Um personagem do século 20 pode encerrar esta história da Amazônia de ontem. O ano é 1906 e anoiteceu na aldeia dos apopokawa-guarani. Os índios estão reunidos e um deles, todo pintado, canta e agita com força o maracá. Batendo no chão ritmadamente, as mulheres sentam-se em fila, com a cara voltada para o Oriente.
À luz das fogueiras, a cantoria vara a noite. Finalmente, só o pajé canta, gesticulando e contorcendo o corpo, em transe. Depois, estende os braços e coloca as mãos na cabeça e no corpo de um jovem branco, o único no meio de tantos índios. Este ouve, compenetrado, um nome: Nimuendaju.
Termina então o ñemonagaraí, a cerimônia de batismo dos índios apopokawa-guarani e, com ela, a vida do branco Curt Unkel. Começa a do índio Nimuendaju, que os brasileiros iriam depois reconhecer como o maior de todos os seus etnólogos.
Na língua guarani, nimuendaju significa algo como “aquele que soube abrir seu próprio caminho neste mundo e conquistar seu lugar”. E poucos o mereceram tanto quanto o órfão alemão nascido em Jena, em 1883. Chegou ao Brasil com vinte anos e se ligou aos índios não por motivos intelectuais, mas por forças mais fortes ainda, íntimas. “Sou um índio, sempre fui”, dizia.
Participou de quarenta expedições de pesquisa e pacificação de índios entre 1905 e 1939. Traduziu suas línguas e lendas. Amigo e colaborador de Cândido Mariano da Silva Rondon, ajudou-o a descobrir o interior da Amazônia e a fazer entre a nação branca e os selvagens um dos primeiros contatos merecedores do nome de “civilizado”.
Casou-se com uma índia apinagé. O pai adotado em substituição ao que morreu na Alemanha quando ele não tinha dois anos de idade foi um índio. E índios foram os que o escolheram como chefe de uma tribo para substituir um cacique morto.
Mas Curt Nimuendaju foi mais que um humanista devotado à causa de um povo vencido. Como muitos dos cientistas que, a partir do século 19, vieram para a região em busca de experiências para si mesmo e conhecimentos para o mundo, ele destruiu a idéia da Amazônia de ontem como um lugar onde o civilizado foi apenas impor seus valores. Para a Amazônia, o homem branco foi também aprender. E não só a identificar espécies exóticas. Às vezes, a viver.
O nome inconfundível, com o qual ingressou nos anais científicos, revela, pelo hibridismo da sua formação, uma singularidade impressionante. A fase européia de sua existência evoca as penumbras da floresta da Turíngia, que lhe povoaram a mente de lendas e fábulas, desde a infância.
Apesar de ter nascido em Jena, não frequentou a famosa universidade local, que desde o século 16 permitia a formação de sábios em mais de um ramo. Preferiu atirar-se à vida aventureira, embora desprovido de conhecimentos universitários, que possuíam os predecessores, cujos relatos de peregrinações por desconhecidas paragens o seduziram. Freqüentou apenas o curso secundário, consoante declararia despretensiosamente a Herbert Baldus: “Não gozei de nenhuma espécie de instrução acadêmica”. Seria, pois, um autodidata.
Também nenhum programa de trabalho formulara, ao contrário de Martius e Spix, à frente de uma expedição científica oficialmente organizada, e da maioria dos continuadores de explorações do território brasileiro, à custa de governos ou de instituições culturais. Modestamente, Curt Unkel deixou a terra natal, em busca de aventuras. Cruzou o Atlântico possivelmente incluído em alguma leva de imigrantes.
Ao conhecer São Paulo, porém, decidiu ali ficar, apartando-se da maioria dos companheiros de travessia, atraídos por elos raciais aos núcleos alemães do Rio Grande do Sul. Porque assim decidiu, não se sabe ao certo. Muito menos para que. Nem há notícia de como lhe decorreu a vida no biênio de adaptação ao novo ambiente.
Todavia, não tardou em registrar o primeiro feito surpreendente. “Conheci o guarani – confidenciou em “Lenda da criação e juízo final do mundo” – em 1905, no oeste de São Paulo e vivi em suas tabas, com poucas interrupções, até 1907, na cidade de Batalha, como um deles”.
Não exagerava na declaração verídica. Definiu-se-lhe o destino glorioso, naquela experiência inicial, que lhe permitiu a convivência com os nativos. De tal maneira se lhes afeiçoou, tão sinceras se repetiam as provas de sua amizade leal, que resolveram aplicar-lhe apelido indicativo da transformação pessoal. Como simples criança, ao receber o nome que a individualiza, submeterem-no à cerimônia do batismo, presidida pelo pajé.
Ao fim, o hóspede perdera o nome primitivo e ganhara credenciais prestigiosas, para empreender pesquisas, a que normalmente se mostram refratários os desconfiados aborígines. Ao invés de individualidade estranha aos seus grupos, acolhiam-no como um apreciado amigo de confiança, que francamente comungava em seus sentimentos e tinha o direito de entrar-lhes no segredo das práticas religiosas. Não seria somente o interesse de investigação que inspiraria ao filho adotivo das selvas a aceitação de novo título, indicativo da transfiguração de sua personalidade.
Na realidade, quanto mais estudava a psicologia indígena, mais se afeiçoava àquela gente necessitada de assistência e proteção, que não se regia pelos postulados do Código Penal. E assim conseguiu, pois que se integrara na comunidade cabocla, conhecer-lhe a vida na intimidade atual e passada, pela recordação das lendas, mitos e culto dos seus heróis consagrados.
Mais do que pelos índices antropométricos dos indivíduos, empenhava-se em avaliar-lhes as características psíquicas, pela compreensão das aspirações coletivas, as superstições, o comportamento diário e nas ocasiões extraordinárias. Quando regressou à capital paulista, depois de um mergulho naquelas rudes paragens, tinha em mãos os primeiros apontamentos, reveladores de vocação merecedora de estímulo.
Acolhido pelo Museu do Ipiranga, então dirigido pelo antropólogo H. von Ihering, cujas idéias a respeito da incorporação dos aborígines aos meios civilizados não lhe agradaram, preferiu alistar-se entre os colaboradores do Serviço de Proteção aos Índios, a partir de 1911. Aplaudiu-lhe os propósitos humanitários, que se harmonizavam com os seus próprios, e decidiu prestar-lhe o mais abnegado concurso. Frequentou-lhe os postos indígenas, “a principiar pelo de Araribá (dos Caingang) em São Paulo, viajando, estudando, escrevendo, construindo uma obra que abrangia toda a ologênese cultural das tribos que visitou”, assinalou Nunes Pereira, ao recordar-lhe a vida e os trabalhos perante o Instituto de Etnologia e Sociologia do Amazonas.
Peregrinou pela região costeira de São Paulo, por oeste, ao sul de Mato Grosso, pelo sul até o Paraná. Escrevia sempre. Entretanto, não se tornaram conhecidos, de princípio, os resultados de suas observações, que só em 1914 começaram a divulgar-se em revistas especializadas, especialmente as que se consagravam à Etnologia, em Berlim, Viena, Paris, Stuttgart.
Eram, em maioria, vocabulários do linguajar desconhecido, que necessitavam de correções, dos Appocuva, dos Manajé, dos Timbira, dos Parintintin, e dezenas de tribos da Amazônia, para onde transferira o seu nomadismo científico, por volta de 1913. Elaborava igualmente ensaios de maior extensão, como a “Lenda da criação e juízo final do mundo”, “The social structure of the Remkomekra (canela)” e vários outros, que lhe espelhavam o conhecimento cabal dos costumes indígenas.
Redigia-os habitualmente, em alemão, como se ainda fora Unkel, mas os sentimentos, a simpatia transbordante com que se referia aos irmãos adotivos, expressavam à justa mentalidade adquirida, de Nimuendaju. Deixou, a propósito, uma confidência: “Frequentei, com predileção, a companhia dos velhos e, de modo especial, a dos pajés (médicos) e me fiz instruir durante horas seguidas sobre os mistérios da velha religião. Até hoje eles se mostram orgulhosos do seu aluno”.
Viajante inacessível ao cansaço, andou por grande extensão do território brasileiro, ora a serviço do Museu Nacional, do Paulista, do Paranaense, ora para os museus estrangeiros, de Gotemburgo, Dresden, Hamburgo, Leipzig, para o Carnegie Institute ou para a Universidade da Califórnia.
“São quarenta e três anos de viagens”, afirmou Nunes Pereira, “fazendo escavações, pacificando, coligindo material linguístico, estudando a cultura material e espiritual de inúmeras tribos, procedendo como topógrafo e cartógrafo que era, o levantamentos das regiões percorridas, ilustrando os próprios trabalhos a bico-de-pena e registrando melodias indígenas”.
Cuidava especialmente de etnologia, versada em dezenas de contribuições, inclusive a última, referente aos Tikuna, “trabalho minucioso, de uma extraordinária densidade de observações de fatos e de conclusões, representando, de modo total, a cultura desse povo”, conforme apreciou Nunes Pereira, que teve em mãos os originais.
Para aperfeiçoá-lo, desceu pela terceira vez o Solimões, como antes fizera em inúmeros rios da Amazônia, de São Paulo e vizinhanças, confiando na resistência do seu organismo, que não mais lhe permitiu os triunfos anteriores.
Ao sucumbir, como talvez desejasse, em viagem de estudos, interrompeu a trajetória exemplar, percorrida abnegadamente pelo fervoroso amigo dos silvícolas, que lhes observou com esmero as peculiaridades da cultura material e organização social. Para melhor defini-las, houve mister localizá-las com a maior aproximação possível. Daí se originou a longa série de esboços científicos e mapas, que acompanhavam cada reconhecimento por rincões cada vez mais distantes.
Essas explorações – “um périplo espetacular de cientista ao longo da costa e do interior do Brasil” – afirmou quem lhe conhecia a obra admirável, permitiram que ele, como topógrafo e cartógrafo, enriquecesse as mapotecas da nossa terra com trabalhos de alta valia.
Para ampliar ainda mais a sua colaboração exclusivamente geográfica, organizou “um mapa de proporções, para o Museu Paraense, a pedido de Carlos Estevão, mostrando as localizações remotas, os deslocamentos, as migrações das tribos indígenas em nosso país”, afirmou Nunes Pereira.
Achava-se, mais do que ninguém, credenciado pelos ensaios anteriormente divulgados, para empreender tamanha obra, que exigia conhecimentos de etnologia, de história, de localização de tribos inclinadas ao nomadismo. Não obstante, conseguiu ultimá-la e, ainda mais, reduzi-la em cópias, entregues à Inspetoria de Índios do Pará, à Universidade de Colômbia, a pedido de Robert Low, que lhe propiciara a publicação, em inglês, de “The Gamela indians” e outros ensaios.
Foi dessa forma que Nimuendaju cooperou para um maior conhecimento da terra brasileira e das populações marginais, que ainda se encontram agrupadas nas regiões que explorou. Ainda mais lhe avultou a contribuição geográfica, depois que lhe foi examinado o espólio científico, em boa hora confiado ao Museu Nacional, onde os estudiosos podem, até hoje, consultar os escritos e mapas referentes ao Brasil. Não é pouca porcaria.