Memória Viva

Arthur Virgílio Filho (Capítulo 10)

Postado por Simão Pessoa

Por Mário Adolfo

O país mergulhou definitivamente nos anos de chumbo no dia 13 de dezembro de 1968, quando a ditadura militar editou o seu mais horrendo monstro, o AI-5. O ato institucional foi decretado no momento em que a crise político-militar, que teve início com o pedido de licença para processar o deputado federal Márcio Alves (MDB-RJ), chegou ao seu ponto culminante depois que a Câmara dos Deputados negou o pedido do governo. Depois de conferenciar durante todo o dia com seus ministros e chefes militares, o general Costa e Silva resolveu baixar o Ato Institucional nº 5 (AI 5) e o Ato Complementar nº 38, que fechou o Congresso Nacional por tempo indeterminado.

O novo ato institucional caiu como um manto negro sobre o país, e chegava sem prazo para deixar de vigorar, dando ao presidente da República todos os poderes que eram conferidos pelos outros atos anteriores baixados pelo governo militar, inclusive o de cassar mandatos de parlamentares federais, estaduais e municipais eleitos pelo povo, tirando-lhes os direitos políticos por dez anos, além de permitir, a partir daquela data, o confisco de bens de pessoas que “enriqueceram ilicitamente”.

Durante os dez anos em que vigorou, o Ato Institucional nº 5 (1968-1978) foi instrumento para centenas de cassações. Ele atingiu 273 mandatos parlamentares, sendo 162 estaduais e 111 federais. Até o final do governo Médici (1969-1974), o AI-5 foi acionado 579 vezes, punindo 142 militares, 145 funcionários públicos civis, 102 policiais, 28 funcionários do Poder Judiciário, de juízes a promotores. Foi também acionado dez vezes para determinar intervenção em municípios e 80 vezes para banimento de oposicionistas. O presidente Geisel usou o AI-5 inúmeras vezes antes de revogá-lo, no final de 1978: foram cassados os mandatos e suspensos os direitos políticos de 12 parlamentares; a cidade de Rio Branco, capital do Acre, sofreu intervenção. O AI-5 trouxe em seus tentáculos um tipo até então inédito de restrição aos direitos dos cidadãos: a suspensão da garantia do habeas corpus nos casos de crimes políticos.

A notícia caiu como uma bomba em Manaus. No dia 10 de fevereiro de 1969, telefonemas de familiares e amigos informavam que o Conselho de Segurança Nacional (CSN) havia cassado não só o senador Arthur Virgílio Filho, mas também o deputado federal pelo Amazonas José Bernardo Cabral e mais 31 parlamentares, que, além de perderem o mandato que lhes foi conferido pelo povo, tiveram seus direitos políticos suspensos por 10 anos.

O CSN também decretou o recesso das Assembleias Legislativas da Guanabara, São Paulo, Pernambuco, estado do Rio de Janeiro e Sergipe. Ainda na reunião do dia 7 de fevereiro de 1969, foram aposentados dois auditores da Justiça Militar e criada a Comissão Geral de Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar atos subversivos ou contrarrevolucionários. Era a mão de ferro esmagando a democracia e todos aqueles que lutavam por seu restabelecimento. A partir do golpe de 1964, o termo “cassação” passa a designar não só a perda dos direitos políticos, mas, de modo geral, todas as punições impostas pelos atos e leis de exceção do regime militar.

A ditadura militar foi a mais longa da história brasileira. Durou de 1964 a 1985. Foi um período de muita dor, medo e repúdio. Aquele que ousasse criticar, opor-se ou participar dos movimentos populares de resistência às atrocidades praticadas pelo regime militar era perseguido, obrigado a viver na clandestinidade ou no exílio. Quando não, preso e torturado nos porões da ditadura.

Com o filho seguindo a carreira de diplomata no Itamaraty e os outros familiares morando no Rio de Janeiro, Arthur Virgílio Filho vivia uma vida solitária no apartamento do edifício Antônio Simões, na avenida Sete de Setembro, centro de Manaus. Seu coração ficava em festa quando via a turma de estudantes, entre eles Simão Pessoa, Mário Adolfo, Engels Medeiros e Adalberto Mello Franco, adentrar o apartamento para ouvir as histórias de “tio Árthur” – como passamos a lhe chamar, em homenagem ao personagem do filme Arthur, o milionário sedutor, com Dudley Moore – e saber sua opinião sobre os assuntos que continuavam na ordem do dia: o assassinato do jornalista e diretor da TV Cultura, Wladimir Herzog, morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi (Oban), em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975; o famigerado AI-5 (Ato Institucional nº 5), que cassou políticos e suspendeu o direito de habeas corpus; o movimento estudantil para reconstruir a União Nacional dos Estudantes (UNE); os tentáculos da censura que empastelava jornais, fechava teatros, recolhia discos com músicas proibidas e perseguia artistas, intelectuais e jornalistas. Discutíamos também o avanço da direita que explodia bancas que vendiam jornais alternativos como Pasquim, Opinião, Movimento e Coojornal, tabloides que circulavam de mão em mão nos pátios da universidades, metendo o dedo na ferida do regime.

Solitário, amargurado e indignado com os rumos que o país tomava, Arthur Virgílio nos recebia de braços abertos, no final dos anos 70. Esse encontro de gerações diferentes, mas que traziam as mesmas mágoas no peito, se deu em 1978, quando o engenheiro recém-formado Simão Pessoa, à época funcionário da Sharp do Brasil, encabeçou uma greve, que passei a cobrir como repórter de A Crítica desde a primeira reunião.

Naquela época, apesar da “distensão lenta e gradual”, a ditadura ainda tinha fôlego para perseguir, prender, matar e, por que não?, sufocar os movimentos grevistas, reduzidos drasticamente a partir de 1964. No ano do golpe militar, logo após a deposição do presidente, não houve registro de greves, e o número de ocorrências nos anos seguintes mostra que houve uma redução significativa. Em 1965, houve seis vezes menos greves em comparação ao mesmo período de 1963. Até 1977, o movimento grevista continuou caindo, mas retornou com força total em 1978, quando as greves passam a pipocar, primeiro no ABC paulista, depois em todo o país, como se fosse uma onda sísmica. Este pico atingiria seu apogeu em 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia. Foi nesse rastilho que Simão Pessoa e seus companheiros embarcaram.

Em Manaus, o movimento foi esmagado pelo poderoso Mathias Machiline. Simão e seus companheiros não conseguiram nem mais entrar na fábrica. Receberam as contas pela cerca de arame farpado, que era utilizada na maioria das fábricas do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus. Cheios de revolta e nos sentindo impotentes, mas não querendo nos queixar ao bispo, resolvemos procurar o vereador Fábio Lucena (MDB-AM), que descia a lenha na ditadura vez por outra e virou uma espécie de escudo dos menos favorecidos através de seus editoriais escritos a ferro e fogo no jornal A Crítica. Não conseguimos localizar o Fábio Lucena, e o Adalberto Mello Franco sugeriu:

– Se vocês toparem, eu conheço um ex-senador que é advogado, sempre defendeu os trabalhadores, a justiça social e os direitos humanos, e foi cassado porque enfrentou a ditadura da tribuna. Ele vai nos orientar.

– Quem é, Mello? – perguntou Simão.

– O senador Arthur Virgílio Filho. Vamos lá no apartamento dele.

Em poucas horas estávamos no apartamento de Arthur. Ele sentado no sofá da sala, alguns nas poltronas e o resto no chão. Quando contamos nossa história ele se mostrou indignado. “Fascistas” foi a tradução mais amena que encontrou para definir os carrascos de São Paulo que guilhotinaram os “meninos da Sharp”.

– Eles, os paulistas, acham que somos índios e que o Distrito Industrial, com suas cercas de arame farpado, é um campo de concentração. Vamos mobilizar todo o mundo, mas de antemão, meninos, devo avisar que ninguém da imprensa vai publicar isso e dificilmente vocês conseguirão outro emprego nas empresas da Zona Franca.

Arthur Virgílio estava certo. Naquele dia entrei na redação do jornal como um furacão. “Estou com a manchete!”, anunciei, vendendo meu peixe. “É a primeira greve no Amazonas depois do AI-5”. O editor do jornal na época era Pery Augusto, um veterano simpático já com sessenta anos que, por minhas posições políticas, me chamava de “guerrilheiro”.

– Greve onde, guerrilheiro?

– A Sharp está parada, seu Pery. É a primeira greve no Amazonas depois da ditadura.

– Nem perde tempo escrevendo. É a Sharp que ajuda a pagar o teu salário, e a matéria não sai.

Depois daquele episódio, nos tornamos amigos para sempre do senador Arthur Virgílio. Sempre que ocorria um novo fato que renovasse as esperanças de retorno à democracia, corríamos para ouvir a opinião de Arthur, principalmente em relação à mobilização popular, que começou a crescer após 1979, com a abertura do regime militar.

– Meus filhos, vocês não sabem a alegria que me dão ao trazer para essa casa a discussão política, como sempre foi a minha vida! – era assim que ele, quase sempre, nos saudava.

No meio dos debates acalorados, vez por outra ele interrompia para dizer que os estudantes lembravam muito o filho, Arthur Virgílio Neto, que seguia a carreira diplomática, mas que acenava com a vontade de voltar para o Amazonas e encarar a carreira política.

No natal de 1978 já podíamos ouvir Apesar de você e Cálice, de Chico Buarque, liberadas pela censura depois de quase vinte anos proibidas pelo regime. Levamos o LP Meus caros amigos com as músicas e mais alguns livros sobre anistia, direitos humanos e poesia. Era nosso presente de natal para Arthur Virgílio. Foi uma noite inesquecível. Ele contou histórias, fez discursos, riu e voltou a prometer:

– Um dia vocês vão conhecer meu filho. Vocês me lembram muito ele.

O senador sempre se retirava para a janela quando queria fumar seu cigarro. E ficava fitando as luzes da cidade, ao longe, como esperando que o sol da liberdade voltasse a iluminar a noite escura em que vivíamos. O clima era de tensão e medo. Éramos todos um pouco Ubaldo, o paranoico, a genial criação do cartunista Henfil. Quando Arthur Virgílio caminhava para a janela, eu ia atrás e ficava ao seu lado, em silêncio, mas atento para os seus movimentos.

Todos nós tínhamos receio de que ele poderia saltar para o vazio, a qualquer momento, fugindo da amargura e da solidão para buscar a liberdade tão sonhada. Mas tudo não passava de excesso de carinho pelo velho senador e um pouco de medo. Afinal, ele era um homem corajoso e jamais usaria de um artifício desses para fugir da luta.

Hoje, escritor e assinando uma coluna de humor no jornal Estado do Amazonas, onde conta causos do folclore político do Amazonas, Simão Pessoa retrata muito bem 1978, o ano em que conhecemos o senador Arthur Virgílio Filho e com ele aprendemos que àquela altura do campeonato já não era possível continuar “desgraçadamente tutelado, dominado pela prepotência, pela violência e pelo arbítrio”. Veja o texto do Simão:

Durante uma reunião do Congresso Nacional em dezembro de 1968, nas vésperas da publicação do AI-5, o senador Arthur Virgílio Filho, ex-líder do PTB no Senado e então vice-líder do MDB, ocupa a tribuna para fazer um discurso emocionado, denunciando os horrores da ditadura militar e repetindo o que já havia dito três anos antes.

– Que nos fechem hoje, mas com o povo que nos assiste ao nosso lado, e não nos fechem amanhã, ingloriamente, com o aplauso do povo brasileiro, como aconteceu em 1937! – proclamava o senador.

Vice-líder do MDB na Câmara e amigo de Arthur Virgílio de longa data, o deputado Paes de Andrade pede-lhe um aparte, para se solidarizar com ele.

Arthur Virgílio faz que não vê. Paes insiste. Arthur Virgílio não dá a mínima.

Quando desceu da tribuna, Paes foi lhe cobrar:

– O que é isso, Virgílio? Como é que você me negou o aparte?…

– Paes, eu hoje não fiz um discurso, fiz um requerimento. Esse discurso é um requerimento de cassação. Você não tinha nada que entrar no meu requerimento. Cumpri meu dever de trabalhista e vice-líder da oposição e sei que eles vão me cassar. Estou indo embora, mas você precisa ficar para, junto com os outros companheiros, continuarem lutando pela volta da democracia.

Dito e feito. Dois meses depois, em fevereiro de 1969, o senador Arthur Virgílio Filho foi cassado e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos por força do Ato Institucional nº 5, publicado em 13 de dezembro de 1968.

Era disso que eu estava me lembrando dentro do elevador, na noite da véspera do natal de 1978, quando, na companhia do jornalista Mário Adolfo, estava indo ao encontro do ex-senador, que morava então, solitariamente, no edifício Antônio Simões, no centro de Manaus. Aquela história do senador já havia ganhado contornos de lenda entre os militantes da esquerda amazonense.

Nos últimos cinco meses, minha vida havia virado de ponta-cabeça. Em agosto, liderei uma greve na Sharp, cujo desfecho teve ampla cobertura do jornal A Crítica graças ao empenho do jornalista Mário Adolfo, mas, depois de uma semana de paralisação, eu e o engenheiro Geraldo Nogueira (irmão do ex-secretário estadual de Educação Vicente Nogueira) fomos sumariamente demitidos. Uma semana depois, as demissões atingiam mais de seis dezenas de pessoas.

Em setembro, vários amigos meus foram demitidos de outras fábricas sob a alegação calhorda de que “a primeira turma de engenheiros eletrônicos da Utam queria transformar o pacato Distrito Industrial no conflagrado ABC paulista”. Rolaram cabeças na Evadim, Semp-Toshiba, Sanyo, CCE e Gradiente, entre outras. E o pior é que a greve na Sharp tinha sido provocada por um problema interno da empresa…

Nas duas ocasiões (na minha demissão e na demissão dos companheiros de outras fábricas), por obra e graça do engenheiro Adalberto Mello Franco (demitido da Semp-Toshiba), amigo de longa data da família do senador, fomos nos aconselhar com Arthur Virgílio Filho.

Em novembro, o engenheiro Carlos Almeida (demitido da Evadim) foi preso autoritariamente, sem ordem judicial, quando conversávamos num barzinho na Cachoeirinha, numa tarde de sábado, e levado pela tropa de choque da PM para lugar incerto.

E tudo por conta de um mal-entendido: Carlos confundiu um sujeito vestido de pinguim (paletó de linho branco, calça preta e gravata borboleta) com o garçom e pediu uma “caipirinha”. O sujeito não disse nada e se dirigiu para o balcão do bar. Dez minutos depois, surgiu na varanda comandando uma tropa de choque da PM armada de metralhadora e escopetas.

Era um coronel aposentado ligado à 2ª Seção. Os meganhas não quiseram nem saber dos nossos pedidos de desculpas. Colocaram Carlos no “alçapão” com violência, bateram a porta e as duas camionetes saíram cantando pneus. Foi um deus nos acuda.

Novamente o senador foi convocado para nos livrar da enrascada. Graças a um bilhete e a uma série de telefonemas endereçados aos advogados do famoso escritório jurídico Simonetti, Paiva e Valois, conseguimos localizar e libertar o engenheiro já na madrugada de domingo. O incidente serviu para mostrar que os pit-bulls da ditadura continuavam dando as cartas.

Agora em dezembro, eu e Mário Adolfo estávamos indo pela primeira vez visitar o senador sem nenhum “problema” guardado na algibeira. Pelo contrário. Eu estava levando um livro do Pablo Neruda (Vinte poemas de amor e uma canção desesperada) e uma dúzia de cervejas em lata. Mário levava um livro do Vinicius de Moraes (Antologia poética), uma Carta dos direitos humanos, xerocopiada, em que habilmente desenhara uma nova capa, alguns LPs e duas latas de castanhas de caju.

Meninos de famílias pobres, nascidos e criados em Cachoeirinha, não tínhamos a menor ideia de que “presente de natal” dar a um senador. Os livros tinham sido a única opção condizente com a nossa precária situação financeira. As cervejas e as castanhas eram o que havia dado pra comprar com o “troco” dos presentes.

O senador (que a gente, num arroubo de intimidade além da conta, já chamava de “tio Árthur”, acentuando a primeira sílaba, como na pronúncia inglesa, talvez porque ele tivesse a educação esmerada de um verdadeiro lorde) ficou visivelmente emocionado. Acostumado com a solidão (seus familiares moravam no Rio de Janeiro), para ele aquela véspera de natal seria apenas mais uma noite igual às outras. Não foi.

Conversamos sobre isso e aquilo outro, mas, principalmente, sobre política, e secamos algumas garrafas de vinho (depois que nossas cervejas foram para o espaço). O senador era um pote de erudição e ali estavam dois ouvintes dispostos a saborear, com uma indisfarçável admiração, aquele jorro vulcânico de quem sempre pautara a vida fazendo “o bom combate”.

Quando Arthur Virgílio Filho, recitando de cabeça um dos muitos poemas de Neruda que sabia de cor, se aproximava da janela do 11º andar para observar a cidade, Mário Adolfo, automaticamente, se levantava da poltrona e ia atrás, possivelmente com medo de ver o senador se jogando pelo vazio – e o jornalista não estar a postos para evitar a tragédia anunciada.

Mas era uma preocupação infundada. Arthur Virgílio Filho amava a vida. Deixamos o apartamento do senador já com o dia amanhecendo, completamente em êxtase.

No ano seguinte, acho que em março de 1979, o ex-senador patrocinou uma feijoada em seu apartamento para nos apresentar seu filho mais velho, o atual senador Arthur Virgílio Neto. No ano anterior, havíamos feito campanha para Arthur Neto, candidato a deputado federal pelo MDB, mas ele acabara na primeira suplência. Eu e Mário Adolfo não o conhecíamos pessoalmente, mas bastava ser filho do tio Árthur para ser um verdadeiro homem de bem. Ficamos “amigos de infância” na mesma hora.

Arthur Neto, que na época era militante do clandestino PCB, trazia nas veias o idealismo do pai. Praticar “o bom combate”, vimos logo, fazia parte da carga genética da família. Diplomata de carreira e orador brilhante, Neto ainda trazia um outro diferencial que nos enchia de inveja: era professor de inglês. Quer dizer, ele tinha intimidade com o idioma e sabia o significado das letras cantadas pelos Beatles, Bob Dylan, Pink Floyd, Rolling Stones e tantos outros roqueiros que “traduzíamos” com uma dificuldade da “gota serena”.

Em junho do mesmo ano, o senador, na companhia do Adalberto Mello Franco, me fez uma visita de cortesia. Ainda desempregado, fiquei com vergonha de recebê-lo na “tapera” de madeira carcomida em que estava morando – e, o que é pior, servindo de “babá” para meus filhos gêmeos, Marcelo e Marcel, que mal tinham completado dois anos, num dia a dia angustiante e completamente ocioso. Tal como ele havia previsto, meu nome estava na “lista negra” do Distrito Industrial.

Durante a tarde inteira em que ficamos conversando, o senador falou das prisões arbitrárias que sofrera como quem fala de um acontecimento fortuito, sem demonstrar uma ponta de mágoa ou ressentimento. Para ele, aquilo tinha sido apenas um “acidente de percurso”. E traduziu magistralmente sua disposição de continuar o “bom combate”, arriscando, se preciso, a própria vida, com uma frase inesquecível do Che Guevara: “Prefiero morir de pie que vivir siempre arrodillado”. Aquela lição de otimismo e desprendimento tem sido meu norte ao longo da vida. “Um dia você ainda vai rir muito disso tudo, meu filho!”, vaticinou, quando nos despedimos. Acertou na mosca.

Em 28 de agosto de 1979, o presidente Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, de iniciativa do governo e aprovada pelo Congresso, anistiando todos os cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da edição do AI-1. Entre presos, cassados, banidos, exilados ou simplesmente destituídos dos seus empregos, a Lei de Anistia beneficiou 4.650 pessoas, entre as quais os ex-governadores Gilberto Mestrinho, Leonel Brizola e Miguel Arraes, os ex-líderes estudantis Vladimir Palmeira e José Dirceu, e o ex-senador Arthur Virgílio Filho.

Em dezembro daquele ano, durante nossa tradicional celebração natalina, tio Árthur levantou uma interessante hipótese para justificar sua cassação pelos militares. Em 1967, um dos mais badalados futurólogos internacionais, Herman Khan, 150 quilos, QI de 130, calmo, extremamente feio, vaidoso e arrogante, esteve no Brasil defendendo a transformação da Amazônia num grande lago (ou isso ou a internacionalização da região). Diretor do Hudson Institute, um organismo que congregava dezenas de cientistas de renome internacional, Herman Khan defendia a construção de barragens edificadas ao longo dos grandes rios da planície amazônica.

O projeto de Khan resultaria na interligação de cinco nações sul-americanas por meio da inundação das bacias dos principais rios (a barragem do rio Amazonas seria no estreito de Óbidos, no Pará), possibilitando o tráfego direto e permanente em toda a região. A equipe do cientista chegou a sobrevoar trechos imensos da Amazônia colombiana, estudando a sua execução. A criação do “grande lago” melhoraria o potencial de navegação e levaria a um grande desenvolvimento econômico na região, determinado pela circulação fácil dos produtos e mercadorias. Isso soava como música no ouvido de muitos militares brasileiros, cada vez mais paranoicos com a necessidade de colonizar a Amazônia.

Legítimo representante da região amazônica no Congresso Nacional, o senador Arthur Virgílio Filho foi uma das primeiras vozes a se insurgir contra a “ideia estapafúrdia de meia-dúzia de cientistas de araque” e logo a briosa imprensa nacional “caiu de pau” no lombo do futurólogo. A ideia do “grande lago” foi abortada num piscar de olhos. “Bom, mas aquilo não era motivo para provocar uma cassação, senador”, eu intervinha. “Pois é. Mas, quem sabe o que se esconde na cabeça desses gorilas fardados?”, dizia. Aí, enquanto acendia mais um cigarro, encerrava o assunto: “Um dia a gente ainda vai rir muito disso tudo, meu filho!”. Só então a ficha caía: por mais paradoxal que fosse, a violência contra o senador tinha sido tão absurda que ele buscava uma justificativa plausível em fatos surrealistas. Era um iluminista. Ou, quem sabe, um iluminado.

Eu, Mário Adolfo e o resto dos “meninos” continuamos a frequentar a casa do tio Árthur ao longo dos anos seguintes e nos embebedando daquele humanismo tão pródigo e generoso. Quando, em 1984, a “Oposição Sindical Metalúrgica” ganhou a eleição daquele ano e fui eleito vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, telefonei para ele, para dar a notícia. “Só estou nessa luta por causa daquela nossa conversa de 79”, avisei. “Faça o que tem que ser feito, meu filho, só não traia seus princípios”, aconselhou.

Em maio de 1985, ele foi nomeado pelo presidente Sarney para dirigir o INPS e se mudou para o Rio de Janeiro. Foi a última vez que falei com ele, outra vez em companhia do Adalberto Mello Franco. O senador me presenteou com um livro do Neruda, Memorial de Isla Negra, que tenho até hoje.

Em novembro daquele ano, para não trair meus princípios, renunciei ao cargo de vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, que havia se transformado num antro de corrupção. Foi uma oportunidade de colocar em prática mais um dos tantos e pródigos ensinamentos recebidos do senador.

Dois anos depois, no dia 31 de março, ele foi se encontrar pessoalmente com Pablo Neruda. Tenho (temos) saudade.

(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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