Memória Viva

ABCedário íntimo para uso público (final)

Postado por Simão Pessoa

Por Thiago de Mello

V da vinda de Getúlio Vargas a Manaus em 1940,

em pleno Estado Novo. Os alunos de todos os colégios, primários e secundários, fomos obrigados a desfilar em seu louvor. Tudo como ainda acontece atualmente nas visitas presidenciais às capitais do país. Com a diferença de que aqui foi uma oportunidade a mais para que o Bombalá brilhasse e a Manaos Tramways cedesse gratuitamente um bonde para levar os ginasianos de passeio pelos arrabaldes de Manaus.

Da visita, que durou o tempo necessário aos discursos e banquetes (Getúlio revelou depois que adorou a tartarugada) um episódio nunca mais me saiu da memória. Tínhamos na cidade um poeta popular, o Ferreira Sobrinho, bom versejador em décimas, que caprichara numa louvação ao ditador visitante e ocorreu-lhe, por ingênuo ou pode ser que por vaidoso, ler publicamente, perante o presidente, os versos que compusera em sua honra dando ensejo a que também o povo as escutasse.

Arrebatado pelo infalível êxito que, na sua opinião, alcançaria o seu projeto, aproximou-se afoitamente do automóvel sem capota que vagarosamente conduzia Getúlio Vargas e iniciou o gesto de subir a plataforma do veículo, na qual se encontrava, enorme e enchapelado, vigilante da segurança do seu chefe e protetor, precisamente o temível e poderoso chefe de sua guarda pessoal: o negro Gregório Fortunato.

A cena passou-se em brevíssimos segundos: Gregório agarrou com as duas mãos o poeta Ferreira Sobrinho pela cintura, ergueu-o no ar (enquanto o vento sacudia as páginas cheias das décimas de louvor) e lançou-o, literalmente lançou-o, por sobre a cabeça da massa que se comprimia para ver de perto o pai dos brasileiros, no meio dos quais o poeta popular desabou.

Vicente Telles dominava como poucas as virtudes, as leis e os segredos deste idioma tão bonito que herdamos de nossos colonizadores: o português, que um poeta em noite mal inspirada chamou de “a última flor do Lácio”. Não importa. Vicente Telles tratava simplesmente de cumprir bem o seu ofício de professor do idioma, sem se meter jamais em polêmicas, que tanto fascinaram o João Leda, que fazia questão de mostrar seus amplos e minuciosos conhecimentos em artigos de jornais e livros que hoje ninguém consegue ler.

Corre ainda hoje a lembrança de um episódio ocorrido durante um exame oral na Escola Normal. Tratava-se da análise léxica de uma frase, na qual havia um “que”. O professor quis saber qual a categoria gramatical da palavra na oração.

– É verbo, respondeu a aluna.
– Então conjugue.
– Eu aqui, tu ali, ele acolá.
– E no plural?
– O verbo não tem plural, é defeituoso.

Z da Zona de Manaus, a antiga.

Não tinha a fama nem o prestígio da atual. E era genuinamente cabocla, embora em seus tempos dourados esbanjasse matéria-prima importada de vários países da Europa. É verdade que nunca chegou a ser de atração nacional, como a de agora. Mas era indiscutivelmente mais franca. Aberta a quem chegasse, não fazia acepção de pessoas: desde que fossem masculinas, donas de muita disposição e de um mínimo de capital. Era a zona das mulheres. De mulheres da vida, se dizia. Ou de mulheres que faziam a vida, expressão que sempre achei cheia de sortilégio. Havia quem chamasse, nariz orgulhoso e torcido, a zona da prostituição, as ruas das raparigas.

Moça de família, os pais não permitiam que passasse pelos quarteirões daquelas ruas onde se exercia a mais antiga profissão do planeta, nas casas do meretrício. Perdão, do baixo meretrício, era assim que diziam, porventura a indicar a existência de um meretrício mais alto, quer dizer, mais caro mais escondido. Ou talvez se tratasse de referência saudosa ao tempo das francesas de vestidos longos e decotados da Pensão Floreaux, na rua Epaminondas, ou das que chegavam elegantíssimas e perfumadas, já madrugada alta, acompanhadas de cavalheiros de casaca, para uma ceia com champanhe no Bar Alemão ali na Marechal Deodoro à época do esplendor da borracha.

Para o povo a Zona era mesmo e simplesmente a zona, tout court, sem adjetivos. Ficava bem no centro da cidade, fraternalmente concentrada em trechos de quarteirões de ruas importantes. O eixo era a Saldanha Marinho: a mesma rua que abrigava moradias sóbrias e moradores austeros, abria-se para a vida alegre das pensões a partir da rua Joaquim Sarmento e só ia terminar lá na rua da Instalação, nos procuradíssimos bordeizinhos do último quarteirão enladeirado. Da Saldanha Marinho a Zona ganhava asas para as transversais Joaquim Sarmento e Lobo D’Almada, um pouco para o lado da Sete de Setembro, outro pouco para as bandas da 24 de Maio. Casinhas de alvenaria colonial, soalhos de madeira que cantavam.

Mal a tarde começava a cair, a Zona, qual mulher sadia que desperta e dengosa se espreguiça, dava começo aos seus macios movimentos, com a chegada dos primeiros frequentadores a flanar pelas esquinas e das primeiras caboclas, cabelos ainda molhados, ao parapeito das janelas. Só quando era já noite mesmo é que, até então mal-entreabertas, escancaravam-se as portas ou as meia-portas, sobre as quais não faltava a famosa lanterna vermelha, em cujo brilho vagamente ardia um tição de tristeza.

O canto da Instalação com a Saldanha Marinho não marcava, porém, o limite da Zona, que a atravessava para alcançar outras ruas boêmias: a Itamaracá, a Frei José dos Inocentes. Por toda a década de quarenta a Zona teve como lugar principal de bebida e de baile o Cabaré, sábio e delicioso nome que o povo encontrou para substituir o Hotel Cassina, que no mesmo e bonito prédio funcionou até o fim da nossa belle époque, frequentado só por gente de finas libras esterlinas, não importava se oriundas das algibeiras coronéis de barranco.

Ninguém pode negar que por todos aqueles anos quarenta a pensão da Lola, na Saldanha Marinho, era a melhor de todas as casas da Zona. É juízo unânime dos bons frequentadores daquelas ruas. A numerosos deles agora consultei, e de todos a Lola teve o voto, ao qual, com iniludível pena, não pude juntar o meu. Para que mentir? A verdade é que, naquelas noites, apenas estive perto, nunca tive acesso à boca de urna.

Era italiana, de sobrenome Ferdi. Alguma vez a contemplei descendo a Avenida: era elegante, alta, muito digna de leque abanando o rosto claro. Cuidava com esmero de suas moças, vigiava-lhes o asseio e a saúde. De índole romântica, sabia de cor o seu Dante, atirava de relance para a sua mesa, com abajur de centro, sempre bem concorrida, uma estrofe de Petrarca.

Em contradição, ou talvez por coerência, a nenhuma das moças permitia histórias inventadas, choramingas, a justificar o passo mal dado que lhes abrira o caminho para a vida “Não me venham com histórias. Estão aqui porque querem, estão aqui porque gostam. Fazem muito bem. Honrem a profissão. E tratem de não enganar ninguém.”

Lola Ferdi morreu rica e triste, no começo dos 50. Famoso advogado de Manaus, leal amigo da dona-de-pensão presume-se que amigo de todas as horas, cumpriu o que ela, em testamento, lhe ditou: herdou os seus bens. Consta que alguma parcela ficou destinada ao amparo de duas ou três de suas melhores moças já fatigadas.

Pedi a ajuda a meu irmão Arlindo Porto, que tem memória de pássaro e conhece como poucos a crônica de Manaus do nosso tempo; para um breve rol das mais famosas e populares prostitutas da antiga Zona. (Entre parêntesis, aproveito para discordar do lugar-comum que chama a quem nada esquece de “memória de elefante”. Quem tem memória mesmo é pássaro marinho, que acha de novo no espaço, no meio do vento, o seu caminho do azul.)

Os mais idosos moradores da cidade ainda se recordam, e mestre Nunes Pereira é um deles, do pessoal voltando pela Itamaracá, já quase antemanhã, quem sabe do Cassino do Jadiel na Praça da Saudade, ou de uma casa de tavolagem célebre na rua do Dr. Moreira, talvez de uma ceia regada a Borgonha no Restaurant Français. O pessoal voltava triscado. Alguns casais, de carruagem de quatro cavalos, cocheiro português bem-posto em sua cartola. Muitos voltavam mesmo a caminhar, os homens de fraque desabotoado, as mulheres de cabeça desfeita, o chapéu na mão, as fitas arrastando no vermelho da pedra jacaré do calçamento.

O Cabaré Chinelo era realmente popular. A empolgação virava a noite, com muita dança e chamego, cerveja e suor, o cavaquinho pendurado no riso da flauta. As moças (que moças aliás já não eram mais, ainda que fossem flor em botão: era um tempo em que só donzelas mereciam esse nome), as moças amavam dançar e folgar antes da obrigação do ofício, deixavam as casas de trabalho, claro que com o consentimento das donas-de-pensão e no geral sozinhas; eram raras as que já chegavam acompanhadas.

Lá no Chinelo, elas, como no samba de Lupicínio, iluminavam mais a sala, transformavam-se em estrelas de perdição, incendiavam rixas e dores de cotovelo, de vez em quando o Chinelo se rasgava em pancadaria da grossa. Uma noite daquelas acabou dando na morte do Rosquilde Pedrosa, boêmia de muito fôlego.

Não eram as mais bonitas nem as mais bem-feitas por Deus. Distinguiram-se por especiais dons, que se compraziam em alardear ostensivamente; virtudes talvez de nascença, talvez adquiridas na prática de cada noite.

A Nise era alta, magra, até que meio ossuda. Mas cadeiruda. Tinha predileção pelos adolescentes. Pelos que estavam começando. Era das primeiras a se postar à beira do batente, ainda batido pelo que sobrava de sol, consciente de que a noite densa não lhe daria o seu repasto preferido. Feliz ela se dava, inteirinha e de graça.

A Maria Tostão era certamente a mais popular. A mais feia, a mais desvalida; muito magrinha, levava sempre na boca desdentada um batom escandaloso. Passeava em plena manhã, ao sol da Praça do Ginásio, o seu ar de angustiada penúria, toda se oferecendo. Consta que teve um filho.

Chamava-se Antonia a danada da cabocla que enfeitiçou o meu amigo de infância. A sua força encantada estava nos pés meigamente desenhados, nas pernas roliças e sobretudo num riso de dentes perfeitos. O que era um milagre, porque Antonia subiu a rampa dos Remédios diretamente para a Lobo D’Almada, mal descida do barco que a trouxera de uma beira de barranco do interior, onde até hoje quase toda moça, antes dos vinte anos, já está de boca banguela. O meu amigo ainda quis convencê-la a resguardar-se apenas para os seus braços. Ela conseguia dissuadi-lo, sorrindo, quando ele já a queria mesmo era para o seu coração. Escreveu alguns versos admiráveis, de atormentado, límpido lirismo, depois que Antonia o deixou não se sabe se por outro, nem para onde foi se sabe, porque Antonia simplesmente desapareceu, levou sumiço do dia para a noite.

Ninguém se lembra do nome dela. Porque tinha predileção pelos soldados, tanto podia ser da Polícia quanto do 27 BC, acabou por ser conhecida como a Maria Batalhão. Não se conhece a mais vaga notícia dos motivos de sua preferência. Nem é de supor que os seus frequentadores se interessassem por eles. O que se sabe é que assim como os soldados tinham a cabeça pelada à escovinha, a moça raspava os pelos do púbis. Ou da pente, no feminino, que é como as caboclas preferem.

O Chinelo fechou já faz tempo. O prédio, sobradão português de três andares do começo do século, está fechado, segregando a sua própria ruína. O tempo come a pedra e a si mesmo se consome. A Prefeitura da cidade, cujo palácio se ergue ali na mesma Praça da Constituição, terá os seus motivos, que serão talvez os do seu próprio desmotivo, para deixar o casarão morrer.

Ainda bem que aberto continua, mantendo e confirmando, a seu jeito singelo, a noturna tradição da casa, o Bar do Quintino, velho de guerra, bem no canto da Itamaracá, funcionando, para alegria dos olhos de quem chega, numa casarona que é primor da arquitetura colonial da cidade.

Enganam-se os que acham que a Zona se acabou; ou que atualmente só em casas noturnas afastadas pela periferia da cidade, animadas com música de discoteca é que se encontraram as alegres mulheres da noite (e mais ou menos tristes do dia, como qualquer pessoa que vende mal o seu trabalho). Não. A Zona está longe de ter morrido completamente. Da Instalação para baixo, quem quiser é só ir lá, basta a noite descer, que ninguém fica na mão.

Só resta a destacar, dentre as mulheres de fama, a que também só deixou memória do apelido: xibiu venenoso. Dois cidadãos idosos, um era português de alto comércio, outro um distinguido funcionário público, morreram abraçados com a cabocla cheia de fogo num quartinho da Joaquim Sarmento. Ambos na hora da sesta.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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