Memória Viva

Lembranças da minha cidade natal (2)

Retrato do poeta, crítico e ensaísta Agripino Grieco quando jovem polemista
Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Uma tarde, como eu atravessasse a fronteira do bairro proibido, vi o palacete que pertencera a Martinho Garcez e acabaria transformado em fábrica de parafusos. Martinho, que já advogara em Juiz de Fora e viria a governar Sergipe, não merecia o grosseiro epigrama com que o ferreteou Emílio de Meneses.

Protegeu Hermes Fontes, trazendo-o da província e custeando-lhe os estudos na capital do país, e, quase abstêmio, pusera em Paraíba à disposição dos boêmios Olavo Bilac, Guimarães Passos, Luís Murat e outros uma farta adega, com uma coleção de vinhos franceses que eles prefeririam à coleção de poetas do editor Lemerre.

Bilac ali compôs muitos versos e Murat, com aqueles grandes bigodes, entrou um dia inteiramente nu, careteando e piruetando, na sala em que parolavam graves senhoras da terra.

Meu pai ainda chegara a tempo de escutar uma defesa de Martinho que durara cinco horas, e sempre lhe gabou as palavras frementes, se bem que, na sua paixão de italiano pelas belas atitudes e pelas vozes sonoras, se detivesse mais na cabeleira e na laringe do orador.

De inúmeras lendas fez-se o nosso rio o inspirador supremo, e como que ele continua derramando-as nas paragens que percorre.

Ao crepúsculo, eram opulentos os gastos cabotinescos do Rei-Sol, naquele incêndio sobre montes e várzeas.

Faltava, entanto, ineditismo a essa retirada majestosa, e os olhos mal se levantavam para fitá-lo.

Mais admirada era a lua, porque em noites de luar apagavam economicamente os lampiões de querosene das ruas, e a gente podia sentir, em toda a sua palidez e languidez, o chamado astro saudoso do recitativo luso.

O rio Paraíba fora feito para mim, sob medida, e era num gesto de proteção dadivosa que eu permitia aos outros rapazes exaltarem-no.

Aliás, de certo ponto em diante, quando se perde em curva longínqua, já ele me interessava menos, como se adquirisse outra fisionomia, outra nacionalidade.

Pensava eu muito nos poetas que haviam andado por ali.

O velho Tota, que em moço conhecera Varela a fugir com as águas e as nuvens, tratava constantemente dele.

O elegíaco do “Cântico do Calvário” falara em arrastar um manto, talvez principesco, mas na realidade envergava apenas um capote cor de pinhão, fatigadíssimo.

Tinha uma cabeça de apóstolo e, ao dizer versos, acendia-se a auréola dos santos em torno daqueles cabelos rebeldes ao pente.

Enxergando qualquer criança, Varela, depois de afagá-la, afastava-se às pressas, com as pálpebras úmidas, a recordar provavelmente o filhinho morto.

Conversava com os tropeiros e os pescadores, no tom de quem fosse um deles.

Diante das rosas selvagens, sonhava um jardim onde reunissem todas as espécies de rosas do mundo, e a seguir, diante de um canário engaiolado, sonhava gigantesco aviário onde todas as plumagens refulgissem, ressoassem todos os cantos.

E o que acabava fazendo, com a maior humildade, era ir dormir na primeira cabana à beira do caminho, depois de esvaziar alguns copos…

Não sei dar ordem exata às minhas recordações da infância.

Como situar tantas criaturas em seu momento adequado? Ficam todas a saracotear-se diante de mim, numa farândola confusa. Um pouco da fragmentária agitação dos sonhos.

A cronologia é naturalmente tecida de números, e sempre tive horror aos números.

Daí o desconexo de quantas desalentadas sombras reaparecem na minha velhice a lembrar-me os dias de sol e esperança lá ao longe, à beira do meu rio, entre as mais formosas árvores do mundo.

Revejo o português Siqueira, acusado de prosperar graças à litografia das notas falsas, beneficiário de um Eldorado de papel impresso, trazendo a esposa sempre grávida de volta das viagens à Europa, mas sendo a gravidez, logo desfeita, não de pimpolho e sim de pacotes de cédulas de cem ou duzentos bem limitadas.

Foi o Dr. Bernardo Alves Pereira o médico que mais receitou sal de Glauber no Brasil.

Organista citado pelo historiador de música Vincenzo Cernicchiaro, vivia com uma austríaca que dançara em Montmartre antes de ir fixar-se, melancólica, na pobre cidade fluminense.

Dona Ana, viúva do ator Montedônio e sogra do meu padrinho de crisma José Geraldo, lamentava os lances boêmios do marido, tão bem dotado para o palco, mas incapaz de dar sequência aos seus triunfos, dispersando-se em aventuras que o liquidaram ainda relativamente novo, vítima das miragens do jogo e do álcool, perdendo uma receita de espelhos venezianos, herdada dos antepassados da Itália e em condições de assegurar aos filhos do comediante imensa fortuna.

Dona Ana era sarcástica e, quando lhe aparecia algum sujeito arrogante, comentava: “Parece que está nos altos Pireneus…”

De um melodrama famoso aqui no Rio, traduzido por Machado de Assis, veio o apelido de Anjo da Meia Noite ao hoteleiro negro preferido pelos cometas da zona.

Mestre em requintes de cozinha cosmopolita, acabou ele mendigando na estação ferroviária, a receber desdenhosas esmolas dos que dantes lhe enchiam o sobrado de malas e anedotas.

Chamavam Cucufate ao Dr. Bernardino Franco, c clínico mais afreguesado da terra, pequeno, saltitante, com um lampejo irônico nos olhos que as lunetas azuis mal encobriam.

Político enredador à hora dos arranjos partidários, entrava nas casas irradiando otimismo e os doentes logo se erguiam do leito, miraculados por aqueie bom humor irresistível.

Meu padrinho de batismo foi o solicitado Berrarem Pacheco, jornalista nada pachecal, dono de uma centena de livros que eu cobiçava com olhos famintos, e casado com uma velhota seca e ríspida, espinhentíssimo cacto incapaz de florir.

Parteira, a Beatriz de Melo parecia varão travestido, embora bem feminina de alma e muito carinhosa, casada com o lisboeta Manuel de Melo, fabricante de caixões de defunto. Casal curioso de que dependiam os que entravam e saíam do planeta. Cobravam os dois uma espécie de pedágio a todos os transeuntes da vida.

Nunca se afastou do seu balcão o farmacêutico Santos, que acabou enterrado com os mesmos sapatos do dia do casamento.

Aliás, a sua farmácia talvez fosse a mais atraente da província, com luz elétrica, lambrequins dourados, quadros, colunas, móveis primorosos e os bustos de Pasteur e Torres Homem. Farmácia que os clientes pobres evitavam, com receio de pagar na mais simples poção todos aqueles mármores e telas.

O comerciante Cunha deu aos rebentos nomes orográficos: Alpes e Andes. Também, não se alteraram eles de outra forma.

Um filho do barão Ribeiro de Sá, o jovem José Lino, teve como mestre de línguas o grande João Ribeiro, mas apenas redigiu um livreco sobre corridas de cavalos.

Quantos italianos no bairro do Lavapés! Era uma pequena colônia, com sapateiros, latoeiros e vendedores de linguiça. À noite espalhavam-se por lá os sons nasais das samponhas à moda dos Abruzzos e da Basilicata.

Todo esburacado no pescoço, a recordar uma fotografia da lua, Justiniano Neves firmara-se, na cidade, o príncipe dos chicanistas.

Orador dos enterros, o ex-professor Liberato Pureza descabelava-se romanticamente junto às lápides da fúnebre colina, em complemento à marcha de Chopin executada pela banda do maestro Guerra da Costa.

Na rua das Flores habitavam os meirinhos, sendo o mais pitoresco da classe o Isidoro Ferro, antigo marujo, pai de mestiças polpudas e, ao narrar as suas navegações, patranheiro comparável a Gulliver ou Sindbad.

Não menos truculento que os curas guerrilheiros da Espanha, o padre Teófilo conservava longas barbas e se enfurecia com qualquer sussurro à hora dos seus sermões de recorte clássico.

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mlsmarcio

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