Por Agripino Grieco
A água doce… O rio Paraíba… Não me falem no mar, nas longas viagens. O mar é o mesmo em toda parte, não marca de modo especial nenhum trecho do mundo e, por isso, indignam-se quando um só país, como a Inglaterra, se quer apoderar dele. O rio é da nossa região, é nosso apenas, difere de todos os outros rios, dos rios dos demais.
Quem viaja pela Europa já se preparara em longas leituras, e o que vai ver equivale às ilustrações de um texto conhecido. Não há revelação, descoberta, surpresa alguma. Ao passo que o nosso riozinho, este elo de prata a prender-nos a um dado recanto, esta melodia da nossa sensibilidade, é uma rede coberta de todos os dias, nunca é o mesmo da véspera, muda com as crianças que vão dia a dia mudando.
Para que, num bucolismo de compêndio, recorrer aos clássicos? Estes bois que pastam junto ao Paraíba não careceram de Virgílio para existir, não saíram evidentemente das geórgicas do cortesão de Augusto.
Quantas vezes percorri as poucas centenas de metros da rua Beira-Rio, como diziam de preferência os moradores, indiferentes ao nome ali oficialmente glorificado e que eu nem sei qual fosse.
Casas baixas, um cais incompleto, e, entanto, sucediam-se as miragens, as fantasmagorias. A sombra duplicava as árvores n’água ou mesmo, na agitação do vento, as multiplicava.
Depois é que vim a ler que há nas costas da Calábria o fenômeno de refração da Fata Morgana, aquelas gigantescas figuras que chegam de longe num halo colorido.
Nas vizinhanças da pobre habitação paterna tinha eu todas as formas, todas as cores que pretendesse.
Lá em frente subiam umas ilhotas efêmeras, que a menor enchente destruía, e nelas os garotos situavam bichos lendários, anfíbios perigosos que apareciam e desapareciam em tintas de mistério.
Num parque próximo, farfalhavam ao vento, cruzando-se, dois renques de palmeiras, mas, por instinto, julguei-as sempre solenes demais, adivinhando-as plantas estilizadas à maneira dos sonetos parnasianos ainda não conhecidos por mim.
Preferia as ingazeiras tortas que refrescam as folhas na espuma do rio, sem esquecer os jamelões da chácara do cônego Sales, assaltados frequentemente por nós, bons ladrões que éramos, devorando frutos que nos deixavam a boca arroxeada, numa viva acusação do nosso roubo.
Preferíamos manifestamente a vagabundagem à escola, saltar na primeira canoa ancorada à margem, dar duas ou três remadas inseguras, com o risco de tombarmos num perau, de sermos sorvidos por um redemoinho.
Acompanhar palhaço na rua, fazendo jus a entrada grátis à noite no circo, era melhor que acompanhar as dissertações de gramática ou aritmética do áspero professor Zózimo.
Onde recuávamos (os severos conselhos dos parentes idosos!) era quando nos avizinhávamos da zona proibida, em que eu mais tarde, já um tanto pedante, enxergaria a pequena Suburra local, com míseras mulheres prodigalizando seu corpo a baixo preço.
Mas ninguém nos impedia de atravessar a bela ponte que levava ao caminho da propriedade do Elias, velho carpinteiro português, de barbas talvez mais longas que as do seu xará bíblico e que acabou assassinado.
Todavia, os nossos desejos de aventurosas arrancadas por países quiméricos resultavam das narrações do preto Amâncio.
Era este um pescador que não se sabia de onde partira e para onde retornava. Tipo de mágica, negociava os seus lambaris por qualquer preço, “bebendo-os” a seguir na primeira tasca e sumindo-se na noite.
Antes, porém, de esvair-se ele nas sombras, quantas histórias lhe escorriam dos beiços, lindas histórias que não olvidei nem depois de atirar-me às páginas do Andersen e dos irmãos Grimm.
Já então principiava eu a interessar-me pelos negros, pelo seu admirável talento narrativo, pelo seu dom de inventar metáforas em palavras que parecem riscos de pincel.
Sim, há neles o gosto do maravilhoso, de ver as coisas aumentadas, embelezadas, como acontece com os meninos, sendo uns e outros amigos das imagens, da linguagem alegórica, mostrando-se ingênuos ainda como no começo do mundo e rindo com o mesmo riso cantado, com o mesmo riso de dentes puros.
Visuais e auditivos acima de tudo, os netos de Cã cedem facilmente à atração do que tilinta, do que reluz. Imaginação inocentemente sensual a dessas criaturas que sentiam a nossa terra, o nosso passado, através de estampas, de simplificações de linhas e cores.
O que ouviam contar mudava-se-Ihes em lendas cheias de princesas com diademas, de bruxas corcundas e de marinheiros que cheiravam a salsugem.
Não foi tal gente que criou tantas assombrações, africanizou as figuras bíblicas, prolongou o sabá no candomblé e fabricou aqui uma rica mitologia bárbara?
Dos bichos não tínhamos, nós, os admiradores do Amâncio, pena alguma. Apedrejávamos os mendigos e aplaudimos o rapazola que pegou um maribondo e o meteu entre o colarinho e a pele de um velhote que dormia num banco de jardim.
Nem pensávamos em ir à Cruz das Almas, onde levantaram uma capelinha a certa mulher liquidada pelo marido e que o povo reverenciou de pronto, chamando-a de Santa Josefa, num processo de canonização sumária, sem que nenhum Advogado do Diabo se expandisse.
Tudo isto, a rigor, vale bem pouco. Mas o meu coração, que não é desmemoriado, suscitou, para mim apenas que seja, o mito da Paraíba do Sul. Qual Ilíada, qual Manon Lescaut, qual Marco Polo! Meu poema, meu romance, meu livro de viagens, é aquela cidadezinha sem importância, a uns vinte quilômetros de Minas e mineira pelos hábitos, pelas comidas, pelas anedotas.
Embora deteste a lamúria e evite ser goteira de lágrimas em livro, não esqueço o patético dos seresteiros de lá que passavam cantando: “Eu vivo triste como o sapo na lagoa… Quisera amar-te, mas não posso, Elvira… Tenho saudades de Maura…”
Também, nos instantes de ironia, meus olhos se tornavam dois moleques a recrear-se naquele alfaiate, naquele carteiro, naquela comadre do Lavapés.
Deliciei-me nas fogueiras da noite de São João, e qualquer rapariga banal, de face visibilíssima, se me afigurava misteriosa como as mulheres veladas do Oriente.
Cidadão do universo? É muito difícil, e ainda hoje eu me contento com ser cidadão da minha pequena Paraíba.
Riam-se à vontade desse eterno refrão paraibano, mas sem olvidar que Machado de Assis tratou do meu município em mais de uma página.
Mesmo agora, quase todas as noites sonho com aquilo, ou com o que, em determinação arbitrária de sonho, decido ser aquilo.
Se eu não tivesse a melodia fluvial na infância seria como se não ouvisse Mozart na juventude.
Recordo a inexistência de jardineiros por ali. Ninguém era tolo de plantar flores onde elas irrompem da terra numa espécie de geração espontânea.
O néctar, a ambrosia dos gregos? Ambrosia chamava-se a mulata que vendia tigelinhas de arroz-doce na esquina e, quando azucrinada por nós, se queríamos comprar fiado, nos dizia num sorriso em que mostrava os mais alvos dentes do mundo: “Meninos, vã me arranjar um casal de sapos lá no brejo…”
Aludi aos jardineiros inexistentes. Não. Sempre algum existia: o das irmãs da Casa de Caridade.
Nascera em Marselha.
Eu, já meio contaminado de basbaquice no tomate aos franceses, respeitava-lhe o sotaque, mas presentemente estou seguro de que o homem, beberrão a valer, era profuso na asneira, nada possuindo da faiscante linguagem fantasiosa do seu conterrâneo Méry.
E, na sua traição aos vinhos europeus, ainda o vejo a roer ignobilmente uma cebola para disfarçar, junto às patroas, o cheiro da aguardente em que se fartara por vários botequins da cidade.
Sofri diversas vezes a ânsia de acompanhar os mascates, os caixeiros viajantes, os que tomavam o trem nos domínios do agente de estação Bibiano.
Mais fácil tomar o carro do Chico Mironga, uma velha caleça rangente que brilhara na Corte e que ele adquirira para conduzir fregueses aos lugares próximos.
Eu nada lera a propósito de Bucéfalo e Rocinante, senão não deixaria de evocar essas alimárias célebres diante dos cavalicoques magros que a puxavam.
Mas lembro que, em cateretês de pretos no Limoeiro ou na Grota Funda, era frequente que se referissem, cantarolando, ao veículo histórico: “Um carro bom é o carro do Mironga…”
Ultrapassada, porém, a cocheira do Chico, aparecia a cadeia. Ignorava eu os versos pungentes de Antero de Quental em que suspiram os cativos, “encostados às grades da prisão”.
Os presos de Paraíba do Sul (nenhum de nós diria “cativos”) eram menos românticos ou menos simbólicos.
O Ventania, que foi de fato um temporal humano a varrer das estradas para o hospital ou para a cova muitas pessoas inofensivas, insultava os populares que se detinham em frente à sua cela.
O Trinta-Mortes, entre fanfarrão e cruel de verdade, gabava-se de ter feito mais que trinta defuntos, sugerindo não haver epidemia que se lhe comparasse, embora suas vítimas não excedessem de duas, ou seja, um casal de macróbios da Covanca.
Atrás das grades um apenas suspirava: o mulato Pedro Alecrim, mestre em estampilhas falsas.
Usava ele uma trunfa de “clown” e suspirava no papel, remetendo sonetos às moças das proximidades da cadeia e recebendo delas saborosas frutas em calda e até gravatas de seda, enquanto não descobriram serem seus versos copiados de terceiro e, logo, não menos falsos que as suas estampilhas.
Impressionavam bastante a molecada, em que fui parte de relevo, as procissões, com oficiais da Guarda Nacional, de fardas reluzentes, a carregarem o pálio.
OS doces para o leilão de prendas eram fabricados, sem nenhum interesse de moeda, por um grupo de matronas chefiado pela viúva de um bacharel vindo da Paulicéia, respeitável sexagenária que educara duas filhas e formara um filho (do vício sai a virtude…) graças aos proventos de prédios alugados na rua Libero Badaró a mulheres que, debruçadas na rótula e com o papagaio ao lado, excitavam a luxúria dos passantes.
Não esqueço também estes encantos da minha meninice: os sinos dominicais da Matriz, os apitos dos trens à noite e, especialmente, os sons avulsos de uma vizinha nossa que insistia nos exercícios de escala no piano. (Depois, chegando à idade realista, conclui que esse culto caseiro da música não presume amor à arte e sim ódio inconsciente aos vizinhos).