Memória Viva

Meu primo Cazuza não mora mais aqui

Cazuza, Hilton Frazão e Hamilton em um encontro de velhos boleiros
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

“A dor da gente é dor de menino acanhado / Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar / Que salta aos olhos igual a um gemido calado / A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar”, cantava o violeiro Raimundo Sodré, nos longínquos anos 80 do século passado.

Nesta última quarta-feira, 20, Dia de São Sebastião, meu primo José Alberto Régis Batista, o “Cazuza”, atravessou o espelho e foi visitar a fortaleza mística de Aldebarã, localizada na estrela mais brilhante da constelação de Taurus.

Este início de ano tem sido pra mim um rosário de desassossego, dores, tristezas e provações pela perda exagerada de amigos queridos derrotados pela pandemia desenfreada que assola a cidade: Marquinhos Barbosa, Kayro Robson, Danny Costa, Nelson Pilão, Agnaldo Oliveira Jr., Raimundo Pirulito, Izinha Toscano, Milton Matos, Gilmar Barbosa, Aldemir Cardoso, Albino Aleixo, Raimundo Noronha, José Gadelha, Wellington Redman, João Sabino Neto, Arnoldo Carneiro, Mário Gilson, Francisco Chaguinha, Wandinho Manaus, Margareth Magalhães, Sulamita Farias, Godofredo Gomes, Beto Mafra, Netinho Albuquerque e Kiko Ribeiro, para só citar alguns.

Só que agora a dor está sendo mais intensa porque perdi um irmão mais velho e só quem já sofreu a morte de um irmão sabe do que se trata. É uma dor inexplicável.

Relembrar minha história com o Cazuza é a única maneira que encontrei para honrar sua memória. O Cazuza era uma pessoa do bem – e isso simplesmente diz tudo.

Cazuza, esse vosso escriba e o designer Sérgio Bastos em um dos aniversários do Pai Simão

Nos anos 60, minha saudosa tia Maria Pessoa, irmã do papai, morava na Rua Parintins, entre as ruas Waupés e General Glicério, na Cachoeirinha, nas proximidades da Praça 14 de Janeiro.

A partir de 1963, quando eu já estava com sete anos de idade, fui morar com ela. Sua casa era imensa – sala de visitas, quatro ou cinco quartos, corredor, sala de jantar, cozinha e banheiro. Parecia uma estância particular.

É que além de ter uma família grande (meus primos Cazuza, Raquel, Rossicler, Rosinete e Socorro), tia Maria sempre estava abrigando vários parentes oriundos de Santarém (meus primos Francisco, Raimundinho, Ronaldo, Macário, Manuel e Querubim eram hóspedes constantes do lugar).

Talvez pela proximidade com a Praça 14 de Janeiro, aquela parte da Cachoeirinha era uma festa de pregões.

Tinha o cascalheiro, cuja inesquecível batida de triângulo ouvida a 100 metros de distância já deixava a molecada em polvorosa.

Tinha o vendedor de “quebra-queixo”, uma iguaria feita de açúcar queimado e castanha-do-pará, que era cortada na hora e servida em um pequeno pedaço de papel de embrulho nas cores verde-musgo ou rosa-choque.

Tinha o picolezeiro, com sua pequena caixa de isopor e incontáveis sabores de nomes musicais: taperebá, murici, bacaba, buriti, cupuaçu, açaí, mangaba, leite holandês, milho verde, coalhada.

Tinha o tocador de realejo com seu periquito verde.

Tinha o vendedor de “rala-rala”, cujo carrinho de duas rodas possuía dezenas de garrafas coloridas. Ele passava o ralador em uma imensa pedra de gelo, aí depositava o gelo ralado dentro de um copo e completava a alquimia colocando no copo o líquido de uma das garrafas: groselha, morango, cereja, anis, hortelã, uva, maracujá, jenipapo, laranja, tangerina. A gente escolhia mais pela cor do que pelo sabor.

Tia Maria e minha prima Raquel, que depois se casaria com o advogado Lourenço Braga

Do que ainda me lembro desses tempos imemoriais na casa da tia Maria Pessoa?

Lembro-me dos espelhos cobertos às pressas para nos protegermos dos relâmpagos que riscavam o céu quando os temporais começavam, da imagem de Santa Bárbara (“Iemanjá”) e de São Sebastião (“Xangô”), expostos orgulhosamente na sala de visitas, com pequenas luzes acesas que lhes acentuavam a beatitude, dos milhares de bibelôs de porcelana na mesa de centro, da coceira no peito do emplastro Sabiá, quando ela desconfiava que eu estivesse com espinhela caída (seria minha tosse crônica?), do felpudo cachorro Tupã enroscado em minhas pernas, da reza com pião roxo pra curar uma ou outra “dismentidura” na coxa do Cazuza, das assinaturas dos colegas de classe no gesso do meu braço fraturado na casa da dona Neca, do rádio transmitindo a Crônica do Dia e anunciando a hora do almoço, da tampa de leite Ninho virando rodinha presa no cabo de vassoura.

Como tia Maria era uma exímia tocadora de acordeão, minhas lembranças mais nítidas são das festas juninas passadas em sua residência, da fogueira de São João, das adivinhações com pingo de vela na bacia com água, da faca enfiada no tronco da bananeira (no dia seguinte, afiançavam os entendidos, estariam as iniciais da minha futura cara-metade!), das brincadeiras de quadrilha, anarriê, balancê, lá vem a chuva!, é mentira, caminho da roça, arco-íris, coroa de flores, serpentina, olha a cobra no caminho!, troca de pares, meia volta!, das comidas de época, milho assado, canjica, bolo de macaxeira, aluá; dos vulcões japoneses, pistolas de lágrimas, morteiros, estrelinhas, busca-pé, diabinho maluco, lápis colorido e palha de aço se transformando em fogo de artifício na mão dos moleques menos abonados.

Tempos bons que não voltam mais.

Na época, eu dividia um quarto com Cazuza, o caçula da tribo da titia, que era seis anos mais velho do que eu (aniversariamos no mesmo dia, 10 de maio) e acabou sem querer me transformando em um voraz consumidor de histórias em quadrinhos – vício pelo qual lhe serei eternamente grato.

Aos 15 anos, Cazuza começou a trabalhar como vendedor da Livraria Colegial e sempre trazia revistas de HQ em consignação para ler em casa. Depois que lia, guardava cuidadosamente os gibis novinhos em folha em uma gaveta para devolver no dia seguinte.

De vez em quando, eu, na maior cara dura, roubava alguns gibis da gaveta e depois repassava para minhas irmãs Simone e Silene, sem saber que aquilo era descontado no salário do meu primo.

Ele nunca ter me dado umas porradas por isso diz mais do caráter dele do que do meu.

Socorro, Rossicler, Cazuza, sua esposa Lya e sua filha Lílian, no Solarium Fest

O certo é que, já naquela época, meu grande ídolo no futebol era o Cazuza.

No campinho de várzea ao lado de nossa casa (onde depois virou a quadra da Rivera), cujas partidas eu acompanhava da janela, o Cazuza costumava infernizar as zagas adversárias com dribles desconcertantes, cabeçadas fulminantes e chutes indefensáveis.

Quando eu crescesse, queria ser como ele.

Em 1965, faltando duas semanas para o início do campeonato amazonense juvenil, o técnico Rubem Correia foi chamado para montar e dirigir a equipe juvenil do Olímpico. No jogo de estreia, o Olímpico perdeu do Nacional de 3 a 1. No jogo seguinte, nova derrota para o América por 1 a 0.

Os dirigentes do Clube dos Cinco Aros ficaram cabreiros. Rubem Correia, que antes já havia treinado o Botafogo e o Ypiranga, da Cachoeirinha, resolveu garimpar novos talentos entre os peladeiros da cidade para reforçar seu elenco.

No campo do Oratório Domingos Sávio, na Praça 14, descobriu Wandi, Mário Bacuri e Cazuza. No campo do Labor, em Educandos, descobriu Orlando e Bioca. No campo do Penarol, em Petrópolis, descobriu Pompeia e Zequinha. Montou um timaço.

Aos 16 anos, Cazuza começou a jogar de centroavante no juvenil do Olímpico Clube. Foi tricampeão (1965, 1966 e 1967) e três vezes artilheiro do campeonato amazonense, jogando ao lado dos moleques já citados e de outros grandes craques como o goleiro Iraúna Jacob (hoje um conceituado médico cirurgião), o lateral direito Calderaro (hoje professor de Educação Física) e o armador Mário Simões (hoje engenheiro civil), entre outros.

Tenho absoluta certeza de que Cazuza seria um dos melhores jogadores profissionais do Amazonas se não tivesse tido sua brilhante carreira interrompida abruptamente aos 21 anos, quando um estúpido zagueiro, após um drible desconcertante, arrebentou maldosamente sua perna direita. A história se passou mais ou menos assim.

Cazuza envergando a camisa do Tufão da Colina

Em 1971, Cazuza e Mário Bacuri aceitaram um convite do time profissional misto do São Raimundo para participarem de dois amistosos contra times de Santarém (PA).

Como eram apenas aspirantes do Olímpico Clube, não viram nenhum inconveniente em aceitar o convite e se mandaram para a Princesinha do Tapajós, com a delegação do “Tufão da Colina”.

O São Raimundo venceu as duas partidas graças a quatro gols de Cazuza e um de Mário Bacuri (3 a 1, no São Francisco, e 2 a 1 no São Raimundo local).

Na volta, os dois aspirantes foram cortados do time juvenil do Olímpico e proibidos de participar de qualquer competição profissional ou amadora.

Os dirigentes do São Raimundo compraram a briga, apelaram para a Justiça Desportiva, fizeram o escambal.

Mário Bacuri e Cazuza foram contratados pelo São Raimundo e conquistaram o direito de disputar o campeonato profissional.

Como o centroavante titular do “Tufão da Colina” era o famoso artilheiro Santarém, Cazuza foi escalado para jogar na ponta direita.

Sua estreia profissional, por coincidência, ocorreu contra o Olímpico Clube. O quarto-zagueiro Dirley ficou encarregado de marcá-lo.

Lá pelas tantas, Mário Bacuri tocou para Augusto e este lançou uma bola pro Cazuza, meio na dividida. O zagueirão do Olímpico correu pra disputa.

Cazuza chegou primeiro e deu um leve “tapa” na bola, para aplicar o conhecido drible “rabo de vaca”, uma de suas especialidades.

Quando girou o corpo para pegar a bola do outro lado, sentiu uma dor paralisante da cintura pra baixo. O zagueiro Dirley havia entrado de joelho na parte posterior de sua coxa direita e seu pé ficara preso na grama do estádio.

O ponta-direita caiu no chão, gritando de dor. O massagista do São Raimundo entrou em campo e Cazuza saiu de maca.

Cinco minutos depois, aparentemente recomposto, Cazuza entrou em campo para recomeçar a partida. Não deu nem cinco passos.

A dor paralisante voltou e ele desabou no chão pela segunda vez. Saiu de campo direto para o hospital. Diagnóstico: rompimento dos meniscos internos e externos.

Como estávamos na pré-história do futebol amazonense e não havia nenhum cirurgião especializado em medicina esportiva disponível para operá-lo, sua perna foi apenas imobilizada com gesso e depois tratada a banhos de luz. Nunca mais ficou boa.

Sua carreira de jogador profissional foi interrompida por aquele acidente de percurso.

Simas Pessoa e Cazuza durante um canavial no Solarium Fest

Em 1972, Cazuza foi trabalhar na Construtora Andrade Gutierrez, a pedido de outro primo meu, Carlito Bandeira, filho da Tia Maria Bandeira, irmã da mamãe, encarregado de supervisionar a construção de um dos trechos da BR-319.

A empresa queria fazer um time de futebol amador para disputar o campeonato da construção civil e Carlito foi encarregado de arregimentar ex-atletas profissionais. Ele recrutou, entre outros, Cazuza, Luisinho, Maravilha, Pereira e Grilo. Também montou um timaço.

Carlito tinha entrado na empresa em 1969 e estava baseado no Careiro da Várzea, de onde comandava uma equipe de quase 400 trabalhadores. Eram tempos de boêmia e esbórnia.

Todo sábado, ele, Cazuza e mais dois ou três funcionários da empresa fretavam uma lancha rápida, desciam na Colônia Oliveira Machado, apanhavam um carro de praça e iam para o Cheik Club, encher a caveira de cachaça, dançar e namorar. De madrugada, faziam o percurso inverso.

Diferente do Carlito (que meu primo chamava de “Pai Velho”), Cazuza nunca foi biriteiro profissional. No máximo, tomava uma ou duas cubas-libres por noite. Mas, como era boa pinta e pé de valsa, sempre era muito assediado pelas tchutchucas. Ele não se fazia de rogado.

Esse escriba, Carlito Bandeira e Simas Pessoa no Bar da Júlia

Nessa época, Cazuza havia começado a namorar firme com a Lya, que estudava no Colégio Estadual Márcio Nery, junto com o Antídio Weil, e morava na Rua Santa Isabel, na Cachoeirinha, próximo da residência dos irmãos Regilson, Reni e Renê Alencar, meus contemporâneos no Colégio Batista Ida Nelson.

Regilson era um dos líderes da “Turma da Santa”, que incluía Valdron, Birunga, Valdroné, Macambira, Saboia e o próprio Cazuza. Tudo índio, tudo parente.

Numa das noitadas etílicas no Cheik Club, um lambe-lambe bateu uma foto polaróide dos tigrões & tchutchucas encafifados em uma das mesas e Cazuza, inocente, puro e besta, guardou a “recordação” no bolso da camisa.

Sabe-se lá como, a Lya descobriu a foto e foi bater no Careiro da Várzea, onde soltou os cachorros em cima do “Pai Velho”.

Por conta disso, Cazuza foi transferido para uma das filiais da empresa em Manaus, depois casou com a Lya, tiveram uma filha, a doce Lilían, e viveram felizes para sempre.

Eles moravam no Conjunto ICA-Paraíba, nas proximidades da residência do brother Jaques Castro, ou seja, aqui na ilharga do mocó.

Eu costumava vê-lo caminhando semanalmente pelas ruas do bairro e sempre parávamos para uma conversa informal de 5 a 10 minutos.

Nunca mais ter essas conversas divertidas vai ser a pior parte da saudade.

Obrigado por tudo, meu irmão querido!

E receba o meu abraço apertado, onde e como estiver.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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