Por Thiago de Mello
Está na hora do som das Pastorinhas, manifestação folclórica de fundo religioso com raízes portuguesas. Celebração profana e lírica do nascimento de Jesus, a apresentação das Pastorinhas reunia as figuras dos anjos (com as suas asas de papel crepom), da estrela, da cigana, das borboletas, do pastor-guia, da Diana, além das numerosas pastoras. Tinham o seu lugar fixo, não saíam, e sempre haviam um presépio na casa onde cantavam. Com o Arlindo e o Cid, íamos a uns ensaios de umas famosas Pastorinhas lá nos Educados.
Nenhuma, porém, teve mais fama do que as do Luso, que se apresentavam num palco com momentos de espalhafato cênico, como aquele em que surgia de dentro do chão, num grande salto, a figura toda vermelha do diabo, envolto em chamas e cheiro de enxofre queimado. O diabo tinha bigodes de português e era com a prosódia carregada que ele exclamava diante do Anjo que surgia para vencê-lo:
– Até o Anjo Gabriel me tenta!
Perduram vivas as melodias das Pastoras procurando Jesus:
“Correi Pastorinhas / Correi a Belém / Para ver se nascido / É Jesus, nosso bem.”
E diante do menino da manjedoura:
“Viva Jesus, / Para nosso bem, / Ele é nascido / Lá em Belém.”
Ou a da Cigana que circulava entre o auditório, pano vermelho amarrado na cabeça, com a cesta enfeitada de fitas em que recolhia as ofertas:
“Senhores casados / E rapaz solteiro, / Não deixem a cigana / Voltar sem dinheiro.”
Um ruído que era toda uma festa na cidade custou a chegar porque vem lá do fundo da infância: está chegando o avião da Panair do Brasil, que o povo chamava de Panair, a tônica na última silaba, a rua cheia de gente olhando o céu, só para ver o vôo daquele enorme e estranho pássaro metálico, que apareceu pela primeira vem em 1935. Era um hidroavião, lotação máxima de seis passageiros, chegava aos domingos, pousava no Rio Negro e atracava numa ponta do cais da Manaus Harbour. Passou a ser um divertimento de alto gabarito: ir lá para o trapiche esperar o avião.
Vamos tomar o último bonde da Cachoeirinha porque ele vai recolher. E ouçamos a sua cantiga noturna inconfundível: o ruído do bonde balançando na sua velocidade máxima, com os 9 pontos abertos, vai que chega vai voando nos trilhos prateados. Além deste som, dois outros se distinguem, mesmo ouvidos de bem longe. O do bonde fazendo a curva, e quando ele passava em cima dos vidros para o cerol dos papagaios.
Um companheiro que me leu os originais do capítulo dos sons me livrou de uma omissão injustificável: a gaita do piruliteiro. Era uma gaita de boca, de celuloide, adquirida com toda certeza no “Nada Além de 4$400”, a grande loja que ficava ali na esquina da Eduardo Ribeiro com a Sete de Setembro, onde hoje está a Lobrás. Ele arrancava floreios alegres do instrumentozinho, atraindo a garotada para os seus pirulitos, que eram de sabores diferentes, mas todos de frutas da terra. Expressão delicada de nossa cultura popular, que infelizmente findou, os paus dos pirulitos que tinham o formato de finos cones, vinham adornados com bandeirinhas coloridas e cata-ventos que a gente chamava de ventarolas. Quem também usava gaitinha de boca era o vendedor de puxa-puxa, caramelo comprido enrolado em papel de cor. Os preferidos eram os de mangarataia e os de cupuaçu. O mais duro de todos era o de castanha, ao qual o povo dava o nome de quebra-queixo.
Alba Leal, o “Demônio louro da Bariceia”, cantava acompanhada pelo violão do Guilherme Travessos, que acabou por lhe acompanhar a vida: casaram-se. Guilherme era irmão da dona Neusa, mulher do Agesislau Araujo e de dona Maria, casada com o Henrique Pinto.
Aprendo com Mario Ypiranga que A Pastoral do Luso Sporting Clube nada tinha a ver com as Pastorinhas. São gêneros diferentes. A Pastoral, em que ficaram célebres o Donizetti e a Grijalva Antony, é de cunho erudito e com figuras simbólicas. Já A Pastorinha tem cunho popular, representam diante do presépio.
Peço passagem para um som de homenagem ao encanto das caboclas desta cidade de mulheres tão bonitas; é o da canção composta, não sei por quem, no começo da década de 30, em favor de Edna Frazão Ribeiro, quando eleita Miss Amazonas. O meu irmão Cid Cabral não se cansa de cantá-la:
“És a vitória-régia que brilha em nossos igapós, Rosa cabocla flor de baunilha graças de todo nós. Glória das Amazonas, guerreira brilha, em toda a nação. Na terra dos grandes rios lindas brasileiras morenas são. A luz do Equador fremente a bailar vem beijar a selva toda em flor. Beleza é o amor em plena manhã, formosa cunhã, vem beijar a selva aberta em flor.”
O último som que trago é ao mesmo tempo impiedoso e generoso. É o do “sino da creolina” que se ouvia no Mercado Municipal todas as manhãs, pontualmente às 10 horas. O povo assim o chamava porque aquele som avisava que daí a pouco os fiscais da Prefeitura chegariam, e chegavam mesmo, para derramar creolina nos alimentos que, à falta de frigoríficos, não poderiam ser conservados em bom estado.
Era o som esperado pela pobreza, porque imediatamente os preços baixavam. O peixe, a carne, passavam a ser vendidos quase de graça. As leis da economia de mercado não eram tão ferozes. Ainda não se jogava leite fora para não ser vendido por um preço que não interessa ao produtor, nem se escondia a carne em frigoríficos para promover a especulações – num país em que os pobres passam fome.
Em consequência, o próprio relacionamento social – por algo é o homem um ser social – era de outra qualidade. As testemunhas estão aí para contar. Os peixeiros e açougueiros, antes mesmo de soar a sineta inflexível, já iam reservando enfiadas de jaraqui e branquinhas, certos pedaços do boi (claro que não era o filé nem a chã de dentro): “Guarda isso pro pessoal que está aí fora na espera”. Naquela Manaus, pelo menos em matéria de comida, os pobres não perdiam nada por esperar.
(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)