Por Mário Adolfo
Dia 28 de outubro de 1965. A mão de ferro da ditadura militar acaba de decretar o Ato Institucional nº 2, que, entre outras aberrações, muda radicalmente as regras políticas, empurrando goela abaixo o bipartidarismo, isto é, a Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido da situação; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), de oposição. Na crônica política daqueles difíceis anos, os dois ficariam estigmatizados como o “partido do sim” e o “partido do sim, senhor”.
O ato também impõe o regime de eleições indiretas para presidente, que passaria a ser “eleito” no Colégio Eleitoral. Não é só: cai o véu da longa noite escura sobre o país com a ampliação da censura para “calar” os opositores e perseguir aqueles que ousassem reagir, falar, criar e até pensar.
Era apenas o início do período de trevas. Em abril de 1964, o general Castello Branco já havia decretado o Ato Institucional nº 1, que fortalecia o Executivo e permitiria ao presidente impor o estado de sítio, cassar mandatos, suspender por dez anos direitos políticos, aposentar funcionários públicos, determinar decretos-lei e até manter as eleições de 1965, com Castello Branco como presidente transitório.
Naquele 28 de outubro de 1965, o Congresso Nacional está sitiado. Apesar das galerias lotadas, um silêncio pesado é quebrado somente pelo barulho de tanques, pisadas de coturnos e engatilhar de fuzis. Máquinas de escrever e microfones de rádios também silenciaram diante do medo. Limitam-se a transmitir o texto oficial do Ato.
Parece que todos se renderam e dobraram a espinha diante da opressão. Todos não, um homem altivo, de cabelos crespos, testa longa, olhar penetrante e de voz grave, segura, resiste corajosamente na tribuna do Congresso Nacional. E alerta a seus pares:
– O Brasil que se encontra aqui (nas galerias) espera a decisão que vamos tomar nesta noite histórica. A população que aqui se congrega está a indicar apenas aquilo que o povo espera de nós: se haveremos de honrar a delegação popular que recebemos ao ser eleitos deputado e senador, ou se vamos nos diminuir a ponto de desaparecermos diante do que poderíamos ser diante da nacionalidade!
A voz valente que se levanta corajosamente contra a ditadura é a do senador Arthur Virgílio Filho (PTB-AM), ex-líder do presidente João Goulart no Senado. Numa sessão tumultuada, no day after da decretação do Ato Institucional nº 2, ele enfrenta de cabeça erguida aqueles que tentam detonar seu discurso com gritos de “não apoiado”. Mas ele segue observando que não há como fugir ao momento histórico por que o país passa. Nem como fugir à responsabilidade cívica diante dos fatos.
– Ou seremos dignos do mandato popular que recebemos ou estaremos entregando esta nação ao mais degradante dos destinos – brada o senador, sendo interrompido por um grito que vem do plenário. Mais uma vez Virgílio não se cala:
– Sr. Presidente, eu ouvi um grito de “não apoiado”. Não sei de onde partiu, mas talvez de alguém que está se agachando diante da força – brada o senador, para fazer com que o senador Rui Santos, que tentava atropelar seu discurso, saísse do anonimato e o enfrentasse aos gritos, dizendo que partiu “de um representante como V.Exa. Nesta Casa não há quem se agache. Se V.Exa. é digno tem que reconhecer que todos são tão dignos quanto V.Exa.”
O episódio daquela longa noite ilustra bem a postura, o caráter, o compromisso com a democracia e a coragem do senador amazonense Arthur Virgílio Filho, um dos muitos políticos cassados pelo regime de exceção que vigorava no Brasil, mas que, até hoje, 23 anos depois de sua morte, continua sendo citado como “um homem imprescindível de seu tempo”, que exerceu a política com honradez, dignidade.
Arthur Virgílio sabia da gravidade daquela sessão histórica vivida naquela noite de 28 de outubro. Também sabia que ali, naquele momento, estava cavando com os próprios pés – ou com a própria voz – a sua cassação, que viria… pela guilhotina do AI-5. Mas, corajosamente, continuou:
– Eu quero que fique bem claro, nesta hora grave, que ninguém tentará, ou ninguém conseguirá, me calar pela violência. Nós estamos de fato nesta hora escrevendo História. Nós estamos fazendo História. Cada palavra nossa é uma linha que acrescentamos à História. Cada frase poderá ser um capítulo, cada período poderá vir a ser um título da História. Temos uma responsabilidade presente. Temos por nós e temos pelos nossos descendentes uma responsabilidade futura. Cada um de nós assume nesta hora a responsabilidade pelo papel que está representando diante da História.
Virgílio segue, sem ouvir gritos, interrupções, aplausos. Como se soubesse que aquele seria um de seus últimos discursos antes que a noite escura desabasse sobre o sol da democracia. Adverte que cada um teria que se responsabilizar por aquilo que faria naquele dia, pelo futuro do Brasil, de pessoas de instituições livres.
– Sr. Presidente, depois de muito conceder, depois de muito recuar, depois de muito abdicar chegou a hora desse Congresso se impor. Chegou a hora desse Congresso ser digno da representação que ele encarna, de dizer a esta nação que, se ele cedeu, que, se ele recuou, não cederá nem recuará mais.
E, mais à frente, com o tom do discurso ainda mais incisivo, aponta pela primeira vez sua metralhadora giratória contra a ditadura militar que acabara de se instalar. Que a instalem, mas não com o aval dos congressistas!
– Que liquidem com o direito do povo brasileiro de ser livre, de ser digno, mas que o façam sem nossa conivência, sem a nossa participação. Se um dia esse Congresso se diminui, se agacha, merece ser fechado com o apoio do povo!
E, diante da insistência da Mesa avisando que seu tempo havia acabado, antes que soasse a campainha cortando o som de seu microfone, Virgílio sentencia, para um plenário quase vazio, a frase que até hoje corta como lâmina amolada a carne daqueles que naquela noite ajudaram a empurrar o país para o mais tenebroso precipício de sua história:
– Que nos fechem hoje, mas com o povo que nos assiste ao nosso lado; e não nos fechem amanhã, ingloriamente, com o aplauso do povo brasileiro, como aconteceu em 1937.
(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)