem ao lado da Alfândega, quase em frente à mercearia Cosmopolita e da Casa Guerra, elas estão demolidas. No Yara eu fui ser moedor de cana e sorveteiro. Toda quarta-feira chegavam quatrocentas canas, no sábado não havia mais nenhuma. Quem vendia a cana era um Severino pernambucano que tinha uma plantação lá no Careiro e trazia para venda no Mercado. A garapa custava duzentos réis o copo, possa garantir que era das melhores do tempo. O Yara Bar vendia também café com leite, cerveja, guaraná, refrescos e sorvete. O dono era o Gaspar, um espanhol. Com ele eu trabalhei seis meses. Depois fui trabalhar na Fábrica de Bebidas do Máximo Rodrigues; ali se fabricava guaraná e se importava uma cerveja do Rio de Janeiro, a Rio Branco. Fiquei pouco tempo.”
“Em 26 o meu pai morreu em Santarém. E como eu já sabia fazer sorvete, comprei uma sorveteira, daquelas de botar na cabeça. Nela mesma a gente fazia e a gente vendia, saía na rua com ela. No centro dela era um tambor de cinco litros, de metal, ajustado num eixo e ligado a uma manivela. Ao redor do tambor a gente enchia de gelo e de sal e rodava, rodava a manivela até o refresco ir endurecendo, quer dizer, virar sorvete”.
Interrompo delicadamente o seu Marciano para lhe dizer que eu já sabia como era, desde menino aprendi, quando minha mãe, tal e qual o taverneiro, fazia sorvete para vender, lá na Quintino Bocayuva, e muita manivela eu rodei para ajudar dona Maria. Mas seu Marciano mal me ouve e continua a contar. Faz ele muito bem, que a sua história vale a pena:
“Então mandei buscar os meus irmãos. Foram morar comigo, aqui na Rocha dos Santos. Eu era novo e solteiro, tinha só 23 anos. Todos os meus irmãos foram vender sorvete. Era sorvete de creme de leite, de maracujá, de açaí, de tudo quanto era fruta. Eu aprendi a fazer sorvetes finos lá no Yara Bar, até de creme de chocolate, hoje chamam de Nescau, é engraçado como eles mudam o nome verdadeiro das coisas. O sorvete na rua custava um tostão, era só o menino chamar e a gente arriava a sorveteria da cabeça e descansava a rodilha.
Naquele tempo a gente fazia uma sorveteria por quatro mil réis. Abacaxi cada um desse tamanho, agora não tem desse tamanho não, custava só trezentos réis um, dos grandões. Dois abacaxis daqueles davam para fazer oito litros de garapa, mas garapa bem-feita, de respeito ao freguês. Um quilo de açúcar era trezentos réis, porque naquele tempo, estou falando é da Manaus que eu conheço, naquele tempo o preço de um produto era o preço merecido, ninguém queria enriquecer enganando os outros no preço. Uma pedra de gelo de 50 quilos era 250 réis. Uma pedra dava para fazer duas sorveterias. O geleiro espanhol vinha vender o Gelo Cristal, ele e um irmão dele.”
“Foi em 1927, 27 de novembro de 1927, que eu vim aqui para esta esquina da Zé Paranaguá com a Dr. Almino, onde vivo até hoje. Cheguei aqui e ainda trabalhei um ano em sorvete. O sorvete dava. E deu para eu abrir uma quitanda pequena. Vendia frutas, muita banana eu vendia. Aluguei a porta do Paulo Correia Araujo, era uma firma. O cacho de banana dos bonitos custava trezentos réis. Um cento de laranja era uma mixaria de quinhentos réis, coisa boa. Eu comprava ali no Mercado. Consegui uma canoinha e ia todo dia nela bem cedinho comprar as frutas pra quitanda lá no Mercado, na praia. A gente comprava dos roceiros mesmo, que vinham de canoa lá do Careiro, no remo remando, uns pegavam reboque. Eu acho que do Careiro vinha era de tudo, e vendedor e comprador ficavam era contentes.”
“Os meus irmãos ficavam no sorvete. Eu é que ia sozinho cuidar da quitanda. Trazia na canoa, atracava ali na beira do igarapé, na baixa da Quintino Bocayuva, e subia com a frutas na cabeça. Depois a quitanda virou taverna. Comecei a vender primeiro farinha, que eu comprava dos canoeiros da beira. Depois foi feijão, foi arroz, tudo era barato naquele tempo.”
“Eu conto que quando botei a taverna não estava casado, só casei em 35. De 27 a 35 fiquei com a taverna sozinho e solteiro. Já fiquei morando aqui ao lado da taverna desde o primeiro dia de alugado. Casei foi depois, a taverna dava mais que a sorveteira.”
Quando o conheci – digo a seu Marciano – você já era casado, me lembro bem da dona Nair, ela era muito bonita, muito branca. Eu tomava garapa aqui no balcão, de tardinha, quando eu vinha de volta da cidade, trazendo o meu avô que era cego, eu era o guia dele.
– Eu me lembro muito do seu pai, continua o velho taverneiro, ele morava lá perto da beira, trabalhava nas Águas. Eu conhecia todo mundo dessas bandas, eu me dava bem com todos. Aqui na Dr. Almino a principal era a Messody com o pai dela, o seu José Henrique com os filhos, as filhas eram muito bonitas. Mas a principal era a Messody, ela fazia flores e fazia os cabelos das senhoras e das moças, a casa vivia sempre cheia, o nome da mãe dela era dona Idalina, ela comprava aqui na taverna, mandava os meninos.
– De que outros moradores daquele tempo você se lembra?
– Acho que de todos. O professor Abilio Alencar morava aqui na rua, ali perto do Princesa Isabel. Outro professor morava ali naquela esquina da Zé Paranaguá, era o dr. Monteirinho, Monteiro de Souza, depois ele foi o Governador do Estado, hoje é aquele muro velho que o senhor está vendo, lá dentro não tem mais nada, ele faleceu, os filhos venderam a casa. Os filhos eram instruídos, tinha uma filha moça, a Zilá, e dois ou três rapazes, um deles tocava piano, era o João, tocava como um maestro, eu ficava aqui na calçada só escutando. Aí um dia a filha veio do Nordeste, mas isso já foi bem depois, acho que foi da Bahia ou de Pernambuco, e vendeu a casa por 600 mil cruzeiros, casa de taipa, mas era espaçosa e bonita e o terreno era muito grande. O pai dela vinha sempre comprar, era educado. Ele gostava de caioé. Sabe o que é caioé? É assim, parece um inajazinho, um coquinho de palmeira. Ele me encomendava e eu comprava lá na praia, dos caboclos. É tipo um coquinho, eu não conhecia aquilo, perguntei para o que era, ele me disse é para fazer vinho, caboclo velho: boto num canto e quando amolece eu faço o vinho, com água e açúcar, é bom porque tem força. Isso faz um bocado de ano, depois ele foi o Governo, mas sempre me pedia o caioé.
Tinha o seu Abdon Said, relembra Marciano apertando os olhos em cujo fundo arde uma luz sossegada. O velho Abdon morreu, já faz tempo. A senhora dele também, a dona Raimunda. Agora tem os filhos que ficaram. Aí parece que só mora um, o Raimundinho Said, que é advogado, professor e doutor, mas para mim ele é aquele menino. O Oswaldo é médico, mora lá naquela rua que vai para o São Raimundo, naqueles bangalôs. O Amim mora lá para a Joaquim Nabuco, me disseram que é um casarão, por aí. A Zila faleceu não faz tempo, ela era muito bonita. Tinha a Adelaide, que também casou e foi para Belém, nunca mais ela veio aqui, acho que não. Muitas gentes se acabaram.
Pergunto como é que se leva agora a vida ali naquelas ruas. O velho taverneiro pela primeira vez demora para responder:
– Hoje o pessoal já não liga uns aos outros. Naquele tempo não havia nem esse orgulhozinho besta, nem essa pressa danada. Naquele tempo tudo era amigo. Tanto quem tinha dinheiro como quem não tinha conversava com a gente. Eu nem sei porque o senhor está aqui conversando comigo como se tivesse tempo para perder comigo aqui me perguntando. Eu trabalhava aqui na quitanda, ficava só conhecendo, conhecia todo o pessoal que morava e que passava. Esse Raimundinho Said, por exemplo, era um pirralho, mandaram ele acho que foi para São Paulo, para aprender, para se empregar. O pai queria era educar, formar os filhos. O Oswaldo é que era o maiorzinho. Tinha também aquele que morreu, o Muraid. Deu para beber depois que ficou vivendo lá no interior, coitado, foi ele o filho que teve que cuidar das terras que o velho deixou lá no interior. Morreu, não houve santo que desse jeito. A senhora dele parece que mora aí pra cima, os filhos eu acho que não estão aqui, estão em Brasília.
– E os seus filhos, Marciano?
– Casei e tive oito filhos, todos amazonenses: três homens e cinco mulheres. Estão todos formados, tem uns casados e outros solteiros. O primeiro é advogado e professor da Faculdade, dr. Moisés Nobre Leão. O segundo é o Jeter, é professor de inglês, sabe muito falar em inglês e tem quatro anos de Faculdade. O terceiro trabalhava na Base, não se formou, mas se formou em piloto de avião. Isso os três. As mulheres, tem a Miriam, que está aqui em Manaus, ela é química de um negócio aí, me esquece o nome do lugar, é ali pro Coroado, é o Inpas, Inpa, ela tem três casinhas, uma em que mora, outra que a filha se casou e ganhou dela, a outra ela comprou lá perto daquele lugar que eu falei. Eu também comprei esta casa, desde lá do canto da rua até aqui esta parede. Tem a taverna e tem esta parte onde ou moro. Comprei barato, 140 mil. Faz um bocado de ano que eu já comprei, está me faltando a idéia, acho que foi 61, 62. Mas eu ia contar era outra coisa, a gente fica é esquecido. Sim, as outras filhas. Tem mais quatro fora. Uma em Belém, casada com um advogado, Jorge de Melo. Tem outra em Pernambuco, essa o marido não é advogado, essa tem sete filhos, quatro homens e três mulheres, as filhas já estão até formadas, tem uma que está noiva de um advogado. Agora, as duas mais novas estão em São Paulo, a Sulamita e a Bete. A Sulamita é enfermeira. Eu digo, eu não sei nada. Eu não sei nada. Mas eu digo: eu trabalhei com aquele pensamento. Eu achava feio o sujeito não saber nem falar, como eu.
– Qual o quê, Marciano! Você fala é bem demais. A vida fica clarinha, na sua boca.
– Sei não. Mas eu dizia comigo aquele meu pensamento: meus filhos eu vou caprichar, quero ver eles todos educados. Graças a Deus. Ninguém se queixa de mim, ninguém vem pedir um tostão de mim, porque todos têm, todos ganham. Só com um é que foi diferente, ele está aqui, faz pouco ano. Veio de Belém. Chegou aqui, fiquei com pena dele, não trazia nada, só um jornal debaixo do braço. Aí eu botei ele na taverna, já estava muito sortida quando ele chegou. Pois foi o fim da taverna, que já não é mais aquela. Deu, vendeu fiado, não me ouviu, como se não gostasse de mim, que todo o mal que fiz foi botar ele na taverna, aqui na casa, porque eu sentia que aqui foi botar ele na taverna, aqui na casa, porque eu sentia que aqui era também a casa dele meu filho, eu não sabia que ele era diferente, acho que tem espírito maligno que persegue ele, mas eu só quero o bem dele, Deus que tome conta.
– Mas a taverna agora é dele?
– Não, eu não passei, não vendi a taverna. O que eu fiz foi dar, dadinha pra ele. Trabalha, rapaz, aqui é uma beleza de ponto. Pois jogou tudo fora. Agora não tem parente meu nenhum aqui na taverna, está alugada. Mas me escute, o seu nome parece que é o mesmo nome do seu pai, não é? Me lembro do seu pai, dele e do seu Pedro Marques, ali embaixo, eles moravam como quase em frente. A sua mãe me cumprimentava sempre quando passava na calçada, mesmo quando era na calçada defronte, como vai o senhor, seu Marciano, ela dizia, dessas coisas assim eu não me esqueço. Ainda ontem passou por aqui a Lulu, a filha do finado seu Pedro Marques, ainda mora lá na mesma casa, só que agora ela está já com a cabeça quase branca. Eu conheci tudo daqui, até do outro lado dos Educandos, gente que vinha de catraia. Sei tudo como era a vida lá dentro das casas todas da rua, eu sabia um pouco pelo jeito dos grandes, sabia mais era pelas coisas que as crianças diziam quando vinham comprar na taverna.