Por Ruy Jobim Neto
Parafraseando o título da coluna da Seleções do Reader’s Digest, seria este texto um típico caso de o “Meu tipo inesquecível”, onde um sujeito escreve sobre um outro sujeito com quem tem ou teve algum contato imediato? Miécio Caffé Siqueira é um desses casos de tipos inesquecíveis, mas aqui não é o Reader’s Digest. Redigirei aqui, portanto, um texto – espero – ao mesmo tempo acadêmico e agradável, jornalístico e apaixonado, um pouco de tudo.
Pesquisador musical, colecionador incansável de toda (ou grandiosa parte da) nossa MPB, mas principalmente caricaturista (além do que, tendo tido a possibilidade de colocar suas pinceladas precisas de nanquim em praticamente todas as áreas artísticas onde pudesse), o baiano Miécio Caffé, canceriano de 10 de julho, nascido em 1920 em Juazeiro, Bahia, às margens do Velho Chico, é um caso raro de homem que sempre amou o que faz.
Amigo pessoal de gênios já idos como Francisco Alves, Orlando Silva, Vinícius de Moraes, Lupicínio Rodrigues, Elis, Carmem Miranda, Maysa, Aracy de Almeida e de tantos outros também da MPB e que estão por aí (Chico Buarque, Gil, Caetano, Gal, Bethânia, João Gilberto, Paulinho da Viola), o caricaturista se orgulha de ter vivenciado a melhor fase de criação da Música Popular Brasileira. Não concebe como MPB grupos de pagode e duplas sertanejas. É inconcebível, julga. Não é música, para Miécio.
Muito justo para quem conheceu (e caricaturou) a nata musical do país. Tanto que o violão que ganhou e está em sua casa (mas que jamais usou por não saber tocar) tem as assinaturas, uma de cada lado, de ninguém menos do que João Gilberto – conterrâneo seu, de Juazeiro –, e de Lúcio Alves. O violão é, em si, uma preciosidade.
Para um caricaturista peculiar, cuja assinatura está calcada numa xícara de café, com um “fê “ a mais (como o próprio artista diz) e um acento aguado, a arte e a beleza das formas está acima de todas as coisas. Ele se sente num mundo completamente diferente daquele seu, quando o futebol era genial e quando a MPB era feita pelos maiores nomes de todos os tempos.
Tendo trabalhado em praticamente toda a sorte de meio de comunicação onde precisassem de sua genial ilustração, Miécio fez capas de discos (LPs) para as maiores gravadoras fonográficas do país, cartazes de cinema (para a família Massaini e para distribuidoras estrangeiras), de teatro (foi a primeira pessoa que caricaturou José Vasconcelos), ilustrações dos gigantes do rádio brasileiro para colunas de jornais que falassem do assunto e, quando trabalhou para a Gazeta Esportiva, no final dos anos 50, teve a sorte de conhecer os maiores craques de todos os tempos: Pelé, Gilmar, Ênio Andrade, Garrincha, Bellini e tantos outros.
(Observação: Miécio também foi o primeiro a caricaturar Edson Arantes do Nascimento, o rei Pelé, durante o ano dourado de 1958.)
Vivendo para suas lembranças e seus milhares de discos, Miécio nunca se esqueceu de sua falecida esposa, Hedy Vargas, gaúcha, que conheceu nessas andanças – nunca por acaso –, pelo Brasil.
Para um baiano de Juazeiro, às margens do Rio São Francisco, tendo nascido numa família amante da música, e que teria sido levado pela curiosidade ao Rio de Janeiro para cursar as Belas Artes, Miécio teve uma trajetória curiosa.
Alistou-se no Exército, onde desenhava aquelas cartilhas de exercícios para soldados. Ainda pelo Exército foi transferido para Porto Alegre, onde conheceu Hedy. Casaram-se e vieram, no final dos anos 40, para São Paulo – a cidade que abraçaria todo o seu talento. De São Paulo para o mundo, embora somente seus desenhos tivessem chegado a atravessar as fronteiras do Brasil.
O dado curioso é que Miécio teria feito em 1945, sob a antiga assinatura, “De Siqueira”, uma história em quadrinhos, Fu Manchu, completamente inédita. Estas páginas foram compiladas pela esposa Hedy, e depois encadernadas. Quadrinho policial, com uma mistura de Alex Raymond com Chester Gould.
Em muitas de suas exposições pelo Brasil, Miécio sempre teve a esposa como escudeira. Lembra ele sempre de sua vaga “amnésia” para nomes – aliás, algo que aflige a muitos de nós –, quando alguém o cumprimentava e Miécio não juntava o nome com o rosto. Hedy dava a dica, sempre na surdina. Ela era o seu Sir Lancelot, seu braço direito.
As madrugadas boêmias de São Paulo sempre levaram o grande caricaturista a eternas rodas de amigos em Pinheiros (nas imediações da rua do Choro, a João Moura, e cercanias da Praça Benedito Calixto). Artistas do rádio como Orlando Silva vinham almoçar ou jantar com o casal Miécio e Hedy – eles moravam na Rua Vitória, próxima à Estação da Luz. A casa tinha como frequentadores a nata cultural de São Paulo.
O Museu da Imagem e do Som, na década de 80, recebeu do artista seu acervo gigantesco de discos de 78rpm, com praticamente toda a história da MPB. Teve que contratá-lo para fazer a curadoria daquele acervo. Coleções como a dos “Grandes Compositores da MPB”, da Abril, sempre contaram com a consultoria do grande pesquisador Miécio Caffé em seus fascículos, ao lado de nomes como José Ramos Tinhorão, Tárik de Souza, Zuza Homem de Mello e muitos outros.
Meu contato pessoal com Miécio somente começou dez anos depois de tê-lo conhecido na USP, quando, em 1986, o Curso de Letras ainda era localizado nas colméias do CRUSP. Uma noite, os caricaturistas Paulo Caruso e Miécio Caffé deram uma palestra durante um evento que envolvia a USP e a editora de Toninho Mendes, a Circo Editorial, que publicava Angeli, Laerte, Glauco e tantos outros. Nesta ocasião, o artista ainda estava com sua Hedy, e seus cabelos eram pretos.
Dez anos depois, ministrando em Praia Grande, no litoral paulista, minhas aulas de Histórias em Quadrinhos pelas Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura, fiquei sabendo pela então chefe da Casa da Cultura da Praia Grande, Carmem Diaz Sterque, que Miécio morava na cidade. Foi o que bastou para que eu o trouxesse para abrilhantar o último dia de aula, exibisse suas maravilhosas caricaturas aos alunos – que também se apaixonaram instantaneamente pelo artista. Nesta ocasião, seus cabelos já estavam brancos, e Hedy não mais estava com ele.
Vários projetos, entre os quais, o de realizar um curta-metragem de 35 mm sobre ele, ou o de escrever um livro, ou de montar um CD-ROM, passaram pela cabeça de várias pessoas, inclusive a minha. Qualquer coisa que se faça será mera ponta de um iceberg, apenas uma gota de homenagem a este cidadão brasileiro tão amante da MPB e do futebol (dos bons e velhos tempos, devemos frisar).
Assim, fizemos no segundo semestre de 1999 na Galeria de Arte da Casa Cultural do CCBEU (Centro Cultural Brasil-Estados Unidos), em São Vicente, no litoral paulista, uma exposição com um pingo de sua obra maravilhosa e com algumas de suas fotos (dele com Pelé, Zuza Homem de Mello, Aracy de Almeida, de sua querida e sempre lembrada esposa, e tantos outros). Foi apenas uma pincelada, mas era algo que precisávamos fazer.
O mesmo aconteceu com todo o esforço dos desenhistas JAL (José Alberto Lovetro) e Gualberto Costa, admiradores fervorosos de Miécio, que levaram parte de seu acervo de originais e muitas reproduções para um leilão numa casa que inauguraram no Ibirapuera, em 1998. Doía saber que aquelas obras que grudávamos às paredes da galeria seriam, horas depois, vendidas para colecionadores particulares.
Finalmente, tive a oportunidade de acompanhar o grande caricaturista ao 24º Salão de Humor de Piracicaba (organizado por JAL, Gualberto, Ziraldo, Zélio, Paulo e Chico Caruso), em agosto de 1997. Miécio Caffé e Rodolpho Zalla, dois gênios do nanquim, cada um em sua área, foram chamados ao palco do Teatro Municipal de Piracicaba pelo ator Luis Fernando Guimarães e receberam um prêmio do Salão pelo conjunto da obra. Almoçar e jantar em Piracicaba com Miécio e, ao mesmo tempo, ser comensal dos maiores desenhistas do quadrinho e do cartum nacional, é uma honra para qualquer pessoa do ramo.
De volta ao hotel, em plena tarde de sábado em Piracicaba, quando quase nada está aberto no comércio, precisei sair do quarto para comprar um dentifrício. Avisei o Miécio e desci. Andei quadras e quadras até encontrar uma mercearia. A volta seria tão longa quanto a ida. Ao retornar ao lobby do hotel, abro o elevador. Desciam nele Paulo Caruso e sua namorada. Assim que me viu, Paulo nem piscou para dizer a seguinte frase: “Pô, você me deixa o Miécio sozinho?”
Foi, sem dúvida, uma frase que me fez raciocinar, enquanto subia o elevador de volta ao quarto, rindo um pouco com a coisa (com a alegria da coisa, melhor dizendo), sobre o carinho imenso desse pessoal todo, desses grandiosos artistas preocupados não somente com um País, com o quinhão que cada um dispensa para torná-lo melhor, mas também com as pessoas que, como Miécio, fizeram e ainda continuam a fazer História.
Basta lembrar: sua Carmem Miranda, uma ilustração belíssima em bico de pena, é conhecida e reconhecida em qualquer parte. Do mundo.
(Texto publicado em junho de 2000, no site da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo)