Memória Viva

Manaus350: A Comarca do Alto Amazonas

Postado por Simão Pessoa

Em 1832, a Regência do Império promulgou o Código do Processo Criminal, instrumento jurídico destinado a unificar a legislação existente e dar nova organização judiciária e administrativa às províncias. No dia 25 de junho de 1833, o governo da Província do Grão-Pará baixou um decreto contendo as diretrizes para execução do Código do Processo Criminal do Império no território sob a sua jurisdição, dividindo-o em três comarcas: a do Grão-Pará, a do Alto Amazonas e a do Baixo Amazonas.

A criação da Comarca do Alto Amazonas, em substituição à antiga Capitania de São José do Rio Negro, contrariava as aspirações autonomistas dos amazonenses legitimamente alimentadas há tanto tempo. A nova comarca continuava subordinada ao governo provincial paraense. Além disso, o novo território havia sido reduzido consideravelmente. Os antigos limites geográficos (estabelecidos por Mendonça Furtado em 1758, ao tempo da instalação da Capitania de São José do Rio Negro) recuavam do outeiro de Maracá-Açu para a serra dos Parintintins.

Como “prêmio de consolação”, o Lugar da Barra ganhava a prerrogativa de sede de um dos quatro termos da Comarca do Alto Amazonas, passando automaticamente à categoria de vila e podendo eleger a sua Câmara Municipal, bem como organizar a sua estrutura administrativa e judiciária, com um juiz de direito, um juiz municipal, um juiz de órfãos, um promotor público e um comandante militar, além de um administrador da Recebedoria da Fazenda Nacional e um vigário-geral.

Ao tornar-se vila, o antigo Lugar da Barra passou a chamar-se Manaus pela primeira vez. Os povoados de Ega (Tefé), Luséa (Maués) e Mariuá (Barcelos), que já eram vilas, foram elevados a sedes dos outros três termos da Comarca do Alto Amazonas. As outras vilas da antiga Capitania de São José do Rio Negro foram reduzidas a freguesias.

Ao termo de Manaus, que se transformara em cabeça da Comarca, ficaram subordinadas as freguesias de Saracá (Silves), Serpa (Itacoatiara) e Santo Elias do Jaú (Airão), e as povoações de Amatari, Jatapu e Uatumã. População total: 15.775 habitantes.

Ao termo de Tefé ficaram subordinadas as freguesias de Coari, Maripi, Fonte Boa, Amaturá, Javari e Tabatinga, e as povoações de Parauari, Caiçara, São Matias, Boa Vista e Tocantins. População total: 5.865 habitantes.

Ao termo de Maués ficaram subordinadas as freguesias de Tupinambarana (Parintins), Araretama (Borba) e Canomá, e a povoação de Maçari. População total: 8.132 habitantes.

Ao termo de Barcelos ficaram subordinadas as freguesias de Itarendaua (Moura), Carmo, Aracari, Caboquena, Bararoá, Santa Isabel e Marabitanas, e as povoações de Boa Vista, Caldas, Camanao, Câmara, Capela, Castanheiro, Coané, Curiana, Guia, Iparana, Lama-Longa, Loreto, Mabé, Maracabi, Santa Ana, Santa Bárbara, São Felipe, São Gabriel, São Joaquim, São José, São Marcelino, Santa Maria e São Pedro. População total: 10.811 habitantes.

De 1835 até 1839, o grito de libertação dos Cabanos encheu de sangue a Província do Grão-Pará. Conforme escreveu Gustavo Moraes Rego Reis, no livro “A Cabanagem”, muito embora levada a efeito contra as autoridades constituídas, essa luta brutal visava os portugueses, denominados pejorativamente de “bicudos”, “marinheiros” ou “pés de chumbo” – grandes proprietários da terra e da escravaria e detentores irredutíveis das posições de mando administrativo e político –, contra os quais se insurgiu a população.

Na tarde de 6 de março de 1836, os cabanos chegaram a Manaus. O comandante de armas, Manuel Machado da Silva Santiago, estava foragido há meses, com medo de ter o mesmo fim do irmão, José Joaquim da Silva Santiago, comandante militar do Grão-Pará morto pelos cabanos. O juiz de Direito Henrique João Cordeiro não ofereceu resistência. Comandados por Bernardo da Sena, os cabanos tomaram a fortaleza e o quartel e se apossaram da vila. Em frente de Manaus, as embarcações dos invasores estavam arrumadas em círculo, prontas para qualquer emergência.

Na manhã seguinte, Bernardo da Sena foi recebido pela Câmara Municipal e homenageado com um Te-Deum Laudamus entoado pelo vigário-geral, padre João Pedro Pacheco. O líder cabano distribuiu os cargos públicos entre as pessoas mais estimadas e importantes da terra, premiando o vigário-geral com o cargo de juiz de Direito.

Sena viajou ao baixo Amazonas deixando o capitão Manuel Antônio Freire Taqueirinha no comando militar de Manaus. Ao retornar, convidou Taqueirinha a permanecer no cargo, mas o convite foi recusado. No dia 2 de junho, os dois se desentenderam a porta do quartel e Bernardo da Sena foi morto pela tropa. Taqueirinha foi aclamado chefe militar dos rebeldes.
Na madrugada de 31 de agosto, a Guarda Nacional e um grupo de voluntários expulsaram os cabanos de Manaus, depois de encarniçados combates pelas ruas da cidade. Mais uma vez o vigário-geral entoou o Te-Deum Laudamus – agora em homenagem a sua Majestade o Imperador D. Pedro I.

Em 1848, a Assembleia Provincial do Grão Pará editou a Lei nº 147, de 24 de outubro, elevando as vilas de Cametá, Santarém e Manaus à categoria de cidade, esta última com o nome de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, fazendo retornar a antiga denominação do povoado que começara a se formar 179 anos antes, ao redor da fortaleza de São José do Rio Negro. No município, além de Manaus, existiam as freguesias de Itacoatiara, Saracá e Jaú e as povoações de Amatari, Jatapu e Uatumã.

No último dia do ano de 1849, desembarcou na cidade o naturalista inglês Alfred Russel Wallace. Ele observou que a cidade assentava-se em um terreno irregular e era cortada por dois igarapés, e sobre cada um deles havia duas pontes de madeira. As ruas eram “dispostas de maneira irregular”, mas não tinham qualquer tipo de calçamento e, além disso, eram “esburacadas e cheias de altos e baixos, tornando bem desagradável caminhar-se por elas à noite”. As casas eram geralmente de um só piso, cobertas de telhas e assoalhadas com tijolos. As paredes eram quase sempre pintadas de branco e amarelo e as portas e janelas de verde. Wallace observou que era “bem agradável o aspecto do casario rebrilhando ao sol” e notou, ainda, que, na cidade, havia duas igrejas, mas eram “muito pobres e bem inferiores a de Santarém”.

Naquela época, a população da Barra estava calculada em torno de cinco ou seis mil habitantes, sendo em sua maior parte composta por índios e mestiços. Wallace suspeitava que fosse “bem provável” não existir, entre as pessoas nascidas no local, uma única de “sangue inteiramente europeu”, pois destacava que a miscigenação entre portugueses e índios tinha sido “considerável”.

Em 1850, o escritor Lourenço Araújo do Amazonas informava, então, que a cidade crescia de maneira desordenada, com a cessão de terras sem nenhum critério e sem atentar para a regularidade e formosura da cidade, transformando-a em uma azáfama do Rio Negro. É dele a seguinte descrição da cidade da Barra:

“Está em aprazível colina cortada de igarapés, com três pontes de madeira. É salubre a se não conhecer moléstia dominante as que aí chegam. Tem três bairros: São Vicente, a oeste, Matriz, no centro, e Remédios, a leste, todos aprazíveis e arejados, e têm pontos pitorescos, como o dos Remédios, de onde se avista o resto da cidade, confundidas as casas com a floresta e os mastros das embarcações estacionadas nos igarapés. Tem a cada lado, oeste e leste, uma cachoeira, a que aflui a população a passeios e banhos, principalmente a de oeste, a não saberem ainda devidamente apreciar.

Principiou esta cidade pelo estabelecimento de algumas famílias de barés, banibas e passés, à sombra da Fortaleza de São José do Rio Negro. Sua decadência agravou-se ainda não só pela revolução da Independência, como pelas desatinadas revoluções que se seguiram até a horrorosa rebelião de 1835, quando a vila tocou a menos de um terço do que fora e proporcionalmente retrogradou a população em instrução e moral.

Consta a cidade de uma praça e 16 ruas, pela maior parte curtas e estreitas e ainda por calçar e iluminar. As casas são cobertas de telhas, e poucas de sólida fundação, porém são cômodas, espaçosas e desafogadas. Os sobrados são ainda em diminuto número. As lojas carecem de maior gosto em sua peculiar ostentação.

Possui a cidade duas igrejas, a saber: a Matriz de N. S. da Conceição e a capela de N. S. dos Remédios, ambas de fundação à imitação da dos jesuítas no país, isto é, ligeira, frágil e destituída de arquitetura, o que compensa o povo com um trato e asseio que lhe fazem honra. Possui mais um quartel, em uma bela praça, um armazém da arrecadação da Fazenda Nacional, uma olaria pertencente à mesma Fazenda e algumas casas para habitação dos empregados.

Já não se percebem os vestígios do Palácio dos Governadores (porque a sua fundação era a mesma da igreja jesuítica), da fábrica de tecidos de algodão e de alguns outros edifícios de propriedade nacional. Avultam ainda ruínas da Fortaleza de São José do Rio Negro e do Hospital de São Vicente; entre tudo o que sempre faltou um cais ou rampa de desembarque.

Seus habitantes provêm de banibas, barés e passés, mas com a trasladação da capital de Barcelos para o Lugar da Barra, e conseguintemente de seus empregados e indivíduos, cujo tráfego tinha relação com aquela categoria, é muito natural que se deparem descendentes ainda de paianas, uerequenas e Manaus; são em numero de 900 brancos, 2500 mamelucos, 4080 indígenas, 640 mestiços e 380 escravos; tudo em 900 fogos assás dispersos.

Vestem a moda séria e asseiadamente; as mulheres com gosto e luxo, realçados por natural superior graça. Passado parte do dia em banhos, torna-se-lhe o asseio uma qualidade inata. Empregam o tempo que gastam na cidade (inverno ou enchente) em festas de igreja, bailes, jantares e passeios, e os levam ainda em diversão a seus trabalhos (vazão ou vazante) aos lagos e praias. Dão-se a empregos eclesiásticos, civis e militares, mui assiduamente ao comércio, quando escassamente à agricultura, que não excede de algodão e café, além de substâncias alimentares.

No que se chama comércio se compreende a pesca do pirarucu; a manipulação de manteigas de tartaruga e peixe-boi, e a extração de drogas preciosas. Seu principal sustento é tartaruga, peixes e aves, do que tudo há abundância; e carne de gado só aos domingos, e com mais frequência no tempo de enchente, quando o gado é descido do Rio Branco.

Como centro de administração da comarca, é Manaus a residência de um vigário geral, um comandante militar, um juiz de direito, um inspetor de recebedoria da Fazenda, um juiz de órgãos, um promotor e de mais autoridades territoriais. Tem um tribunal de jurados e um colégio eleitoral e quatro companhias da Guarda Nacional.”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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