Por Thiago de Mello
Pode ser que não se trate propriamente de um som de Manaus, mas aqui deixo gravada, com surdina, a “tonada” que o meu coração guardou quando os amigos chilenos, pela mão de Ana Maria Vergera, me deram um “organillo” de presente de aniversário (era de carvalho escuro, cheio de adornos, a manivela macia), que pertencera a um “organillero” catalão.
Não havia, porém, apenas som do piano das aprendizes. A cidade era muito bem servida em matéria de música, cujo gosto se cultivava com naturalidade e nunca foi privilégio de família rica. Não posso nem pretendo dar o rol dos músicos mais destacados daquele período. Me contento em dizer que minha geração deu o Cláudio Santoro, o maestro, um dos mais importantes compositores contemporâneos, cujo talento poderoso começou a manifestar-se, ali na Treze de Maio, onde estudava violino com o nosso tão querido professor Avelino Tello, chileno, casado com a Palmira, filha do velho Arthur Virgílio (relembramos juntos aquele tempo, nos nossos encontros na generosa casa alemã de Cláudio em Heidelberg, onde ele ensinava Beethoven para os professores alemães).
Mas faço questão de trazer aqui certas figuras: os critérios são sempre os do amor e os da memória (e antes faço um parêntese para sugerir à minha amiga Eldah Bitton que ponha no papel, ou na gravadora, já que a conversa é o seu forte, tudo o que sabe contar sobre as coisas da música na Manaus do tempo dos Donizetti, da Ileia Cardoso, da Tatá Level: ser aluno da Tatá Level, formada na Alemanha, dava muito status: pena que ela não podia dar talento).
Talento quem tinha (tinha e tem, só que não se dedica mais ao piano como no seu tempo de ginásio) era a Maria José Carvalho Leal a quem até hoje chamamos de Zezé, uma das moças mais lindas que as ruas desta cidade já conheceram.
Abro um lugar para o som do Petrolisses Pimentel, o meu amigo de infância, dono de mãos mágicas, para quem a música, mais do que vocação, é a sua própria e profunda contingência.
Também chamo – por que não?, estamos em casa – minha mana Maria Júlia. Toca para nós, Juju, aquela sonata de Mozart e depois “Le Poète Mourant”. Pena que o meu violino, se calou, senão tocaríamos juntos a Marcha Militar de Schubert, como nas noites da Voz da Baricéia, anunciados pelo Aloysio Sayol de Sá Peixoto, locutor oficial da PRF-6, título do qual o notável jurista até hoje se orgulha.
No tempo em que o violino do Amadeu falava, nasceu em Manaus o Conjunto Muiraquitã. Idéia do nosso colega de Ginásio, Armando Souza Lima, que já nasceu tocando piano e hoje faz música ambiental aí pelo Brasil inteiro com o seu órgão elétrico. É o Armando, o rei dos Solovox.
No nosso tempo ele era conhecido e chamado no Ginásio (gostou tanto que fez as cincos séries em nove anos, aproveitou para fazer mais amigos) por um apelido simples ao qual o diminutivo acrescentava carinho. Mas do qual o Armando não gostava. Não gosta até hoje.
Muito recentemente, este trabalho ainda em elaboração, ele veio a Manaus, uma noite participamos juntos de um recital no Teatro Amazonas. Pela manhã, estávamos em ensaio, quando entra no palco o poeta Aníbal Beça, ele e a sua montanha de ternura. Aníbal não tinha intimidade com o Armando (nem este sabia que o poeta é também um caboclo que está criando o fino da música popular): chegou todo fraterno e saudou o pianista pelo apelido. Pois levou um esbregue danado; tive que intervir com jeito, temeroso de uma reação menos doce do Beça.
Por essas e por outras é que não vou dar o apelido do nosso querido Armando, que mais querido ainda se fez a partir daquela tarde em que deu uma sova no terrível Jonas Lima Verde, vingando uma porção de gente e desmoralizando o mito da valentia que se construiu em torno da figura daquele nosso colega, que simplesmente não sabia nem voltar para casa se antes não brigasse com alguém. Todos o evitavam, alguns até comiam calados os sapos de sua provocação.
Estava sorteado o time de futebol ou de basquete, para começar o jogo. O Jonas chegava e dizia: “Não, o Machadinho não joga, quem vai jogar sou eu”. E jogava mesmo. Tinha um irmão mais velho, também ginasiano, o Paulo, que ficava só olhando, olhando e rindo, dando costas largas ao Jonas, com quem uma vez o Trigueiro (ou foi o Dente de Ouro?) quis topar a parada. O irmão-graúdo pulou na frente, e não para desapartar.
Pois naquela tarde, estávamos jogando lá no campo de basquete do Ginásio, o Lealzinho, o Hélio Cara Mijada, o Armando Menezes, o Tury, o Machadinho, acho que o Zé Lucas, eu e o Armando. De repente o Jonas chegou e começou a provocar feio o nosso companheiro, que gostava mesmo era de música, dos jogos, da santa paz da alegria. Sucedeu num relance: o Armando se enfezou e disse vem, e o Jonas veio, e foi levando pelas ventas o maior sopapo da história do nosso Ginásio. Cambaleou, mas como brigar era a sua enferma precisão, ergueu-se ainda mais feroz. Levou outra.
Surgido ninguém sabe de onde, o irmão intervém empurrando o Armando. Nisso, o Valdir (caboclo forte, nosso professor de Educação Física), o Valdir se meteu: “– Aqui ninguém desaparta. Não foi ele quem quis brigar? Pois agora a briga vai até o fim”. Fizemos uma roda e o pau cantou pra valer, só acabou quando o Jonas pediu penico. Todo mundo gritou de alegria: Batatinha, viva o Batatinha! Perdão, acabo de divulgar o apelido do Armando. Sucede que sem esse detalhe o episódio ficaria incompleto. Sucede também que o Armando sabe que para nós o nome dele mesmo é Batatinha.
Tudo isso para falar do som que fez para Manaus o Conjunto Muiraquitã. Era um quarteto: o Armando no piano, sua irmã Maria Eunice no bandolim, o Clóvis Bacury no banjo, eu no violino. Tocávamos principalmente para nós, na alegria dos ensaios na casa do dentista dr. Jaques de Souza Lima, quase na esquina da Joaquim Nabuco com a rua dos Andradas, em diagonal com o casarão dos Nery.
Armando e eu já éramos mais ou menos conhecidos. Mas o conjunto era uma novidade. Foi dona Ilcia Cardoso quem nos deu força. Organizou na sua casa, ali na 10 de Julho bem ao lado do Teatro Amazonense, uma noite de arte para apresentar ao Jino e seleto público, da época, o nosso Muiraquitã. A casa da dona Ilcia era comentadíssima, só porque a sua dona, ademais de solteira, se dava à extravagância de iluminar a sala com abajur e, ainda por cima, abajur lilás. Armando anunciava os números, distinguindo o solista. Parece que a noite teve boa estrela. Além de ir para a voz da Baricéia, o Muiraquitã acabou se apresentando no Ideal, clube ao qual jamais teríamos acesso se não fosse pelas teclas e cordas dos quatro companheiros.
Os Donizetti eram muitos. Todos faziam música: o João, o Mozart, o Raimundo, compositor de numerosas peças, e até mesmo o Francisco, que era médico, autor de uma obra para piano, “Baile na Cachoeirinha”, que o Arnaldo Rebelo, compositor e pianista nascido na nossa cidade (filho da rua Dr. Moreira) e consagrado nacionalmente, sempre inclui em seu repertório.
Mas a figura de proa era mesmo o João. Alto, corpulento, óculos de lentes grossas, o professor Donizetti teve um papel importante na formação musical dos jovens e no movimento artístico e cultural da cidade. Diretor do Teatro Amazonas, organizava trios e quartetos para execução de música erudita, foi um dos fundadores e creio que o diretor artístico da Voz da Baricéia, obra do pioneiro Lisardo Rodrigues, em cuja residência ali na 7 de Setembro, um sobradão branco ajardinado quase em frente ao Palácio Rio Negro, montaram-se os estúdios e os transmissores da estação, que posteriormente se converteu na Rádio Baré. Dominava bem o piano e o violino, mas tinha consciência de suas limitações como intérprete; sobretudo era um incentivador, uma espécie de força catalizadora, generoso no seu aplauso emocionado ao talento de seus companheiros mais jovens.
Uma noite o Aloysio Sá Peixoto anunciou ao microfone o número do professor Donizetti ao violino, acompanhado ao piano já não recordo por quem: deixou o estúdio e veio conversar conosco ao som da música que o alto-falante espalhava pelos jardins. Em dado momento notamos que, de permeio à melodia, vinham sons nada harmônicos, estranha microfonia, como se fossem soluços. Entramos no estúdio e encontramos João Donizetti tocando e chorando de emoção, com a beleza da Cavalaria Rusticana, uma de suas peças prediletas.
Os Donizetti eram donos de uma Casa de Música, que ficava na rua de Henrique Martins e levava o nome da família; vendia instrumentos e partituras. Quem tomava conta do negócio era a dona Alegria, linda judia de olhos verdes, mulher do João. Aliás a mais feliz das mulheres, durante muitos anos. Ela própria fazia questão de propalar: até o dia em que os dois puderam casar no papel. A boemia do músico, que até então só fora de uso caseiro, passou a sentir precisão do gosto da rua.
O centro da cidade ganhava, de tardezinha e pela noite – e também nas manhãs domingueiras – o som das orquestras que tocavam no Bar Americano, que ficava ali na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a Sete, e na Leitaria Amazonas, parede e meia, pela avenida; as cadeiras de vime, ao redor das mesas redondas de mármore nas calçadas das duas casas, chegavam quase à metade do quarteirão. Orquestras com músicos conhecidos. Pianos, violino, flauta, violão, violoncelos. Vasas, foxes, cançonetas.
Uma noite, meu pai (que não sabia e até hoje não sabe viver sem música, aos noventa e dois anos canta e toca violão todos os dias; mas bom mesmo é quando ele acompanha minha mãe nas cantigas da mocidade) – me levou, depois de um jantar no Restaurante Central, para ouvirmos a orquestra e olhar os painéis pintados pelo Branco e Silva lá no Bar Americano. Foi quando ouvi pela primeira vez a pianista Cira Gesta e provei a famosa Quina Tônica, produzida pela Fábrica Andrade. Ainda bem que o piano da Cira era uma doçura, porque achei a Quina danada de amarga. Era azulada, e os ingleses da Vila Municipal a tomavam com gim; achavam uma maravilha.
Conjunto popular, que fazia música dançante de abafar a banca, foi o do Wanderley e seus Batutas. O Wanderley era um preto alto e gordo, que não largava da música nem no exercício de sua linda e principal profissão: era carteiro. Entregava as cartas cantando. Cantava rindo e revirando os olhos. Sua modinha predileta, que acompanhava a entrega da correspondência e se repetia várias vezes na apresentação do seu conjunto, era a “Carmelita, Meu amor”: “Carmelita foi, / Nunca mais voltou, / Vou juntar meus trapos / E também me vou. / Carmelita, Meu Amor!”
O conjunto tinha cordas, percussão e um sax-soprano. Wanderley tocava o banjo. Era a sensação das festas de aniversário e bailes dos bairros pobres, nos Educandos, na Cachoeirinha.
E como estamos em matéria de intérprete de música popular, quero que vivam, nestas páginas, as mãos, os olhos brilhantes, a alma inteira e todo o corpo gordo da Marília Palhano, amiga de quem não sei o que a vida fez. Extraordinária pianista, ela própria fazia os seus “arranjos” de peças do nosso cancioneiro popular, com grande poder de harmonia e de ritmo. Cantava com suavidade; na sua voz inteligente ouvi, na acolhedora casa de seus pais ali na rua Barroso, o canto negro norte-americano pela primeira vez, o “spiritual” Sometimes I Fell.
Em casa onde Marília chegava, todo mundo pedia que ela cantasse e ela nunca se fazia de rogada. Também tocava, por amadorismo, em bailes de clubes da cidade. No finalzinho dos anos 40 (ou nos começos dos 50?), ouvi Marília tocar piano uma noite de sábado no Rio Negro, a convite do jornalista Aristóphano Antony, então presidente do Clube. Foi uma delícia: não só ouvi-la, não só conversar, mas também dançar com ela. A nossa querida Marília era realmente muito gorda, mas minha memória não lhe faz nenhum favor: além de ser muito bem-feita de corpo, era, conquanto gorda, extremamente elegante. E de Marília dançando só posso dizer como antigamente se dizia: era uma pluma. Alberto Menezes, por onde andará a Marília Palhano, tu que eras tão amigo dela? A Marília era, só podia ser, Marília de Dirceu.
Porque o Ideal sempre foi um lugar de boa música. Ali se davam recitais esplêndidos de artistas que vinham do sul. Lá, pela segunda vez, voltei uma noite de 1941, fardado de ginasiano, levado por meu pai para ouvir famosa violinista do Rio de Janeiro, cujo nome não guardei. Tirante uns pizzicatos perfeitos que ela conseguia com movimentos ágeis de braços, o que eu guardei mesmo foram os braços, foram os cabelos impenetráveis, os planejamentos da saia comprida balançando, os olhos semicerrados nas colcheias. Ao piano, o professor Donizetti Gondim.
Outros que faziam música, no tempo que eu conto, eram o professor Damasceno e o professor Fiúza, que ensinavam violino (aula dada na casa do aluno era mais cara), dona Lindalva Cruz, dona Lili Azevedo, professoras de piano (dona Lili promovia grandes saraus caseiros ou no Ideal). A Almira Neves, a Estela Mota; a Nirvana Sham era violinista de fama. Eldah Bitton, Rosalvo Guini, Maria Tanajura, Nair Franco, eram estrelas do canto lírico.
Lugar onde havia música toda noite era na casa do prof. Monteiro de Souza, esquina da dr. Almínio com a Zé Paranaguá, muita gente tocando e cantando, inclusive minha linda tia Euterpe, ao redor da Zilá e do João. Toda noite, não. Conservo gravado na memória e espesso silêncio que certa noite se fez naquela casa, sempre aconchegante de alegria. As pessoas falavam baixinho, os olhos brilhavam tensos, enquanto lá no quarto padecia a moça em luta contra o tétano. Me lembro da alegria que percorreu as ruas do bairro, todo mundo celebrando: a filha do professor Monteirinho estava salva.
(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)