Memória Viva

Lembranças de minha cidade natal (35)

Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Falei mais de uma vez do meu conterrâneo Soares de Sousa Júnior, mas tenho agora a impressão de que não me detive suficientemente nele, passando por essa curiosa figura como que numa patinação distraída. E ele mereceria um pouco mais. Porque foi, tipicamente, o mais jornalista de quantos fizeram jornalismo ali mesmo à beira do rio Paraíba e não se tornou incolor aqui junto à baía da Guanabara.

Os que o conheceram de perto e o viram trabalhar mostravam-se impressionados com a Iepidez, a desenvoltura com que um tal paraibano enchia laudas e laudas. Cidadãos importunos a moverem-se em derredor dele, o prelo rangendo, um cheiro acre de tinta a irritar narinas, e tudo isso, longe de perturbar-lhe o estro de articulista ou noticiarista, ainda mais o excitava, havendo nele, a par de talento iniludível, um bocado de grafomania.

Em Paraíba fazia sozinho um jornal todo, anúncios inclusive, havendo aliás um desafeto seu que declarava ser ele o único também a ler essa folha…

O pai de Soares de Sousa Júnior era um padeiro célebre pelo pão Provença que fabricava. E o filho, talvez nada sabendo então da Provença de Mistral, de Mireille e dos “félibres”, regalava-se nesse pão, assegurando aos conhecidos que seria, de sua parte, um padeiro da literatura, a fartar muita gente com seus escritos. De fato, vindo ao Rio de Janeiro, desandou ele a produzir coisas como se tivesse uma pena movida a vapor.

Para a livraria Garnier compôs, com uma celeridade estonteante, alguns romancinhos, assinando-se Kock Júnior. E realmente sua maneira era hábil assimilação dos processos do francês que por tantos anos divertira o planeta com seus aburguesados humorismos, tão famoso quanto Júlio Verne e Ponson du Terrail.

Ignoramos se Soares de Sousa Júnior foi bem remunerado pela firma estrangeira que explorava o pobre Machado de Assis. Deve ter sido mal pago. Tanto que não tardou em bandear-se para o jornalismo da capital do Brasil.

Num matutino superiormente colaborado manteve a seção “Fanfreluches”, onde provou não ser um desses indigentes da sátira que carecem de recorrer a bando precatório para obter uma frase de espírito. Foi prezado por Valentim Magalhães, cuja obra mais duradoura, acima de seus versos e da sua prosa, está sendo a companhia de seguros que fundou com Filinto de Almeida. E este apreço pouco significa.

Mas é bastante expressivo que tenha sido louvado por Alcindo Guanabara. Alcindo, homem esguio e triste à maneira de um cipreste, infundia em nós, sempre que o encontrávamos, o desejo de dar-lhe pêsames, como se ele acabasse de perder um parente, tal o seu ar funéreo. Mas não era um garatujador que nos levasse a deplorar o sacrifício de tantos pinheiros postos abaixo para fazer papel destinado aos jornais.

Ainda mais valiosa a simpatia de Artur Azevedo por Soares de Sousa Júnior, pois Artur foi mestre supremo da improvisação, redigindo por conta própria ou adaptando como ninguém. Algo de comparável àquele artista napolitano que pintava dez ou doze telas enormes por dia.

E o maranhense, entendidíssimo em assuntos de teatro, estimaria no ágil fluminense o homem que, falhando na política, venceria com um belíssimo soneto premiado em concurso à hora de glorificar Vítor Hugo, recentemente morto, superando rivais bem mais agaloados na milícia das letras.

Estimaria o artesão que, entre a manhã e a noite, era capaz de transportar à nossa língua uma dessas mágicas de que as nossas platéias se mostravam sôfregas. “Frei Satanás”, “As Maçãs de ouro”, “O Rei que danou”, tudo isso foi manipulado pelo filho do padeiro, e em português não cacofônico, quase sem cálculo, sem premeditação de efeitos, e de modo a provocar felizes rinchavelhadas em espectadores que haviam jantado direito e apenas queriam uma espécie de beatitude digestiva, indiferentes às tragédias de Corneille ou Racine.

E essa fecundidade de Soares de Sousa Júnior ainda mais se acelerava quando ele se punha a serviço da atriz Ismênia dos Santos, afeita a esculpir no palco belas figuras românticas. Essa radiosa mulher, casada, mas cujo marido os cariocas nunca viram de perto, alucinava-o. Acompanhou-a Soares de Sousa Júnior com doçuras de pajem langoroso ou daquilo que o povo classificava de chichisbéu.

Ismênia, talentosíssima e com uma voz que era gorjeio e incitação à lascívia, não necessitava de reclamos para triunfar. Mas afinal até Deus, segundo um bom católico, manda tocar os sinos para atrair fiéis. E Soares de Sousa Júnior, na redação onde improvisava malícias rimadas, ou noutras redações onde era festejado por uma risonha camaradagem, multiplicava-se em louvores à comediante baiana.

Nem Sara Bernhardt, nem Eleonora Duse, nem Emília das Neves se lhe comparariam. Irritava-se o teatrólogo quando qualquer crítico fazia restrições à sua sublime intérprete, e revidava numa fúria descomposta, quase recorrendo ao pugilato.

Pugilato que não poderia manter com sucesso porque, talvez devido aos ardores da amante, já se sentia, em começos de 1893, golpeado pela doença, morrendo, aos quarenta e oito anos, de tuberculose galopante, fato explicável num homem que fazia tudo às pressas. Passara de Kock a Koch, escreveria um dos seus detratores.

E o exato é que, morto Soares de Sousa Júnior, Ismênia entrou a declinar. Engordava em excesso, como se estivesse na terra natal abusando do acarajé e do vatapá, e, apesar de tão volumosa, parecia, representando, o espectro de si mesma. Faltava-lhe o admirador que espalhava cartazes vistosos em derredor da sua arte, de seu nome…

Interessante assinalar que o “Farol”, um dos diários mais prestigiosos de Minas Gerais, nasceu em Paraíba do Sul, ainda em forma de bi-semanário. Foi junto ao meu rio que, a 11 de setembro de 1866, saiu o primeiro número da folha que, graças especialmente à colaboração de Coelho Neto, Olavo Bilac e Raul Pompéia, tanto refulgiria mais tarde em Juiz de Fora.

A principal figura do “Farol” em Paraíba foi seu fundador, Tomás Cameron, poeta cujos dados biobibliográficos não pude reunir, admirando-o talvez mais porque ele se mantém para mim numa penumbra protetora.

Mas não oculto a emoção com que percorri a parte paraibana do “Farol”. Aqueles papéis velhos, inúteis já para a quitanda ou o açougue, inflamavam-se ao toque de meus dedos trêmulos. Retalhos de figuras e fragmentos de paisagens pareciam saltar diante de mim um pouco às tontas.

Aliás, o aparecimento do bi-semanário demorou um bocadinho. Deveria ele sair quatro dias antes, a 7 de setembro, o que infundiria ao caso um belo caráter patriótico, mas o prelo não chegou a tempo, e Pedro I e José Bonifácio não chucharam, na hora devida, uma referência laudatória.

Explica-se, de resto, o atraso. A futura Central do Brasil ainda não se havia alongado até Paraíba, e aquela ferragem civilizadora teria de ser transportada em carro de bois ou em lombo de burro, através de estradas avessas a qualquer correria, embora permitissem aos viajantes de temperamento poético, tal como no tempo de Rousseau, descerem do veículo e colherem romanticamente as flores desabrochadas ali por perto…

Não se negue um relativo caráter literário ao “Farol”, apesar dos instintos comerciais que Cameron patenteou mais de uma vez. Para deleite dos que tinham o seu teatro, a sua melhor excursão, a sua mais bela aventura, numa ficção qualquer, original ou traduzida, estampavam-se lá, em rodapé, narrações de Clémence Robert, uma senhora que Camilo Castelo Branco deu como homem no seu perfil do marquês de Pombal, e desse Eugène de Mirecourt que investiu brutalmente contra a fábrica de romances de Alexandre Dumas & Cia., explorou, numa espécie de cafetinização livresca, a memória de Marion Delorme e Ninon de Lenclos e haveria acabado metendo-se numa ordem religiosa em função no Haiti.

Todavia, a literatura, parte ornamental da folha, não impedia esmeros no noticiário e mesmo nos anúncios. Desde que Balzac povoou seus mundos imaginários, mais verossímeis talvez que os verdadeiros, bem conhecemos o valor da gerência de um jornal. E o “Farol” divulgava as boas intenções do hoteleiro desejoso de ser, quanto possível, um êmulo de Vatel naquelas paragens. Esse hoteleiro era um preto dos mais reluzentes, dando a impressão de engraxar a cara todas as manhãs.

Alusões frequentes às Irmandades locais, numa época em que as novenas e as procissões obedeciam a um ritual severo, não havendo os piraquaras hesitado em escolher, para seus padroeiros, duas figuras culminantes do Novo Testamento, das mais reverenciadas em Roma, São Pedro e São Paulo. Já existia então em Paraíba uma Sociedade Amante da Leitura, que contava com quase mil e quinhentos volumes. E Tomás Cameron, zelador da biblioteca, pedia aos sócios que viessem saldar seu débito, a fim de se adquirirem mais obras, visto achar-se “exausto” o cofre da casa.

Não sei se esses livros passaram à biblioteca da Câmara Municipal. Sei, sim, que nesta li o “Amor de perdição” de Camilo, tão fascinante quanto é cacete o seu “Amor de salvação”, e chorei a morte de Mariana, a filha do ferrador, sacrificada em seu fanático devotamento a Simão Botelho, chorei-a a soluçar baixinho, para que outro leitor, o Jarbas, um cidadão de face rubra que já baldeara muitos pipotes de vinho para o ventre, não se pusesse a rir de mim.

Noticiou o “Farol”, a certa altura, um concerto do violinista Francelino, acompanhado por uma senhora paraibana que acedera em cantar uma das árias da “Traviata”. Quem seria esse Francelino? Não me recordo de lhe haver reencontrado o nome em parte alguma. E ignoro se em Paraíba teve público numeroso, se muitas pessoas ansiosas se aglomeraram em frente ao lugar em que se vendiam bilhetes para essa noitada de arte.

Os médicos eram, de quando em quando, lembrados na folha a ser transferida para Juiz de Fora. Um deles, mau cobrador, não pagaria hoje importância alta de imposto de renda. Talvez sem o saber, praticava a velha terapêutica do riso aconselhada pelo esculápio Rabelais. Entrava nas casas aos gritos, intimando os doentes, que ele não julgava doentes e apenas madraços, a deixarem a cama e voltarem ao trabalho.

Contando as suas proezas de garanhão na juventude, parecia representar, ele sozinho, uma farsa em que entrassem vários atores, isto diante de criaturas miraculadas pela sua ciência, ou melhor, pela sua falta de ciência. Os farmacêuticos detestavam-no, porque não se mostrava ele copioso em receitas, ou receitava remédios baratos, evitando os preços que redundam em segunda moléstia para os padecentes.

Vou concluir assinalando que achei, em dado número do “Farol”, a notícia da eleição do dr. Matos para vice-presidente da Sociedade Amante da Leitura. Cheguei ainda a ver esse senhor em sua verde velhice. Porque fosse médico, improvisaram-no suplente de juiz municipal. Era homem de dentes agudos e só se fez protestante para irritar o vigário da terra, com o qual andou sempre em debate…

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