Memória Viva

Nássara, Pasquim, Iracema e Ziraldo (final)

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustosa

A partir de sua saída de Última Hora até quase o final dos anos 60, Nássara conheceu um relativo ostracismo. No início da década de 1970, reaparece como autor das 12 capas de LPs da série no tempo dos bons tempos, da gravadora Philips, etiqueta Fontana e, no carnaval de 1974, após uma entrevista para o Pasquim é convidado a colaborar regularmente no jornal como desenhista. Colaboração que o próprio espírito de o Pasquim, tão em sintonia com o de seu mais novo contratado, logo ampliaria para uma página em que se uniam texto, como Nássara gostava. Conservou até o fim o hábito de somar um versinho à caricatura. Em 1982, quando morreu Brejnev e em seu lugar assumiu Andopov, ao lado da caricatura desde Último escreveu: “Morreu Brejnev! Surge então da sepultura / uma outra criatura / dono de igual catadura: / é o camarada Andropov / fã do palhaço Popov. (O Pasquim, 23 a 29/12/1982)

Começa, a partir de sua entrada em O Pasquim, aos 63 anos de idade, uma nova fase na trajetória deste artista singular. Essa fase, diz Cássio Loredano, pode ser considerada um segundo auge em sua carreira: Nássara atingiu sua plena maturidade depois de seus 60 anos. A grande transformação que seu traço sofrera a partir da influência de Grove (já percebida por Herman Lima), cujos desenhos no Canard Echainé Nássara colecionou durante as décadas de 1950 e 1960, alcançou sua independência completa nessa fase final. O tempo só contribuíra para aprimorar sua capacidade de síntese. Seu traço limpo, firme, conciso e, como notou Herman Lima, de uma instantaneidade fantasista, de uma geometria desvairada, evoluiu para a mais perfeita economia, com a redução da linha ao seu uso mais essencial.

“Um rosto, o Pão de Açúcar, as letras ou uma árvore, tudo é redutível a esferas, cores, ovoides, cilindros, formas que então é necessário combinar entre si; como uma máquina, cujas peças, de formas diferentes, têm que funcionar juntas.” (LOREDANO, p. 26.)

Mondrian do portrait-charge, como o definiu Millor Fernandes, Nássara foi, certamente, o mais original dos caricaturistas brasileiros. Por conta de sua aguda percepção das peculiaridades fisionômicas e de seu acentuado poder de síntese pode-se dizer como Jaguar que Nássara fazia mais que caricaturas, fazia logotipos de pessoas. Ele foi um dos poucos que conseguiu fazer uma boa caricatura de JK.

Nássara foi quem primeiro, entre os caricaturistas, abandonou a prática de produzir os originais em cores e adotou o recurso da simples indicação de cor tal como faziam os editores de HQ. Deste modesto recurso gráfico, quase banal, conseguia provocar a ilusão de volume, sem jamais se valer do claro escuro, “pelo simples expediente de não preencher com massas coloridas, grissés ou negras ou toda a área a elas respectiva”. (LOREDANO, p. 23.)

“Eu desenhava e não cobria. Botava o papel manteiga e indicava a cor. Deu certo. O Viola, tio do Millôr Fernandes, que era gravador, é que me ensinou isso. Porque todos os artistas de O Cruzeiro eram bons desenhistas e coloristas. Tinha aquele mineiro, coitado, que já morreu, Alceu Pena, fazia aquelas garotas, mas ele já fazia direto, fazia a guache. Chorou, quase morre do coração, quando estourou a guerra, já não ia ser mais em papel couché, não ia ser tricomia, como chamava-se na época.”

A perfeita familiaridade com os processos gráficos, sua constante preocupação com o espaço da página, patrimônio que adquirira através do ofício de paginador, eram evidenciadas nos desenhos sempre apresentados em linhas grossíssimas, com poucos elementos, levando em conta a possibilidade de redução para a largura da coluna de jornal. “Ele produz para o jornal, o papel impresso. Seu trabalho não pode pensar fora do contexto da imprensa.” (LOREDANO, p. 23. )

Mas, em sua última fase, originais apresentados em uma grande exposição no Museu Nacional de Belas-Artes em 1995, revelaram o artista da cor que Nássara também era. A vida toda aprisionado à página de jornal, só no final da carreira teve a oportunidade de demonstrar a festa de cores que era a sua pintura. Cores alegres, quentes, primitivas, compondo, junto com o traço quadrado, uma arte ao mesmo tempo ingênua e malandrinha em imagens como a dos bonequinhos carnavalescos do bumba-meu-boi.

Como disse Marques Rebelo, ele foi tão grande no lápis, quando na música, “pois se seu lápis produziu um dos mais curiosos traços da caricatura brasileiras, talvez o mais nítido e o mais forte, aquela esquematização do traço encontrava ressonância na sua música que era uma mistura de sentimento, de caricatura e de ironia.”

Seu humor, manifestação do absurdo nativo, guardava muita semelhança com o de outro contemporâneo genial: Aparício Torrelli, o Barão de Itararé. Faltava-lhe o sentido do trágico. Havia, sim, muito de tragicômico na sua caricatura e na sua música. Desse tragicômico nacional, capaz de transformar tudo em piada, que zomba da própria desgraça, misturado com aquele espírito volúvel e inconsequente da cidade- mulher onde Nássara se criou.

Nássara representa, com a sua música, com o seu desenho, com as suas cores, a síntese mais perfeita do Rio de janeiro.

Nunca das conversas que tive com Nássara, quando falávamos do universo do rádio, sobre as chamadas “cantoras do rádio”. Eu perguntei se tinha tido alguma namorada entre elas. Com um jeitão de quem diz alguma coisa sem dizer, respondeu que “eram garotas de rádio e tal”, que sempre fora um camarada um pouco tímido nessas coisas e, com aquela sua risada característica, acrescentou: eu fui fiel a Iracema. E repetiu: eu fui fiel a Iracema! Completando meio maroto: não vou jurar…

Mas tenho a impressão, depois de vasculhar seus arquivos e bater um longo papo com D. Iracema, que era capaz de ele poder jurar mesmo. Porque, em meio a tantas fotografias, recortes de jornais, entrevistas, etc, não há um só vestígio de outra mulher na vida do Nássara. Ou era um homem cuidadosíssimo ou, de fato, era um marido exemplar. Pedi-lhe que falasse um pouco de D. Iracema e ele me disse que, com ela: fui ficando, ficando, fui ficando; e sou, hoje, mais devedor do que credor.

Eles se conheceram em 1947, na Americana. D. Iracema trabalhava no ministério da Fazenda. Era uma jovem mulher de bem situada família da Tijuca (seu avô português tinha várias padarias e confeitarias) que tivera a coragem de romper com um casamento infeliz. Saiu de casa e foi morar num quartinho na rua Ipiranga. Abriu mão de coisas muito importante, teria sido talvez uma boa pianista, mas preferiu a liberdade. E a liberdade, para uma mulher daquele tempo, custava caro. Com o fim do casamento e a insatisfação que isto provocou na família, D. Iracema teve que ir à luta, e foi. Só assim pôde refazer sua vida ao lado do Nássara, que encontrou quando lanchava na Americana naquela tarde de 47, depois do trabalho. O Nássara disse que se chamava Alberto, veja só. Mas logo o namoro foi engrenando, foi engrenando entre os lanches na Americana e na Colombo, e os dois ficaram juntos 49 anos.

“Iracema é uma moça de bons princípio morais. E tem uma vantagem: reza muito. Até por mim. Eu não sei rezar, de maneira que digo a ela: olha, reza por mim aí, porque eu estou bem encrencado. E tem essa qualidade: ela não interfere na minha vida. Agora interfere um pouco mais porque eu estou ruim mesmo, não é? Mas nunca foi assim. Ela quer ser útil a todo mundo. Às vezes, inclusive contra mim. E gosto dela, sinceramente. Senão… eu não tenho esperteza tão grande para ficar do lado de alguém de que eu não goste por muito tempo. Não há maneira de eu ficar. E hoje, estou lá com netos e bisneto. Até bisneto ela já tem.”

E uma prova desse gostar é o enorme respeito com que Nássara sempre tratou dona Iracema. Uma vez um repórter lhe perguntou: “Muitas mulheres em sua vida?” E Nássara, já surdo (acabara de falar que a surdez era muito conveniente para não ter que ouvir determinadas coisas), respondeu: “Hein? Essa é das que não gosto de ouvir”. Adiante, quando o mesmo repórter perguntou: “Como vive Nássara hoje em dia?” Respondeu: “Muito bem, com a patroa, que é muito boa (isso dá samba) e me faz feliz.”

Outra prova desse querer bem era o fato de que ele, apesar de muito instado, jamais ter querido fazer-lhe a caricatura. Não gostava de fazer caricatura de mulher. Dizia que mulher é para ser tratada com muito carinho e elogio. Na sua opinião a caricatura sempre chateava um pouco o caricaturado porque realçava seu ponto fraco ou feio. Para os homens isto não tinha tanta importância, mas as mulheres não gostavam.

“Iracema é uma moça simples. Você já lidou com ela, o que é que você sente? Você sente que ela é uma criatura sem malícia, sem maldade das coisas.”

Tão simples e tão amável que chama todo mundo de senhor e senhora. De uma das últimas vezes em que a visitei, já agora, algum tempo depois que ficou viúva, contava sobre o processo pra poder receber a modestíssima pensão de viúva. Disse-me que tivera que chamar várias testemunhas para comprovar que vivia com o Nássara há tantos anos. Aí chamava “seu Jaguar, seu Ziraldo, seu Loredano, seu Lan…” Deve ser uma das pouquíssimas pessoas que antecede esses nomes do respeitoso “Sr”. O contraste parece ainda maior quando a gente sabe que o Nássara só chamava o parceiro de moleque Wilson Batista e D. Iracema só se refere ao compositor como “seu Wilson Batista”.

D. Iracema ouviu falar da nova revista que seu Jaguar e seu Ziraldo estavam fazendo. Queria muito ler porque relaciona essas coisas todas com as lembranças do velho Nássara, mas não tinha coragem de chegar na banca e falar o nome (Bundas). “Que é que iam pensar, não é mesmo? O homem da banca ia achar que era uma velhinha sem-vergonha”. Também não teve coragem de mandar a mocinha que agora a ajuda em casa. “Podiam abusar dela por estar pedindo uma revista com aquele nome” (nome que dona Iracema não diz de jeito nenhum).

D. Iracema nunca se encontrou com D. Uahyba (que morreu vinte anos depois de que ela e Nássara passaram a viver juntos), nem com as irmãs do Nássara. Uma delas foi conhece-la no Ministério da Fazenda. Mas se encontraram apenas aquela vez. Nássara as visitava regularmente em Vila Isabel, onde sempre viveram. Mas não misturava os canais. Nem também apresentava D. Iracema à turma do rádio, da boêmia ou da imprensa. Quando encontrava alguém daqueles mundos fingia que não via e apertava o braço dela como um sinal. Ela só lembra de uma vez que foram juntos a um cassino e ele a apresentou a Dircinha Batista. De longe a cantora levantou o polegar aprovando a escolha do Nássara. D. Iracema era muito bonitinha. Ainda é. De outra maneira… Mas Nássara a levava sempre à Confeitaria Colombo. D. Iracema ainda fica emocionada quando passa por lá. Dá saudades do Nássara.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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