Memória Viva

Nássara, Wilson Batista e Chico Viola

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustosa

Wilson Batista, que se tornara célebre em virtude da famosa polêmica com Noel Rosa, foi um dos mais frequentes parceiros de Nássara, a partir do final da década de 1940. A mais famosa composição da dupla, a marcha “Balzaquiana”, foi gravada em 1950, por Jorge Goulart, e traduzida para o francês por Michel Simon, adido cultural da França, “um francês alegre, fanfarrão, alto, narigudo e sempre disposto a uma boa piada e que mantinha um programa de música brasileira na França”. “Balzaquiana” foi um sucesso e acabou lançada também na França por ocasião das comemorações do centenário da morte de Honoré de Balzac. Nássara gostava de cantá-la na versão francesa, por sinal com ótima pronúncia.

“Lá por volta de 1952, estava no auge o termo broto, brotinho, e tinha uma marchinha que fazia o maior sucesso. Encontrei com o Wilson Batista, na avenida Rio Branco, e ele me agarrou o braço, muito excitado. Tinha lido no jornal a notícia do Centenário de Balzac e tivera a idéia luminosa: “Olha, precisamos fazer uma música que responda à do brotinho. Uma música exaltando a balzaquiana. O primeiro verso eu já tenho: – Não quero broto, não quero, não quero não.” E o resto? Prometi começar a trabalhar na música. Meu amigo Francisco de Assis Barbosa estava fazendo a promoção das comemorações do centenário de Balzac. Quando ouviu nossa música se entusiasmou. E “Balzaquiana” foi lançada com o maior aparato no Teatro Municipal. Foi a primeira e única vez que entrei ali.”

Wilson Batista também deixou um curioso depoimento sobre a forma como “Balzaquiana”, música da qual tinha muito orgulho, nasceu. Além de ser um belíssimo depoimento de como se dava o processo criativo no meio musical carioca daquele tempo, proporciona um passeio pelo centro do Rio, num tempo em que se podia andar por ali, através das madrugadas, sem medo.

“Nássara acendeu um cigarro, colocou no canto da boca, tirou a caixa de fósforos do bolso e começou a bater olhando para o alto. Subimos os dois a avenida Rio Branco em direção ao Obelisco. E foi saindo: “Não quero broto, não quero, não quero não. Não sou garoto pra viver na ilusão. Toda a semana, sete dias na semana…” Já estamos a esta altura na amurada do mar na Praça Paris. O relógio da Mesbla marcando 22 h 15. “Sete dias na semana, toda semana, vou ver, eu procuro ver minha balzaquiana.” Nássara me diz que precisamos acertar o primeiro coro e fomos cantando. Eu tiro um papel cigarro do bolso e escrevo toda a minha primeira parte do verso, e nos encaminhamos em direção ao banco vazio que tem embaixo da estátua de Deodoro da Fonseca, e continuamos a cantarolar. Digo então que a primeira parte parecia toda pronta. Passamos então para a segunda. Nássara me diz que devemos repetir Balzac na segunda parte. Achei boa a ideia. E nasceu fácil: “O francês sabe escolher, por isso ele não quer qualquer mulher.” Levantamos do banco e fomos de novo em direção ao Obelisco e descemos a Rio Branco em direção à Praça Mauá. “O francês sabe escolher, por isso ele não quer qualquer mulher… Papai Balzac já dizia… Paris inteira respondia…” “Tá bom, Nássara, tá bom. Falta apenas o arremate.” Já tínhamos atravessado toda a Cinelândia e entramos na rua Senador Dantas, esquina da Evaristo da Veiga. “Paris inteira repetia… Balzac tirou na pinta, mulher só depois dos trinta…” Nássara deu um grito de contentamento. (…) Vamos cantar a primeira e a segunda parte para acertá-la de vez. E assim fizemos. Quando chegamos à praça dos Arcos, esquina de Mem de Sá, Nássara pediu uma cerveja, dois copos e um pedaço de papel branco ao garçom, tirou a caneta do bolso e escreveu todos os versos da marcha. E me disse com ar vitorioso: “Acho que não estamos fora deste carnaval. Você vai ficar encarregado de não esquecer e escrever esta melodia.” Digo-lhe eu: “E o título?” Diz o Nássara que, por enquanto, fica “Balzaquiana”. Olho para o relógio e já é quase uma hora da madrugada. Tenho que pegar o último bondinho que sai da Carioca para Santa Teresa, quando, de repente, surge no princípio dos Arcos o bonde. Atravesso a rua correndo para alcançar a ladeira de Santa Teresa, a fim de chegar à estação que existe no final dos Arcos. Quando estava correndo, perguntou-me o Nássara a quem daríamos a marcha para gravar. Respondi-lhe que devia ser aquele rapaz que canta no Teatro Recreio: o Jorge Goulart…” (citado por Ferreira Gomes, p.70)

Não quero broto, / Não quero, não quero, não. / Não sou garoto / pra viver na ilusão. / Sete dias na semana, / eu preciso ver minha balzaquiana. / O francês sabe escolher, / por isso ele não quer / qualquer mulher. / Papai Balzac já dizia, / Paris inteira repetia, / Balzac tirou na pinta, mulher só depois dos trinta.

Foi também Wilson Batista quem propôs ao Nássara parceria num samba (gravado por Linda Batista), um homenagem a Francisco Alves quando este morreu num acidente de carro em 1953. O corpo do cantor mal havia chegado à Cinelândia para ser velado, quando Nássara encontrou Wilson Batista no meio da multidão e este segredou-lhe que estava com um samba sobre o Chico pronto para mostrar. E Nássara indagou, surpreendido: “Mas, já? Você deve ter feito este samba batucando na tampa do caixão do Chico, não?”

Apesar da surpresa do Nássara, a parceria se fez e, à primeira parte da música que dizia: “Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira/ todo o Brasil emudeceu/ chora o mundo inteiro/ o Chico Viola morreu”, Nássara acrescentou outro verso: “Na voz do seu plangente violão/ ele deixou seu coração/ Partiu, disse adeus, foi pro céu/ foi fazer, foi fazer/ companhia ao Noel”. Na biografia de Wilson Batista, Bruno Ferreira Gomes diz que Ataulfo Alves considerava aquilo uma perversidade com Noel Rosa. É que o Noel Rosa não suportava Francisco Alves. Naquele tempo, conta o Nássara, o carioca já tinha um humor negro bem desenvolvido e, no carnaval, quando se ouvia cantar: “O Chico Viola morreu”, logo se seguia o coro: “antes ele do que eu”.

Mundo de Zinco (Nássara e W. Batista)

Aquele mundo de zinco / Que é Mangueira / Acorda com o apito do trem (piu piu) / Uma cachorra, uma esteira / Um barracão de madeira / Qualquer malandro em Mangueira tem / Mangueira fica pertinho do céu / Mangueira vai assistir o meu fim / Mas deixo o nome na história / O samba foi minha glória / E sei que muita cabrocha / Vai chorar por mim…

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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