A escritora Marina Colasanti soube ser muitas. Nas mais de cinco décadas de carreira percorreu vários gêneros: poemas, narrativas curtas, contos de fadas, crônicas, histórias infantis, traduções, ensaios e reportagens estão no seu repertório. Os livros produzidos por ela, alguns infantis, outros para adultos, transbordam a escrita da alma humana, denotando paixões, medos, ambiguidades e desejos.
Ela mesma preferia não se definir com apenas um estilo literário: “Eu sou prosa e verso na mesma medida. Isso atravessa o olhar. Você tem um olhar poético ou não tem um olhar poético. É a maneira de aproximar-se do mundo. E eu acho que eu tenho os dois. ”
Na terça-feira, dia 28, um ponto final foi colocado nesses relatos. Marina Colasanti morreu aos 87 anos de complicações da doença de Parkinson, em sua casa, no Rio de Janeiro.
O presidente Luís Inácio Lula da Silva divulgou nota de pesar, logo que soube do falecimento da escritora:
“Nesta terça-feira, 28 de janeiro, o Brasil perdeu a múltipla artista Marina Colasanti. Entre contos, poesias, crônicas e livros infanto-juvenis, construiu uma obra literária que cativou diferentes gerações de brasileiros de todas as idades. Ao longo de sua trajetória, Colasanti atuou como escritora, contista, jornalista, tradutora e artista plástica. Ela se consolidou como uma das mais importantes profissionais da literatura nacional contemporânea, com um legado de mais de 70 obras. Recebeu diversos prêmios literários, como o Jabuti, um dos mais importantes do Brasil, em que foi contemplada sete vezes em diversas categorias”.
Filha de italianos, a escritora nasceu em 1937 na África, em Asmara, capital da Eritreia, onde seu pai Manfredo, funcionário do governo fascista de Benito Mussolini, trabalhava. A Segunda Guerra levou a família de volta à Itália, mas o avanço dos conflitos obrigou os Colasanti a constantes deslocamentos.
Criança, num mundo devastado pela Guerra, Marina teve como companheiros os livros. Primeiro Pinóquio, depois os contos dos Irmãos Grimm, e mais à frente, adaptações de obras como Odisseia, Dom Quixote e As viagens de Marco Polo, onde sereias, seres imaginários e mitologias diversas se misturavam.
Essas histórias permaneceram para sempre com Marina e chegaram com ela ao Brasil em 1948, quando o colapso na Europa e a perseguição aos fascistas na Itália, obrigaram os pais da garota a mudar-se.
O destino escolhido foi o Rio de Janeiro, onde a família achou refúgio na mansão da cantora lírica Gabriella Besanzoni, tia-avó da menina, que era casada com o magnata Henrique Lage. No espaço onde passou parte da adolescência , e onde atualmente funciona o parque Lage, a escritora deve ser velada.
Aos 11 anos, Marina começou a estudar pintura, a frequentar a Escola Nacional de Belas Artes e a se especializar em gravura, o que a permitiu tornar-se ilustradora de seus próprios livros. Mas rapidamente, enveredou para outras áreas, desembocando no jornalismo na década de 60. Ela se tornou redatora, editora e cronista do Jornal do Brasil. Logo publicaria o livro Eu Sozinha, em 1968.
Publicado no auge da ditadura militar, o livro é composto por crônicas autobiográficas que colocam a mulher e a solidão feminina no centro da narrativa. A publicação – quando avaliada – mostra o início de um longo e pioneiro projeto literário feminista, numa época em que o feminismo ainda começava a ganhar contornos pelo mundo.
Marina, de fato, se declarava feminista e foi uma das integrantes do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Muitos de seus livros refletem sobre o lugar da mulher na sociedade e trazem protagonistas femininas.
Crianças e jovens
Apesar da relevância dessa fase, a parte mais revolucionária de sua obra, talvez seja a mais conhecida: a dedicada para crianças e jovens. Gênero ao qual Colasanti se aproximou devido ao jornalismo, quando trabalhou como editora de um suplemento infantil para o Jornal do Brasil.
O contato com o universo infantil incentivou a escritora a mergulhar e relembrar os livros que lera quando criança. Colasanti deu as costas para os contos açucarados e comerciais de Walt Disney e voltou sua atenção para os originais de autores como os irmãos Grimm, La Fontaine, Perrault, entre outros.
A partir dessa fonte e de outras narrativas clássicas, passou a escrever histórias novas. Em 1979 publicou Uma Ideia Toda Azul, livro dividido em dez contos que falam de reis, rainhas, princesas, príncipes e criaturas como unicórnios, gnomos e fadas.
O livro tem uma característica que marcaria sua obra: se, por um lado, aproxima a criança dessa geografia fantástica e ancestral, por outro foge das morais didáticas e educativas que se multiplicam até hoje para essa faixa etária. A autora costumava dizer que um texto para crianças não precisava ensinar nada.
“A literatura infantil é entendida como um sanduíche ou uma cápsula que carrega dentro de si conhecimentos ou princípios morais”, dizia. “Isso envenena a literatura. As grandes obras para esse público são grandes porque escapam disso.”
Marina Colasanti escreveu mais de 70 livros adultos e infantojuvenis. E ganhou vários prêmios: foram mais de 20 troféus da FNLIJ, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e quase uma dezena de Jabutis —entre eles, o de melhor lançamento de ficção de 2014, com o infantojuvenil Breve História de um Pequeno Amor, no qual narra a sua relação com um filhote de pombo.
Em 2023, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. No ano seguinte, ocupou o posto de personalidade literária do Prêmio Jabuti, e enviou à cerimônia um tocante depoimento em vídeo. Reconhecida internacionalmente, foi também finalista do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de Literatura para esse público.
“Seus contos, repletos de princesas e cavaleiros, castelos e bosques mágicos, monges e sábios, levam-nos a acreditar que Marina escreve contos de fadas para crianças”, afirmou a colombiana Silvia Castrillón, que foi consultora da Unesco, em uma das indicações da autora ao Andersen. “Mas a verdade é que, utilizando esses traços clássicos, a sua obra dirige-se à alma humana.”
Essa universalidade sofreu alguns baques pessoais, principalmente a partir de 2020. A pandemia de Covid, o agravamento do quadro de Alzheimer de seu marido, o também escritor Affonso Romano de Sant`Anna, e a morte precoce de uma das filhas, Fabiana, tornaram a escritora mais reclusa. Marina Colasanti deixa a filha Alessandra e o neto Nuno, além de sobrinhos.