Por Thiago de Mello
Minha memória trabalha com a matéria de um tempo que o próprio tempo comeu. Como é que era esse tempo?
Antes de tudo, era um tempo de tempo. Um tempo em que o tempo dava. Dava e ainda sobrava, para o que desse e viesse. Como refeição abençoada em mesa de família pobre e numerosa (a mãe aflita achando que a farofa, feita com as sobras do pirarucu do almoço, não ia dar para todos os filhos), o tempo de cada dia dava de sobra para que todas as coisas fossem feitas, cada coisa no seu tempo, sem afobação nem correria. A vida era maneira e permitia que as pessoas soubessem fazer e o que fazer do seu próprio tempo.
Falta-de-tempo foi coisa que jamais serviu de pretexto para que as pessoas deixassem de fazer o que o coração pedia. Ou de atender os afazeres de obrigação. Nem foi nunca desculpa para a falta de amor. De resto, não havia pressa. Os homens tinham um andar vagaroso, era macio o caminho das moças. É verdade que de vez em quando a gente perdia o bonde. Mas, ao contrário do poema de Drummond, ninguém chegava a perder a esperança.
Era um tempo de conversa. Tempo de diálogo. Da boa prosa e da santa conversa fiada, que sempre deixava um saldo, chamado sabedoria. Uma das esplêndidas instituições culturais da Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. De preferência, cadeiras de embalo. Melhor ainda se fossem de palhinha. Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, de onças e de serpentes, de febres e naufrágios, de assombrações e magias.
A conversa era um elemento imprescindível à vida. Como a água, a farinha e o amor.
Era um tempo em que a cidade parava para fazer a sesta. Hábito, aliás extremamente saudável, de homens e de mulheres, no qual os pais iniciavam os filhos desde a adolescência. Os chefes de família, era assim que a gente dizia antigamente, chegavam em casa para o almoço antes do meio-dia, tomavam banho, botavam o seu pijama, comiam a sua boa costela de tambaqui e já deixavam a cabeceira da mesa diretamente para a rede estendida na varanda ou para a cama da alcova, que era como se chamava o dormitório principal da casa. Eram quinze minutos, no muito meia hora de sono. Novo banho, de novo o fato branco de brim, e saíam para a etapa vespertina do trabalho.
Imperdoável falta – de gosto e de respeito – era perturbar a quem estivesse em estado de sesta. Fomos educados, de meninos, a respeitar o sono alheio como coisa sagrada. Quando alguns anos mais tarde aprendi com a poesia de Joaquim Cardozo que “o homem dormindo é mais puro do que um anjo”, me lembrei dos tempos em que pisávamos macio, caminhávamos cuidadosos, bons sentinelas do sono, incapazes de roçar, nem de levezinho, num punho ou em varanda de rede em que alguém estivesse adormecido.
A sesta não pedia apenas a sombra das alcovas e o vento dos corredores avarandados: ela se fazia também publicamente, enrolada na luz morna do começo da tarde. Dorsos recostados aos troncos das árvores da Praça da Matriz, carregadores italianos, mascates árabes, caboclos trabalhadores braçais – estiravam-se no fofo da relva, sossegadamente a ressonar. Na Praça Tamandaré era a mesma coisa. Ali pela rampa do Mercado o descanso era amaciado pela brisa que chegava do rio. Os estivadores faziam a sua sesta lá mesmo pelo roadway, sobre a maciez das pranchas de itaúba.
Era um tempo em que havia vizinhança. Em que cada morador tinha – e se prezava muito de ter – os seus vizinhos, na melhor e justa acepção de pessoas que são próximas. Vizinhos não eram apenas os que moravam na casa ao lado, ao pegado, de parede-e-meia. Eram também vizinhos os que moravam em frente ou até lá no outro quarteirão. Havia os vizinhos de quintal, cujos fundos se encontravam na cerca de acariquara. A parede de boa taipa não chegava propriamente a separar: simplesmente marcava o lugar onde, do outro lado, começava uma casa vizinha.
A vizinhança, na verdade, reunia e como que dava sutil parentesco a todos os moradores de uma mesma rua, que se conheciam não apenas de vista e de cumprimento: todos se falavam, todos se frequentavam. Na festa ou na aflição, as famílias se acompanhavam. “– Vá ali na casa de dona Dília e peça um pires de pó de café.” “Leve esta terrina de sarapatel lá para a casa do seu Pedro Marques.” “Vá lá na casa da dona Ligia Nobre e pergunte se a febre da menina dela já passou.” Eram frases de convivência entre vizinhos. A terrina voltava no dia seguinte cheinha de sapotilhas. O pires era devolvido com mingau de jurumum e tapioca. A turca dona Matilde, lá da rua Isabel, ofertava pelos domingos quibes de frigideira. Os moradores sabiam transformar a rua num espaço solidário.
Isso não quer dizer que a vizinhança estivesse formada por pessoas excepcionais. Não. Eram pessoas comuns, com as triviais virtudes e imperfeições humanas, que é como deve ser. Só que sabiam valorizar a convivência. Todos triviais e comuns. Só que – cada qual a seu modo e com o jeito de ser de cada um – participavam, faziam questão de participar, por exigência íntima, da vida da rua, da vida compartida com os vizinhos.
É bom esclarecer e convém relembrar, aos assustados e apressados moradores atuais da nossa cidade, que tudo isso acontecia num tempo em que as pessoas não tinham medos dos transeuntes desconhecidos e em que as janelas nunca tiveram precisão de grades. As janelas dormiam abertas: o único temor que então existia era o de que penetrasse pela casa, soprando de viés, algum vento encanado, misterioso causador de infalíveis dores de nuca, de lombo ou de garganta.
Tempo do traje branco. Do traje certo, apropriado ao clima da cidade. Nos dias da semana, a maioria dos homens se vestia de branco. O jaquetão, cruzado de seis botões, ou o paletó e colete. Mas era nos domingos que o branco tomava conta da cidade, traje de festa, de solenidade e de aniversário. Quem podia usava os linhos da Irlanda. O H.J., o S.120. A maioria envergava mesmo era o brim nacional. Havia lavadeiras especializadas em lavar, e sobretudo em engomar a ferro de brasa os fatos brancos. Porque antigamente o caboclo não dizia terno, dizia era fato, como aprendeu com o português, no tempo em que cabide era cruzeta. Muitas esposas, minha mãe dona Maria uma delas, se orgulhavam de engomar, elas próprias, na água rala de goma de mandioca, suando em cima do ferro, as fatiotas brancas dos maridos. O branco chega ficava brilhando. O fino da época era o fato branco, a camisa de palha de seda e o chapéu de palhinha.
A verdade é que todos marcavam presença, e todos precisavam da rua, para repartir um pedaço de vida. Cada qual com o seu jeitão, suas manias, suas pirraças, suas bondades. O seu Emídio, português taverneiro da esquina da rua Isabel com a Quintino Bocayuva, era delicado, silencioso, quando a gente menos esperava lá vinha um filhós, açucarado de presente. Já o seu Rodrigues, também português, da última casa descendo a rua, era arengueiro e sovina, não gostava de criança cantando de roda defronte da janela dele.
A Jória Bayma, com aquela sua beleza de negra de olhar amendoado e altivo (beleza que com a ajuda dos anjos ela conserva até hoje, professora aposentada), era doida por uma discussão valente, mas também amava uma conversa que abrisse caminho à canção inesquecível de sua risada. Já a Noemia, moça maior, toda sóbria, ria só com as comissuras dos lábios, mas tinha um jeito delicadíssimo de, parada debaixo do lampião, dar um volteio lindo aos tornozelos.
Tempo do resguardo. Depois do parto, confiado às mãos amorosas de parteiras competentes, as mulheres atravessavam por um largo período de cuidadoso descanso, dito resguardo, que durava coisa de quarenta dias. Parentas e amigas chegavam para cuidar da criancinha e poupar esforços à mãe, que passava a maior parte dos dias deitada e recebia alimentação especial, na base de canjas, caldos, mingaus de caridade. Canja de galinha gorda, caldo de mulher parida. O menino batia à porta da casa e entregava: “Aqui está este frango que a mamãe mandou para o resguardo da dona Josefa”. Não podia faltar era a Água Inglesa Granado, vinho reconstituinte, nem a marmelada Colombo. Em compensação, às visitas, frequentes durante os quarentas dias do resguardo, era servido o mijo da criança: vinho-do-Porto ou aluá de abacaxi, com sequilhos de araruta feitos em casa.
Era um tempo em que todas as coisas boas, gostosas e bonitas a gente dizia que eram paidéguas. Que flor paidégua! Mas a Maria Eneida é muito da paidégua! Professor paidégua é o velho Agnello.
Tempo em que havia o gosto bom de visitar e o contentamento indisfarçável de receber uma visita. Era uma afirmação de afeto, um exercício de amizade. Nenhuma visita ficava sem pagamentos. Visita de casal quase sempre se fazia pela noite ou em tardes de domingo. As amigas e comadres se visitavam pelos dias da semana. Era visitas de conversas, largas. Tão compridas que se gerou, naquela Manaus, o lindo costume de passar o dia.
Uma família, os pais com toda a criançada, era convidada por outras para passar o dia em sua casa. Como era bom! Ia-se de manhã cedo, voltava-se já escurecendo, depois da merenda. Uma única pessoa, moça ou rapaz, nem precisava combinar de antemão: ia, simplesmente chegava, era recebida com o agrado e a naturalidade de gente querida. “Mamãe, hoje, depois do Ginásio, eu vou passar o dia lá na casa do seu Tude”. “– Está bem, vá. Mas não dê lá muito trabalho à dona Santinha”.
“Fazer quarto” era como se chamava a visita a alguém enfermo. Também se usava a expressão “dar quarto”. E nunca eram visitas ligeiras e formais, de puro protocolo. A intenção era acompanhar, de repente poder ser de serventia.
Tempo de bênção. Os filhos tomavam a bênção aos pais, com beijo de mão e de face. Não somente na meninice. Marmanjos de barba, mulheres já casadas, nunca deixavam de pedir a bênção aos pais (e aos tios, e aos padrinhos), fosse em despedida caseira, fosse em encontro de rua. Era mais do que uma praxe. As frases tão breves vinham impregnadas de uma significação transcendente: “Deus te abençoe”, “Deus te fala feliz”.
Quero fechar essas anotações em torno dos costumes que marcaram a vida da capital amazonense com a notícia do grande espanto, grande pena, que tive, quando, de retorno ao Brasil, depois de ausência demorada, ouvi do meu amigo Lucio Kovarich, o notável sociólogo paulista, a informação de que Manaus já se incluía entre as cidades brasileiras de mais alto índice de criminalidade. Já não bastasse a elevada mortalidade infantil, filha sinistra da subnutrição, era espantosa a estatística dos homicídios, assaltos, estupros.
Contei então para o meu amigo que na Manaus do meu tempo de rapaz – de repente parece que foi ontem, de repente parece uma época já longínqua demais – um assassinato, de resto acontecimento bem raro, provocava assombro. O crime não fazia parte da sua ordem natural das coisas, feria a sua índole sossegada. O forte da cidade não era a criminalidade, mas a cordialidade.
Estou me lembrando agora do Viriato. Meu contemporâneo no Ginásio, de curso mais adiantado. Frequentava a sua casa, um sobrado de azulejos na antiga Treze de Maio. Sua amizade me deixava orgulhoso, porque Viriato era de longe o melhor goleiro da cidade, jogava no Olympico. Tinha olho de gato. Um anoitecer, em plena Eduardo Ribeiro, Viriato matou uma moça de vida alegre, ou de triste vida, como queiram. A cidade, perplexa, não podia acreditar. Adolescente, fardado de ginasiano, fui à Penitenciária do Estado, me inscrevi para visita-lo. Diante dele, emocionado, não sabia de que falar, acabei relembrando uma defesa linda que ele fizera, poucos dias antes, num jogo no campo do Parque Amazonense. À despedida, Viriato me abraçou e me prometeu: “Quando eu sair daqui, vou te dar as minhas joelheiras”.
(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)