Por Agripino Grieco
Flagelos manifestamente piores que esses rapazes foram as epidemias que sacrificaram tantos moradores de Paraíba do Sul. Vindas da Ásia ou da Europa, a cólera, a varíola, a febre amarela, corriam as cidades do interior do Brasil, numa espécie de macabro turismo.
O Cardoso de Melo, sempre de piteira no beiço, mal interrompia para uma ligeira refeição a sua faina de fabricante de caixões de defunto. Tão rendosos se lhe tornaram esses anos de peste que mais tarde, embora fosse ele um cidadão benigno, não poderíamos deixar de notar certa melancolia em sua inatividade.
O doutor Alexandre Abraão, de barba curta e sobrecasaca longa, com uma possível ascendência judaica, e o doutor Tiago Costa, muito fanhoso e contando anedotas libertinas aos clientes dos dois sexos, lá iam pelos palacetes e pelas choupanas, a enfrentar a Camarde.
Dez ou doze cortejos diários subiam pela verde colina a cavaleiro do rio, até onde hoje dorme o comediógrafo Soares de Sousa Júnior, num túmulo desmantelado.
O velho Pascoal narrava-me que, ao descer do cemitério, os carregadores das últimas vítimas se entreolhavam em silêncio, como a indagar lá por dentro de si próprios qual deles seria o primeiro a voltar carregado. E o mais pessimista concluiria mesmo que, dentro de uma semana, talvez não restasse nenhum deles.
Muitos dos habitantes da cidade fluminense iam refugiar-se nas localidades altas de Minas, aonde não chegavam os micróbios, provavelmente assustados pela subida.
Dos que então morreram ainda bastante novos, recordava meu pai o Bastinhos, doutor Bastinhos, que se formara junto ao Mondego na mesma turma do futuro publicista Cunha e Costa e, paraibano, viera advogar em nossa terra.
Conversara ele até à tardinha na casa do escrivão Antunes, partira a queixar-se de forte dor de cabeça, passara a noite aos vômitos e, no dia seguinte, lá foi ele transportado pelos amigos, rumo da região que, ao contrário da Coimbra dos choupos e dos rouxinóis, não figura em nenhuma carta geográfica.
Episódio curioso é que uns tropeiros de Minas, antigos fornecedores de queijos e toucinho aos negociantes de Paraíba, souberam, ao entrar na cidade, ser o enterro que passava o de um seu antigo freguês e logo se incorporaram aos acompanhantes, sem prescindir dos burricos, que lá se foram morro acima, precedidos da madrinha da tropa, de campainha ao pescoço, até o portão do cemitério.
Era eu ainda novo quando Nilo Peçanha, então presidente do Estado, visitou Paraíba do Sul.
Nilo, prognata, de cavanhaque, colarinho alto e gravatinha preta, atravessou uma das ruas da cidade a pé, sempre de dentes à mostra, num sorriso para os populares que o aclamavam. Depois, foi ao banquete, no menos deselegante dos prédios locais.
Eu figurava entre os que apenas ouviam os discursos, sem sentar-se e sem comer. Falou primeiro o presidente da Câmara de Paraíba, um coronel Freixeiro, mais conhecido por Freixeirinho.
Ex-operário das oficinas da Central em Entre Rios, Freixeiro fôra pouco antes retratado e biografado na “Rua do Ouvidor”, uma revista de cavadores da capital do país, chefiados pelo perneta Serpa Júnior, e conservava retrato e biografia emoldurados em seu escritório.
No banquete, leu com esforço, gaguejando muito, a alocução redigida por um mulato, e o maior jornalista da terra, após haver sido músico do Exército. O mulato, que ouvira algumas óperas no Lírico e fora diversas vezes à Igreja Positivista, mostrava-se amigo da eloquência farfalhosa e obrigou Freixeiro a dizer que os paraibanos eram partidários ou adversários igualmente convictos e, sabendo defender os bons governos, sabiam tomar lugar na barricada a fim de combater os governos nefandos.
Falou a seguir um médico, fazendeiro de óculos e longas melenas, que intercalou, num improviso evidentemente elaborado com dias de antecedência, várias expressões latinas: “mens divinior”, “salus populi suprema lex est”, “est modus in rebus”.
Nilo agradeceu, utilizando chavões ressuscitados da propaganda republicana e concluindo na afirmação, um pouco desconcertante para os prosaicos moradores da minha cidade, de que “o que está feito está feito e o que não está feito também está feito”. Atribuía ele a frase, que já proferira em Sapucaia, a Stuart Mil!, mas o caso é que, muitos anos depois, reencontrei a audaz sentença num livro da sra. Carolina Nabuco, que a atribui ao pai.
Ainda em relação ao Nilo, contam que ele mandava o secretário tomar nota, num caderno, de todos os pedidos que recebesse e, uma vez cheio o caderno, mandava pô-lo fora e comprar outro, sem reter o nome de ninguém para qualquer favor que fosse.
Também afirmavam que, para impressionar visitantes ingênuos, fazia ele colocar no cabide da sua sala de espera bonés de generais e almirantes, a fim de que o supusessem em conferência com altas patentes do Exército e da Armada.
É sabido que Silva Marques achou a inspiração de algumas das suas “impressões da Europa” em Nísia Floresta, conferindo outros a autoria do livro a Alcindo Guanabara.
E, quanto às conferências de Nilo no Norte, Medeiros e Albuquerque evocou, sem rodeios, o nome de Raul de Leoni.