Por Agripino Grieco
Mas os meus iniciadores na vida intelectual? Antes de descobrir o José Bezerra, quase que só tive contato com sujeitos que se riam das minhas pretensões literárias, que não me emprestavam nenhum livro, pela simples razão de que também não possuíam livro algum.
Perdi muito tempo a admirar o Balduíno Ramos, mulato donjuanesco, de braços longos, com bastante de símio e sempre às voltas com duas filhas de ingleses, como se obedecesse a prescrição médica em relação às carnes brancas.
Era muito bem acolhido numa espécie de conclave de bruxas armado por diversas viúvas e solteironas horrendas em casa de uma velhota da outra banda do rio, a Maria Florinda, um misto de curandeira, parteira e alcoviteira.
Pois o nosso Balduíno acabou envolvido em jocoso episódio.
Naquela época pontificava, na redação do “Malho”, um juiz das letras mascarado no cauteloso pseudônimo de doutor Cabuí Pitanga. Era ele quem selecionava colaboradores para a seção poética da revista.
Ora, nada mais perigoso que essa função. Não faltam pândegos, aqui e na província, que se proponham zombar do selecionador, mandando-lhe, com assinaturas trocadas ou imaginárias, trabalhos de escritores consagrados, brasileiros e portugueses.
Por falta de memória ou porque ninguém é obrigado a ler tudo para ganhar tão pouco na imprensa, o censor cai no engodo e não é sem tristeza que, pouco depois, vê um rival divertir-se publicamente à custa do pobre crítico burlado.
Alguém, subscrevendo-a como melhor lhe aprouve, remeteu a Cabuí a obra-prima de Bocage que começa: “Meu ser evaporei na lida insana…”
E aconteceu que Cabuí achasse o autor de tal borracheira uma cavalgadura, afigurando-se-lhe isso de evaporar o ser na lida insana um dos maiores disparates do século.
De outra feita, excelente poesia de Bilac foi, na revista carioca, transferida à professora Leonor Posada.
No momento, porém, o que mais nos interessa é haverem estampado no “Malho”, com a assinatura de Balduíno Ramos, uns versos de Carvalho Júnior, o belo artista da “Parisina”, e por sinal que sendo então esses versos dedicados a uma senhora de maus costumes da Paraíba do Sul, onde a mistificação se preparou, graças à malícia do boticário Edmundo.
Recordo a gargalhada que encheu, em resultado da pilhéria, a cidadezinha toda.
Riram-se o Pedro Alves, animalista exímio ao reproduzir a lápis de várias cores os vinte e cinco bichos do mais popular dos jogos, e que no Carnaval saía sempre de engenheiro, carregando um teodolito; o Manuel Cascateiro, dado a trabalhar em cimento armado falsas ruínas de jardim que logo se arruinavam inteiramente, um português tão magro que o aconselhavam a por pedras no bolso, para que o vento não o arrebatasse; o Salústio, partidário da salada glótica do esperanto, cidadão abstêmio e indeciso até mesmo diante de um copo de leite, receoso talvez de prejudicar algum bezerro, e o judeu Levi, de cujas mãos ornadas de anéis jamais escorreram tostões para os pobres e a quem, desde a infância à adolescência, não ouvi senão duas frases, a registarem bom ou mau tempo: “Que solarada! Que chuvarada!”
Insistirei agora em que nenhum desses senhores se preocupou em qualquer ocasião com as minhas produções.
Recebi, sim, palavras de estímulo do doutor Miranda Carvalho, médico e fazendeiro, homem de cabelos copiosos, solene, citando sentenças latinas e proibindo que lhe derribassem as matas da fazenda: “Respeitem as virgens!”
Também escutou benignamente dois sonetos meus um advogado de procedência campista que foi a Paraíba acusar o seu colega Caio Valadares, levado ao júri como mandante do assassínio de um juiz.
Não estava ele à altura da tarefa e não contava de início com a simpatia local, mas revelou certa desenvoltura irônica que acabou assegurando-lhe relativo entusiasmo da platéia. Lembra-me haver ele dito que não tinha medo do canhão do conselheiro Cândido de Oliveira, o principal defensor do réu, quanto mais da espingarda pica-pau de outro defensor, o Francisco Valadares.
Quem se irritou logo no começo da leitura de um conto meu foi o velho Marciano, colaborador do jornal da terra. O conto era romântico, num grande consumo de castelãs e pajens medievais, e o censor intimou-me a deixar essas bobagens e a voltar-me para o realismo. A verdade acima de tudo.
Ora, dias antes, afirmara o Santiago numa roda que o tal Marciano pintava o cabelo, usava dentadura postiça, diminuía a idade e à hora do jantar não estava em casa para ninguém.
Mas, a esta altura, quero descobrir-me diante da memória de um professor meu.
O Zózimo? Não. Vivia o Zózimo a meter a régua rijamente nos alunos durante a aula toda e à tarde, em seus passeios nos arredores, ia distribuindo bengaladas pelas árvores.
O Epifânio? Também não. Era ele um coimbrão de barbas negras, roupas negras, voz cavernosa, modos graves de pastor protestante, e, no entanto, punha-se subitamente a contar aos meninos as anedotas mais frascárias ou a relatar-lhes casos torpes de uma juventude aventurosa Ao hoteleiro Delfim só oferecia romances que trouxessem estampas imorais, não “ad usum Delphini”.
Desdentado, punha sempre na mesa de refeições um prato de nozes, para repetir o provérbio de que Deus dá nozes a quem não tem dentes. E, como era do tempo em que todos inventavam o moto-contínuo, acabou igualmente inventando o moto-contínuo.
Mais do que os dois, meu mestre verdadeiro, a anunciar-me o José Geraldo, foi então um baiano que por ali apareceu já meio doente.
Chamava-se Carlos Malagrida e ignoro se era aparentado com o jesuíta que Pombal liquidou em Lisboa.
Estudara muito, sabia muito, e nunca pediu nada a ninguém. Falava com doçura até aos negros maltrapilhos, mas quando se exasperava, era como se o assaltasse o perigoso furor das abelhas.
Escutando os cochichos dos mexeriqueiros locais, apenas repetia as coisas agradáveis, a fazer o que ele próprio classificava de intriga afetiva.
Uma noite, encontrando-o metido num camisolão que mais parecia um sudário, lamentei-lhe a solidão, e Carlos revoltou-se: “Solidão? Solidão é estar num botequim entre beócios. Entre livros, está-se no meio de gente numerosa, vivíssima.”
Frisou que eu só me salvaria se lesse bastante, mas não lendo nunca com os calcanhares.
Nenhum quadro em suas paredes e sua melhor pinacoteca – declarava – era avistar, do quadrado da janela aberta, os Corots da paisagem em frente.
Deixava que lhe carregassem as rosas do jardinzinho mal cuidado e ria-se ao pensar que, se houvesse fiscal no paraíso terrestre, a primeira providência desse zeloso funcionário seria espalhar tabuletas pedindo que não mexessem nas flores.
Eu desdenhava dos tocadores de harmônica e ele afirmava que mais tarde, depois de ter ouvido os grandes pianistas ou violinistas, eu voltaria aos executantes roceiros sem técnica, e um simples trecho de valsa, ouvido a um destes, me restituiria toda a infância.
Julgava trópico e metafísica incompatíveis, assegurando que filosofia não quer sol, quer lareira.
Malagrida ensinava história, mas as suas lições eram das mais fantasiosas. Aprazia-lhe interpretar a seu modo muitos fatos antigos.
Insinuava ser Moisés filho da filha do faraó, a qual simulou achá-lo na tal cesta a boiar nas águas do Nilo, e daí o receio posterior de que Moisés reivindicasse o trono do Egito, urgindo abater-lhe o orgulho. Nabucodonosor, para ele, fora um vegetariano fanático e, porque andasse de quatro a apanhar ervas no campo, os inimigos logo o tacharam de ensandecido, de animalizado.
Malagrida enxergava na baleia que conduziu em seu bojo o profeta Jonas a precursora do submarino e, no carro de fogo que arrebatou ao céu o profeta Elias, o precursor do avião. Devia o grego Epaminondas, inimigo da mentira, viver sempre bêbado, pois só o vinho faz dizer a verdade. Quanto a Nero, se incendiou os casebres anti-higiênicos dos cristãos, não foi por maldade e sim para sanear Roma.
No tocante aos apóstolos pintados na “Ceia” de Leonardo da Vinci, puseram-se eles de um lado só da mesa, contra as leis da comodidade, pelo desejo de saírem todos de frente no retrato.
Foi esse professor, bem pouco didático, mas imensamente divertido, quem me fez conhecer duas dezenas de romances franceses traduzidos em Portugal, os tais que traziam na capa uma dama de vermelho sentada num sofá, de livro em punho, e custavam modestamente dez tostões.
Graças a ele, saí do período em que Terrail era o meu Cervantes e gastei pacotes de velas para decifrar as charadas e logogrifos dos almanaques lisboetas muito divulgados no Brasil de outrora.
Mas aí, saindo do período ingênuo e passando a autores de melhor categoria, perdi diversas superstições que, sendo tolas, me pareciam deliciosas.
Ah, se me fosse possível recomeçar essas tolices!
Posso esquecer um volume lido ontem, mas não as historietas ouvidas em criança de tipos analfabetos.