Memória Viva

Em Nássara não dá cupim…

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustoza

Na Casa Rui, quando ele aparecia para gravar uma das tantas entrevistas bastante informais que fiz com ele, era uma festa. Porque o Nássara era um entrevistado incomum. Quando ele falava a respeito de uma música, ele cantava. E como cantava muito bem e alto, por causa da surdez, ficava todo mundo acompanhando as histórias sobre Noel Rosa, Orestes Barbosa, Ari Barroso… Um elenco de nomes que para a gente de hoje é mítico, mas que para ele era até bem comum.

De vez em quando ele demonstrava a surpresa com que via a eleição do Noel, boêmio, magricela, irresponsável, sempre cavando algum, em gênio da MPB. Com Nelson Rodrigues então ficava até meio irritado. Não entendia. O Nelson que ele conhecia, era aquele irmão menos esperto do Mário Filho. O Nelson que ele lembrava era aquele da redação, de fala arrastada, batendo a cinza do cigarro no pires da xícara do cafezinho. Mário Filho sim, este para ele é que era bamba. É que os conhecera antes de serem as celebridades que a posteridade consagrou.

Talvez estivesse nessa química o segredo de sua eterna juventude: uma simplicidade que casava bem com o seu humor. Não que fosse o tipo do velho bonzinho, frágil. Não, ao contrário, quando se zangava ele era até bem zangado. Mas em compensação era imensamente afetuoso com os amigos, de um carinho sincero e explícito. “Porque eu tenho que admirar o cara para ele ser meu amigo”, disse-me uma vez. Assim, quando falava de Orestes Barbosa, Mário Filho, Luís Barbosa, Marques Rebelo, Di Cavalcanti e alguns outros amigos mais chegados ao seu coração, derramava-se em elogios e manifestações afetuosas, sinceras. A recíproca costumava ser verdadeira. Na contracapa do disco Carnaval de Nássara (1956), Orestes Barbosa escreveu:

“Aqui, neste papelão ou cartolina de contra-capa de um L.P. de Antônio Gabriel Nássara, eu escrevi estas palavras – que não são palavras, porque, em verdade, eu não sei escrever.

Isto aqui são duas mãos batendo palmas ao menino de cabelo repartido ao lado, com um cigarro no canto da boca – Antônio Nássara – que o povo vai receber neste L.P. como o recebeu, anos seguidos, nos êxitos sem precedentes – glória legítima de um valor legítimo da nossa música popular.”

Marques Rebelo, na abertura de sua entrevista para o MIS, disse: para ele, com relação ao Nássara admiração e amizade eram coisas que se confundiam:

“Eu estimo e admiro Antônio Nássara. Admiro especialmente pelo traço marcante da sua vida, que é a sobriedade e uma elegância que se reflete até na maneira de vestir. Como se ele exteriorizasse essa elegância interior de amigo e de artista.”

A elegância: todos que conhecem Nássara são unânimes em ressaltar seu cuidado no vestir: o terno bem cortado, a camisa sempre limpa, a gravata cara e de bom gosto (“em Nássara nunca dá cupim”, disse Ari Barroso). Se era assim, como o descreveu Joel Silveira na mocidade, assim ainda o foi encontrar Cássio Loredano, que menciona na abertura de seu belo livro: “No verão, Antônio Nássara sai de branco”. Para, mais adiante, completar: “Sempre alegante, barriga nenhuma, os cabelos brancos impecáveis”. Joel Silveira lembrava a frase do próprio Nássara: “Um carioca não envelhece, acumula vida”, para dizer que ele permanecia intacto, inteiriço, exatamente como o encontrara pela primeira vez em 1937. A figura que eu conheci, em 1986, era das mais simpáticas e agradáveis. Com sua bengala, as roupas claras, o sorriso maroto, era o Nássara. Era único.

E sua elegância representava mesmo, como falou Marques Rebelo, a exteriorização de uma alma elegante, correta. Correção que era reconhecida até pelos desafetos. Até mesmo por David Nasser, cuja inimizade com Nássara quase completou bodas de ouro (“Há apenas quarenta e dois anos não nos falamos”, disse David Nasser em 1987). Ao longo daquele longo tempo os dois disseram cobras e lagartos um do outro através da imprensa. Assim mesmo, David Nasser, ao publicar em 1987, na revista Manchete, um artigo onde, mais uma vez, reivindicava a autoria do refrão do “Alá-a-ô”, que lhe teria sido roubado por Haroldo Lobo, fazia questão de assegurar que Nássara nada teria tido a ver com o fato: “Sabíamos todos de sua inteireza como autor. Onde estava o seu nome, ela estava.”

Elegância, correção que não destoavam com a bossa do cigarro no canto da boca, do irresistível amor pela noite, do bate-papo colorido, em que ressaltavam as comparações curiosas, as hipérboles, seus exageros bem-humorados: “Vai ter talento assim lá na Juliano Moreira”. Foi o elogio que fez a Aldir Blanc, em O Pasquim, mas era também expressão de filosofia que desenvolvera uma vez em entrevista a Última Hora (São Paulo, 20/5/1966): “Os doentes fazem a arte, os outros enriquecem”. Era um romântico, convencido de que a verdadeira arte estava associada a destinos como os dos seus amigos Noel Rosa, Luís Barbosa, Roberto Rodrigues, Figueroa. Mas num personagem tão irônico e original, mesmo a apologia dessa sina romântica não podia ser levada muito ao pé da letra. A aliança entre o modo de vida boêmia e a cultura de vanguarda, era satirizada por ele já no tempo da Diretrizes: “Era fatal! Eu teria que acabar ou poeta lírico ou escritor de vanguarda! Frequentando o Vermelhinho, comendo em restaurantes de refeição a preço fixo, não poderia fugir à predestinação…”

E era um apaixonado pelo Rio. Como diz o Loredano, Nássara podia ser visto frequentemente atravessando o centro do Rio com seu andar levíssimo. Ia encontrando os amigos pelo caminho e se deixava ficar em conversas intermináveis. Para Millôr, o Rio, de certa forma, é uma invenção de Nássara, Orestes e Noel: “Conversando, conversando foram se distraindo e a cidade cresceu em torno deles”. Nássara era um arquivo de décadas de história da cultura boêmia da cidade. Conheceu, segundo Paulo Mendes Campos, a primeira batida (de limão) vendida no Rio, num café do Largo de S. Francisco e frequentou o bar do Palace Hotel, o Café Níce, o Serrador, o Ponto Elegante, o Vilariño. Gostava de relembrar, por exemplo como se iniciou, aqui, o hábito de consumir uísque.

“Uísque era um planeta desconhecido. A moda era o traçado, isto é, vermute francês ou italiano, que não é traçado de cachaça com capilé nem a cachaça com Fernet. O nosso era mais grã-fino. Quando começou o cassino da Urca é que a turma começou a ser apresentado ao uísque, surgindo então aquela discussão: uísque deve ser puro? Com água? Com soda? Com pouco gelo? Com muita água? Passamos madrugadas no Ponto Elegante discutindo esses bizantinismos e fazendo pesquisas sobre a verdade escocesa”. (Entrevista a Paulo Mendes Campo, 8/2/1973).

Nássara estabelece diferenças de estilo na boêmia: havia a boêmia de calçada, aquela do chamado “banho de lua”, porque ficava pelas ruas até de manhã. Seu grande cultor era Orestes Barbosa, que, à uma hora da madrugada, quando encerrava o expediente, comandava o bate-papo nos desconfortáveis bancos de madeira da Cinelândia ou nas cadeiras de vime do Café Nice, para, em seguida, liderar a marcha do grupo a pá até Vila Isabel. Onde chegavam às três da madrugada, justo na hora de pegar uma média, com pão (fresquinho, canoa com manteiga) e queijo. A outra modalidade era a da boêmia de café: aquela em que o sujeito senta à mesa, pede um cafezinho e três copos de água gelada, para acompanhar cinco ou seis horas de conversa.

Na mesma entrevista que concedeu a Paulo Mendes Campos, Nássara fez um longo e comovido panegírico da antiga cerveja Cascatinha, a preferida da velha guarda do samba. Aquela velha guarda que o antecedeu: Sinhô, Donga, Caninha, gente de um tempo em que as grandes músicas surgiam na Festa da Penha, ou na Praça Tiradentes. A música era tocada primeiro ali, para ver se agradava, só depois era gravada. Diz o Nássara: “Esses que eu citei eram donos do mercado e não ganhavam quase nada, porque naquele tempo nem direito autoral havia. Mas se divertiam muito, tomavam sua Cascatinha gelada… E músicas como “Pelo telefone” duravam muito tempo, continuavam sendo cantadas por vários carnavais”.

É interessante esta referência do Nássara à festa da Penha como cenário da avant-première do carnaval. De fato, originalmente uma típica festa religiosa promovida e organizada pelos pequenos comerciantes portugueses, a festa da Penha foi gradativamente se transformando em festa popular, onde preponderavam os grupos musicais da Pequena África. Sua importância se tornou tão decisiva a ponto de, nas décadas de 1910 e 1920, a Festa da Penha ter se transformado no espaço onde se decidia o destino dos sambas carnavalescos.

Como revela Rachel Soihet, Heitor dos Prazeres, Sinhô, Caninha, Pixinguinha, Donga, João da Baiana e outros expoentes da música popular lançavam na festa da Penha, que ocorre em outubro, suas músicas para o carnaval seguinte. Até o Cartola, de uma geração mais nova, fez musica sobre a festa: “Levarei dinheiro pra comprar vela de cera / quero levar flores para a santa Padroeira / só não subirei ajoelhado / para não estragar o terno que foi emprestado”.

Mais tarde, já no tempo do Nássara, e com a eleição daquele gênero musical pela classe média, a disputa se transferiu para um cenário mais elegante: os bailes do High Life. Chico Barbosa conta eu Nássara, como bailarino, era disputadíssimo nesses bailes (tano os do High Life quanto os do Bola Preta), onde pontificava com outros parceiros de memoráveis carnavais dos anos 30 e 40, Marques Rebelo, Santa Rosa. Nássara gostava de relembrar aqueles tempos felizes:

“Eu me lembro da primeira vez que entrei num baile, no Cineón, na Ramalho Ortigão. Em vez de orquestra, havia uma banda. E só tocava maxixe; mas já estava aparecendo música cantada. Tenho saudades dos bailes do High Life, um grande clube que existia no bairro do Catete, no Rio, onde eram promovidos os melhores bailes de carnaval, com a orquestra do maestro Tojero, responsável pelo lançamento de muitas composições. Era uma festa. Nós, os compositores, passávamos a noite inteira observando a reação do público no momento em que eram executadas as nossas músicas.”

Mas o Rio de hoje era alvo de inúmeras críticas. É bem verdade que muitas delas já estavam presentes em suas charges de tempos pretéritos. Creio que foi ainda nos anos 60, na Última Hora, que ele fez um decálogo, onde dizia: “Há mais assaltos por esses pagos do que nas ruas de cem Chicagos…” E tinha saudade também do tempo em que se dava mais valor à vida de bairro. O tempo em que, apesar do centro ser território neutro, cada um vestia mesmo era a camisa do seu bairro:

“Antigamente, o que contava não era só ser carioca, era ser de um bairro: eu sou de Botafogo, eu sou de Vila Isabel… Quer dizer, os bairros eram formações de mentalidade também. E existiam bairros poderosos: como Vila Isabel, o Meiér, que ainda hoje mantêm um certo cartaz. Para mim o carioca não existe, o que existe é o copacabanense, o ipanemense: é na conjugação dos bairros que há o carioca, de outro modo não havia.”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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