Memória Viva

Arthur Virgílio Filho (Capítulo 1)

Postado por Simão Pessoa

Por Mário Adolfo

No Brasil todo, o dia 19 de fevereiro de 1984 era só esperanças, mais fortes, justas. Chovia naquela manhã; mesmo assim, a praça do Congresso, no centro de Manaus, era uma festa. Começando a respirar, ainda que em doses homeopáticas, o tão sonhado oxigênio da democracia, estudantes coloriam a manhã cinza com faixas de suas facções e partidos, preparando o palco para o comício das Diretas Já, sentimento cívico que tomara conta de todo o país, ávido por eleger seu presidente depois de um jejum de vinte anos.

Manaus seria a primeira parada da caravana comandada pelo “Senhor Diretas” – como o repórter Ricardo Kotscho, à época na Folha de S.Paulo, batizara o deputado Ulysses Guimarães (PMDB) –, Tancredo Neves (PP) e o então líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Estes três traduziam o sentimento que tomava conta do Brasil, mas outras estrelas do mundo artístico e político integravam a caravana das Diretas: Ruth Escobar, Raul Cortez, Mário Juruna, Almino Affonso, Doutel de Andrade e Márcio Moreira Alves também faziam parte dessa constelação que desembarcou em Manaus no dia 17 de fevereiro.

Estavam sendo aguardados para o dia 18 o presidente nacional do PMDB, Ulysses Guimarães, o secretário-geral do partido, senador Afonso Camargo, e o deputado federal Freitas Nobre. De acordo com a programação previamente divulgada, o comício seria aberto pelas entidades de classe, prosseguiria com os políticos amazonenses, entre eles o deputado federal Arthur Virgílio Neto – um dos mais engajados na campanha pela aprovação da Emenda Dante de Oliveira –, convidados e, por último, encerrando o ato público, falaria o governador Gilberto Mestrinho.

Os estudantes do Amazonas pós-anistia aguardavam o comício com ansiedade. Há anos sem poder se manifestar politicamente, foram com demasiada sede ao pote e acabaram carregando nas tintas, expondo frases que tiravam da escuridão o Partido Comunista e batiam no que restava da ditadura militar, sobrando também para o governo do estado, comandado por Gilberto Mestrinho que, apesar de pertencer ao PMDB, não era dos mais entusiasmados com o comício das Diretas.

No mesmo dia, quase no mesmo instante em que os estudantes esticavam suas faixas, um homem de cabelos crespos, oleosos, impecavelmente penteados para trás, olhar firme e rosto marcado por traços duros deixava o edifício Maximino Corrêa, na avenida Eduardo Ribeiro, onde morava no 15º andar, e caminhava pausadamente em direção à praça sob a proteção de um guarda-chuva.

O local do comício ficava a poucos metros do edifício, tempo suficiente para sincronizar os passos do homem de guarda-chuva com o ataque raivoso de um velho aliado de Mestrinho, o protético Mirabeau dos Santos, que tinha na alma algum resquício do entulho autoritário.

Mirabeau protagonizou uma cena que envergonharia Manaus. Numa atitude que revoltou políticos, intelectuais e militares dos partidos presentes à praça do Congresso, o secretário-geral da Executiva Municipal do PMDB, Mirabeau comandou a blitz que rasgou todas as faixas do PCdoB expostas no local do comício desde a sexta-feira à noite.

Os quatro homens que auxiliaram o secretário da Executiva chegaram à praça às 10 horas. Usando escadas, eles rasgaram as faixas, atirando os pedaços na pista. Perguntado por que essa atitude considerada “antidemocrática” pelos militantes do PCdoB, Mirabeau informou: “esse é um partido proscrito. A manifestação é do PMDB e não do PCdoB”.

A chuva não impediu que a blitz comandada por Mirabeau executasse a operação. Em poucos minutos não existia uma faixa do PCdoB, com exceção da bandeirinha colocada na cabeça do mastro da praça. Apesar disso Mirabeau prometeu: “ela vai sair, pode esperar que ela vai sair”. Usando uma linguagem de ameaças, o secretário da Executiva Municipal do PMDB disse que “antes de mim já estiveram aqui alguns membros do exército que fotografaram as faixas comunistas”.

Além do revólver, ele carregava também uma máquina fotográfica para documentar as mensagens comunistas.

– Essas fotos são muito importantes – afirmou Mirabeau.

A chuva engrossou, os membros da operação se refugiaram no palanque para organizar as exposições das faixas do governo, como a do vice-governador e futuro prefeito de Manaus Manuel Ribeiro, pelas Diretas. A viatura ocupada pelos policiais, por coincidência, trazia o número de ordem PC 31-086.

– Isso é só um número, não tem nada a ver, é só uma coincidência, ironizou Mirabeau.

Expondo propositadamente o revólver 38 cano duplo à cintura, Mirabeau se negou a falar de onde partiram as ordens para o gesto tresloucado. Questionado por um repórter atento à cena, vociferou:

– São ordens superiores! – limitou-se a informar Mirabeau, com um dedo em riste sobre a cara de um militante do Diretório Universitário.

Foi nesse exato momento que aquele senhor chegou à praça, sendo atraído pelo princípio de tumulto. De guarda-chuva em punho devido à chuva que engrossara, o homem investiu contra o secretário do PMDB.

– Onde o senhor pensa que está? A praça é livre e este é um país que está caminhando para a democracia. Deixe os meninos em paz. Os comunistas têm esse direito, sim! – disse o homem empunhando seu guarda-chuva como uma lança pronta para atacar.

Só na segunda investida do guarda-chuva, o repórter identificou quem era aquele defensor da liberdade de expressão. Era o senador Arthur Virgílio Filho, que teve a voz e a carreira política silenciadas pelo golpe militar de 1964, pai do atual senador Arthur Virgílio Neto. O protesto contra a atitude repressora trazia o mesmo traço de indignação de seu discurso de vinte anos atrás, que culminou com a cassação.

– Ninguém pode impedir ninguém de ter ideia! – disse o ex-senador. – Não sou do PCdoB e nunca serei, mas deve-se respeitar o direito de ideias. Se estiver uma faixa até do partido nazista, deve-se respeitar, pois é um direito de pensar – discursou, balançando seu guarda-chuva, o velho senador no meio de uma roda de estudantes maravilhados e sob os olhares estupefatos de Mirabeau e seus guarda-costas. Em seguida, olhando para o repórter que presenciava a cena, proferiu a frase que o jornalista nunca mais esqueceria:

– Podem matar meu corpo, mas minhas ideias continuarão vivas – disse Arthur Virgílio Filho para logo em seguida, com a roupa completamente ensopada, se retirar da praça e seguir seu destino.

O que ficou conhecido como o “Protesto do Guarda-Chuva”, sintetiza o que foi a vida do senador Arthur Virgílio Filho. Um homem que sacrificou sua carreira profissional e política, mas não vendeu suas ideias e muito menos a sua alma.

Ele foi eleito deputado estadual por três legislaturas. O primeiro mandato foi de 1947 a 1951; o segundo, de 1951 a 1955, e o terceiro, de 1955 a 1959. Chegou à Câmara Federal em 1959, eleito pelo PTB, cumprindo mandato até 1963, quando se elegeu senador da República.

Cassado pelo famigerado AI-5, a “Inquisição” da ditadura militar, Arthur Virgílio foi impossibilitado de exercer seus direitos políticos e profissionais, já que não podia advogar. Distante daquilo que mais gostava de fazer – lutar contra as injustiças e o arbítrio –, o senador recolheu-se em um apartamento do edifício Antônio Simões, na avenida Sete de Setembro, onde selecionava aqueles que queria ver e abria generosamente as portas para estudantes ligados ao movimento estudantil e sindicalistas.

O gesto do ex-senador na praça do Congresso, em defesa do PCdoB, tinha um motivo. É que, por volta de 1984, ainda na ilegalidade, os PCs e as organizações de esquerda atuavam no interior do PMDB, PDT e PT. Durante os comícios da campanha pelas eleições diretas, que pintou o Brasil de amarelo – a cor do movimento –, era grande a presença dos comunistas, através de faixas e cartazes. Mesmo assim as restrições legais continuavam existindo.

Essa presença incomodava o regime militar e dificultava a campanha de Tancredo para buscar apoio nos setores mais conservadores. Mas, se o senador cassado Arthur Virgílio não se curvou nem diante das botas da ditadura, imagine em frente do revólver de Mirabeau. Seu gesto, publicado no jornal A Crítica e que repercutiu na imprensa do restante do país, ganhou a admiração e o apoio de todas as personalidades políticas e artísticas que estavam em Manaus para o comício. Uma prova de que, mesmo fora da política há mais de vinte anos, o velho senador continuava mais respeitado do que nunca. E a voz que a ditadura tentou silenciar continuava viva.

No momento em que passava pela frente do palanque, numa Brasília de cor amarela, o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Doutel de Andrade, que desembarcara na madrugada daquele dia em Manaus, ao saber do episódio envolvendo o ex-senador Arthur Virgílio, seu amigo, também protestou:

– O PTB entende que a luta pelas eleições diretas não pertence a nenhum partido ou instituição, mas sim à sociedade brasileira. Sendo assim, são legítimas todas as manifestações públicas e de todos os partidos políticos, inclusive daqueles que estão lutando pelo seu reconhecimento.

O senador Fábio Lucena (PMDB-AM), líder do partido no Senado, reagiu à atitude dos “rasgadores de faixas”, advertindo que proibir o PCdoB de se manifestar pelas Diretas é tolher o direito de manifestação de um segmento da sociedade brasileira:

– Eu não pertenço ao Partido Comunista, mas não tenho o direito de impedir que outros os integrem, porque a Constituição é clara ao assegurar o livre direito de associação. O rasgamento das faixas do PCdoB, ou de qualquer outro partido, é um ato de violência insana que não deve ser tolerada sob pena de proliferar para o rasgamento de faixas de igreja, da OAB, dos sindicatos e até da Bandeira Brasileira.

O poeta Thiago de Mello, que esteve presente no lançamento do livro do escritor e político Márcio Moreira Alves – “Teotônio, Guerreiro da Paz” –, na Livraria Maíra, também reagiu, afirmando que no momento em que todos lutavam em defesa das liberdades democráticas, era mais do que justo que todos se manifestassem em praça pública. “Inclusive os partidos que ainda não estão reconhecidos”, disse o autor de Estatutos do homem.

O combativo deputado Mário Frota (PMDB-AM), um dos maiores e mais expressivos nomes da luta contra a ditadura, vice-líder de seu partido no Congresso, considerou que a atitude ocorrida na praça teria de “partir mesmo de Mirabeau Santos”, que tomou a decisão de fazer isso sozinho, porque o PMDB, como partido que defende as ideias libertárias, jamais permitiria que seus integrantes cometessem uma agressão tão sórdida como ocorreu:

– Temos de levar em consideração que o movimento pelas eleições diretas não é de propriedade do PMDB, mas de toda a sociedade organizada, que deseja acabar de vez com a bionicidade que tanta infelicidade tem causado ao país. Na qualidade de vice-líder do PMDB nacional, peço desculpas ao povo pelo episódio vulgar e fascista.

Com tantos problemas, o comício pelas Diretas Já não alcançou o êxito esperado, mas não se pode afirmar que as esperanças do povo do Amazonas haviam fenecido.

Pelo contrário, cresciam. E as vozes dos democratas da terra eram um bom testemunho dessa radiante realidade.

(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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