Por Thiago de Mello
Como tinha os seus sons, a Manaus de antigamente tinha também os cheiros que eram só dela. Cheiros nascidos da cultura do seu povo.
Em primeiro lugar, o cheiro da borracha. A nossa geração é a filha empobrecida do extrativismo do látex. É, por isso mesmo, e dialeticamente, uma geração abençoada. Soube aprender as lições da decadência (caíram de seus olhos as escamas de cinza) e da sua causa dar o nome certo aos bois. Mas não é apenas uma figura literária dizer que da borracha nós só sentimos mesmo foi o cheiro: o travo forte e sensual de sua resina impregnando Manaus, quando o bloco era aberto ao meio, fêmea fendida e ofendida, pelo facão dos exportadores, ciosos de sua virgindade livre de enganadora ganga.
Dois caboclos, o busto desnudo reluzente de suor, sustentavam com um gancho de aço, um de cada lado, a bola do látex defumado. Vinha um terceiro e, com terçado afiadíssimo, separava-a em duas bandas. Erguia-se um cheiro que logo o vento espalhava pelas redondezas do lugar de trabalho.
Cortava-se borracha ali nos térreos do armazém do J.G., na avenida Eduardo Ribeiro, quase em frente ao Relógio Municipal. Nas cercanias da antiga Fazenda Pública, que o povo chamava de Tesouro. No armazém do Abrahim, bem pertinho da casa do professor Agnello. Na esquina da Marcílio Dias com a Quintino Bocayuva, onde a borracha era cortada na calçada. Para quem passava a pé, ou mesmo de bonde, pela ponte de ferro do igarapé de Manaus, o vento trazia o cheiro penetrante que vinha da Fábrica Rosas, também propriedade do português J.G. Araujo, onde se produziam tapetes de balata.
Constava, na época, que o seringueiro, lá no centro da mata debaixo do seu tapiri, ao começar a defumação do leite da seringueira, colocava ao centro do bloco um pedaço de pau pesado, uma pedra, a fim de enganar no peso o dono do seringal. Nunca fui fiscal de comerciante de borracha. Mas incontáveis horas de minha adolescência me detive na contemplação da abertura pelo meio da bola de látex. Não só pelo cheiro, que na verdade me atraía. Sobretudo fascinado pelo trabalho dos operários. Jamais, depois da ação da lâmina, apareceu algo que não fosse a mais pura borracha.
O cheiro das madeiras cortadas nas serrarias de Manaus, particularmente da que ficava no fim da rua Isabel, espraiando-se pelo Monte Cristo. O olfato ficava em festa quando era dia de serrar o pau-rosa, a preciosa, o cedro. Ninguém gostava era quando chegava a vez do louro-bosta.
As madeiras iam embora. Arrumadas em lotes de tábuas, de tabique, de pernamancas. Algumas eram levadas de navio para muito longe. Mas o cheiro delas ficava na serragem e não era sempre o mesmo. Era um com o sol, era outro depois da chuva. A gente vinha de catraia e já pelo meio do igarapé começava a sentir o perfume da serragem nova, que, trabalhado pelo tempo, aos poucos ia adquirindo a virtude densa, sombria, do cheiro dos gravetos envelhecidos.
O cheiro do cumaru, ali no Beco do Comércio, que liga a rua Dr. Moreira com a Marcílio Dias – onde o óleo extraído da castanha da fruta, utilizado como o pau-rosa na fabricação de essência fixadora de perfumes, aguardava o embarque para a Europa.
O cheiro do Matadouro Municipal, chamado o Curro, no bairro de São Raimundo. Cheiro de bosta e de sangue, víscera fresca de boi. Mais forte que o cheiro, era a pungência fosca nos olhos das vacas e dos novilhos onde ardia a certeza de que iam morrer.
O cheiro, perdão, os muitos, os inumeráveis cheiros do Roadway velho-de-guerra. O nosso cais flutuante tinha, é certo, um cheiro que lhe era essencial e próprio, composto de mistura de madeira, óleo de navio, graxa de máquina, brisa do rio, alguma fumaça de apito. Mas outros cheiros se acrescentavam e até predominavam, de acordo com a carga que os barcos traziam ou com os produtos que eram embarcados. Cheiro de bacalhau que vinha, de pirarucu que saía. Cheiro de piaçava, de andiroba derramada. De dentro das caixas, o perfume das maçãs escapava pelas frinchas. Navio estrangeiro a gente conhecia pelo cheiro, que nada tinha a ver com o dos nossos gaiolas nem com o dos navios do Loide.
Também numerosos, variadíssimos, eram os cheiros do velho Mercado. Um universo perfumado, o pavilhão das hortaliças, das verduras, das frutas, legumes e ervas-de-cheiro. O do pavilhão do peixe era naturalmente o mais forte. Como ainda hoje. Reconheçamos que entre as antigas coisas boas que a cidade resguarda estão os cheiros do Mercado. A grande maioria deles. Mas não todos. Alguns já são apenas matéria de lembranças. Para começar a do pavilhão onde se vendia, fartamente, a carne fresca de tartaruga. Mas como a tartaruga vai merecer, por justiça, um bom parágrafo, quero tratar aqui neste de um cheiro que se acabou: o dos mingaus do Mercado.
Uma noite, na margem de um rio que não era o Negro, mergulhei meu rosto nas ondas de uma cabeleira que tinha cheiro de serragem nova.
Alguém me poderá dizer que atualmente bem que se pode ir ao Mercado e tomar um razoável mingau no restaurante que ali passou a funcionar depois da recente restauração. Pois que me leia e já verá que não é a mesma coisa.
Era costume da cidade ir ao Mercado manhã cedinho de sábados e de domingos – os casais levavam os filhos maiores – só para tomar os mingaus. Os trabalhadores do local e do comércio das redondezas geralmente ali faziam a sua refeição matinal – numa das primeiras tendas do comprido pátio dos fundos, à direita de quem entra. Sempre cheia de gente: pouca ficava sentada em dois bancos de madeira que ladeavam um balcão baixo que fazia as vezes de mesa; a maioria ficava de pé, defronte dos grandes panelões de alumínio envolvidos em panos alvíssimos. O mingauseiro, já não lhe recordo o nome, era um caboclo sóbrio e alto, de trato muito distinto, cumprimentava a cada um dos fregueses com um modo, ao mesmo tempo íntimo e respeitoso.
Servidos em grossas tigelas de louça branca, de dois diferentes tamanhos, ali se tomava o mungunzá (chá-de-burro, diziam), feito com cravinho e coco; o mingau de tapioca com castanha ralada; o mingau de jurumum misturado com tapioca; o mingau de banana, tinha o da madura e o da verde; e o mingau de arroz, ralo, com bastante leite e erva-doce, bem diferente do chamado arroz-doce, que é outra cultura. A canela era adicionada na hora de servir: o perfume dela, travo doce, não comprometia o cheiro particularíssimo de cada mingau. Era permitido misturar, uma concha de um, uma concha de outro. Quando o mingauseiro levantava a tampa de alumínio, subia de cada panela um cheiro que mordia o paladar de quem estava esperando a vez. Meu pai preferia o de banana. Eu pedia mungunzá misturado com farinha de tapioca.
Vamos logo ao parágrafo da tartaruga, cujo cheiro inconfundível não há como dissocia-lo do sabor. Porque são muitos e deliciosos cheiros e, portanto, também os gostos que podem ter os variados pratos de uma tartaruga, quando culturalmente bem feita. Ao contrário, se preparada sem rigoroso conhecimento da nossa sabedoria culinária, a tartaruga pode ficar insuportável precisamente pelo seu cheiro ruim, o pitiú, que é como os caboclos chamam a catinga de bicho de água, seja de escama, de pele ou de casco.
Já não é mais frequente o cheiro da tartarugada. Na Manaus de hoje só muito de vez em quando é que ele irrompe, inconfundível, perturbador, deixando com água na boca as redondezas da casa privilegiada. Porque comer tartaruga virou privilégio de gente endinheirada ou do governo, sem falar no pobre caboclo do interior da floresta, que faz uma festa com a família quando “vira” uma bichona na praia no tempo da desova. Como a tartaruga estava ameaçada de extermínio, o IBDF proibiu a captura e a venda. Mas sempre se dá um jeito. Que no país, sobretudo na imensidão da floresta, as leis nem sempre se cumprem. Então o cheiro da tartaruga de vez em vez aparece.
Naquele tempo aparecia com frequência, era coisa trivial. Era sobretudo coisa domingueira. Meio-dia de domingo, de tudo quando era canto da cidade, subia e se alastrava, perfumando o vento, o cheiro do casco da tartaruga, dentro do qual estava sendo preparado, sobre fogo de carvão de lenha, o santo sarapatel. Na verdade, o ingrediente essencial desse cheiro (e de todos os outros pratos preparados com diferentes partes do quelônio) lhe vem da gordura dourada. Como também é inegável que têm cheiros e sabores peculiares o paxicá, feito do fígado, a farofa do peito com picadinho de carne branca, o guisado das patas traseiras, enriquecido pelas peles grossas e suavíssimas depois de bem cozidas.
Não me custa nada ensinar, acho até que é um dever cultural: para que a carne da tartaruga se abra a todos os encantos de sua gordura e perca completamente o pitiú, o segredo está em leva-la muito bem com limão e logo em seguida temperá-la com muita alfavaca. Imprescindível, tanto ao guisado quanto ao sarapatel e ao paxicá, é a nossa maravilhosa murupi, a única pimenta que tem cheiro (amassa-se ela aqui na varanda e lá na porta da rua rescende o seu perfume), tem sabor e tem ardor.
(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)