Por Teodoro Botinelly
Manaus nasceu despretensiosa, aquecendo-se ao sol do Forte de São José da Barra do Rio Negro. Crescia lentamente como todas as povoações nos tempos coloniais, nesta parte da América. Na segunda metade do século 19, subitamente, transmutou-se, explodiu glamorosa, feérica, agitada, colorida, coquete, dançando “can-can”, rica e bela! Inacreditavelmente rica! Irresistivelmente bela!
Cada poste de rua, cada casa, prédio ou palácio, cada ponte, cada pedra de calçada, foi construído imitando a Europa ou diretamente importado de Paris, Londres e Nova York. Os ingleses trouxeram os bondes e o conjunto arquitetônico do porto. O prédio da Alfândega foi pedra por pedra pré-fabricado na Inglaterra. Os paralelepípedos vieram dos Açores em pequenos barcos a vela.
Paris dominava no espírito da “belle époque”, na moda. As mulheres eram parisienses no vestir, no falar, no andar, no amar. “Genuínas” parisienses de todas as partes da Europa… Só de uma vez, chegaram 250 “parisienses” para dar mais alegria e frenesi aquela festa extravagante e de permanente delírio, cuja fama corria mundo e era mal compreendida e muito invejada. Manaus foi uma miragem que se materializou no coração dela. Um sortilégio da era do capitalismo industrial.
Quanto mais estudamos os documentos do passado, maior torna-se o encantamento pelas quase cinco décadas do ciclo da borracha. Surpreende-nos ter sido erguida na hinterlândia, há mais de mil quilômetros do Atlântico, uma cidade eminentemente cosmopolita.
Era a renda per capita mais alta do mundo. Orgulhosa de não haver, entre seus 50 mil habitantes (1900), vestígios de “pobres”. Todos eram “bem de vida”, mesmo que estivessem eventualmente desempregados. A riqueza parecia chegar a todos. Muitos tabaréus opulentos davam-se à extravagância de acender charutos com notas de libras esterlinas, em noites de orgias.
Belém, a irmã mais velha, era diferente. Tinha história quando o fastígio começou. Tradicionalista e aristocrática, ela nunca se furtou aos imperativos do luxo e da ostentação, mas tinha o sentido da autoridade, a consciência do Poder. Manaus era leviana, fútil, adorável e romântica. Só coração. Belém, a cabeça. Uma, presa fácil dos rufiões e dos proxenetas chegados de todas as partes; a outra, nunca deixara as rédeas do mando se lhe escaparem das mãos.
Belém era socialmente estratificada e estável. Manaus, um acampamento de pessoas em busca de aventuras ou fortuna; aquela, altiva, soberba, senhorial e sólida; esta, sem raízes, frágil, insegura, solta nas ondas. “Cidade Risonha”, foi chamada naquelas décadas douradas. Desgraçadamente, hoje, flagelada, com milhares de mendigos, com outros milhares de crianças sem escola, passando fome, centenas cheirando cola. A cidade não tem do que sorrir.
Um paralelo surpreendente entre Manaus e Leningrado, que me ocorreu das vezes que tive o prazer de visitar aquela belíssima cidade. Primeiro, foram as ruas largas e retas e, depois, chamou-me a atenção a semelhança de alguns palácios, prédios e praças com os daqui. O Palácio de Inverno lembra o Palácio da Justiça; o Instituto Smolny, sede provisória do Poder soviético, onde Lênin proclamou: “Agora procederemos a construção do socialismo”, tem sua cópia frontal no Instituto Benjamin Constant, curiosamente construído com a mesma finalidade do Smolny: educandário para moças. Só que aqui para moças pobres, lá, para moças ricas! Uma no círculo polar que, em determinadas épocas do ano, é noite ao meio-dia e dia à meia-noite; outra, sob a linha do Equador (-3°), onde o sol cruza todos os dias o zênite e são praticamente iguais durante o ano todo – ambas, aí a explicação de tudo, símbolos eloquentes da força da cultura francesa no mundo.
Manaus é o centro científico da Amazônia. Seu crescimento foi uma decorrência do capitalismo internacional, mas sua escolha foi pela configuração da Bacia Hidrográfica. Era necessário um porto estrategicamente situado para a concentração no interior da hiléia da produção de borracha; um local onde os navios pudessem chegar com segurança e receber a carga trazida dos seringais pelos pequenos vapores, evitando que estes descessem até as águas bravias do golfão.
Nenhum outro ponto se prestou melhor que a embocadura do rio Negro. Santarém estava muito perto da costa e muito afastada dos seringais. Poderia ter sido Itacoatiara ou Manacapuru, se tivessem boas condições para porto. Barcelos estava inutilmente muito internada rio acima. Manaus foi eleita por reunir tudo o que as outras não tinham: bom porto, águas quase paradas, como se fora um lago de águas profundas; as terras elevadas, fora do alcance das enchentes; orla com muitas reentrâncias, com angras e igarapés, excelentes abrigos para as embarcações e para estaleiros de construção e reparos.
Manaus venceu. Tornou-se a preferida dos aventureiros que vieram “fazer a Amazônia”, na expressão corrente de então, e que significa “enriquecer e cair fora”. Levas de homens jovens e destemidos aportavam indo ou vindo dos seringais. Procuravam a cidade pelo comércio, para tratamento de saúde, pelo pagamento dos impostos, pelo Governo, mas também por estarem ávidos de prazeres, dispostos a gastarem, sem pena, o que haviam ganho com sacrifício nas brenhas da floresta. Vinham à procura daquelas mulheres alucinantes e ardentes, consumidoras de dinheiro e de homens, que emprestavam deslumbramento às noites dos cabarés. Paraíso da macharada, dos jogadores, dos crupiês e dos gigolôs!
Manaus, minha amada cidade, quantas de tuas ilustres famílias tiveram origem nas ruas Joaquim Sarmento, Lobo d’Almada, Instalação e Itamaracá? Por que tentar afetar um passado puritano que nunca foi teu? Por que aparentar aristocracia, quando é de todo certo que tuas raízes são plebeias? Por que forjar genealogias, com armas e brasões míticos?
Não é vergonha ser neto ou bisneto de alguma “parisiense”; de árabes, turcos ou judeus, chegados aqui para mascatear, batendo “matraca” de porta em porta, com peças de fazenda à cabeça e, depois de duas ou três gerações, haver atingido o topo da escala social com trabalho, esforço e inteligência. É motivo de orgulho. Não há o que esconder. Manaus foi a “Pasárgada” que Manuel Bandeira deixou de conhecer, por não nos ter dado a honra da visita. Esteve em Belém e voltou de lá. Que belo poema teria escrito!
Quando entra o caboclo nessa história? E os nossos outros avôs, os daqui, os cabocos suburucus? Ora, o caboclo não entra na festa. Fica do lado de fora. Dá a volta, entra pela porta da cozinha. Como um gato, não é de ninguém e acaba sendo o dono da casa. Ele entra e sai, perambula, faz mandados, traz caça, pescado, traz tartarugas. Faz parte da afilhadagem e vai-se deixando ficar agregado à família. Os meninos, pondo-se homens, ganham o mundo; as meninas, pondo-se moças, com naturalidade e jeitinho, vão abrindo as perninhas, para os filhos da madrinha. Com o tempo, deu essa maravilhosa variedade de olhos azuis, castanhos, negros e verdes que nos envaidece.
É do auge da borracha o dito, sempre seguido à risca: “quem vem a Manaus deixa a vergonha na ilha do Marapatá”, que fica a 20 quilômetros da cidade, logo na foz do rio Negro. Em meio à facilidade do enriquecimento, o clima de permissividade e a falta de entraves morais a inibir os ousados, faziam com que a corrupção fosse tolerada e passasse até a ser um jeito irreprimível de viver. Os aventureiros aqui encontravam o “Eldorado”. Os rufiões, os foragidos da Justiça, encontravam guarida segura e se arranjavam muito bem. Aqui era o lugar e, desgraçadamente, continua sendo, onde malandros, vigaristas, arrivistas e toda espécie de canalha tinha (e continua tendo) acolhida tranquila. Os funcionários públicos vinham com “pistolões” e com a recomendação de meterem a mão na massa sem nenhum constrangimento. Era a Canaã dos apaniguados do Império, depois da República, depois das Ditaduras, como continua sendo dos cafajestes da Nova República.
O Tesouro não tinha chave e o Governo não tinha como gastar o que arrecadava. Eduardo Ribeiro, na sua Mensagem de 19 de março de 1895, diz: “Não exagero em dizer-vos que as fontes de receita deste Estado são inesgotáveis”. Não era para menos, só do imposto de produção ele abocanhava 25% do bruto, fora outros impostos, taxas e serviços. Realmente, não podiam saber em que gastar. Como hoje, nos emirados árabes, compravam tudo o que os mercadores ofereciam: máquinas elétricas, bondes, telefones, automóveis, pontes, prédios, navios, biscoitos, vinhos, queijos, caviar, roupas e mulheres. O Estado comprava tudo.
Além disso, ainda sobrava dinheiro para mandar de “presente” para o Governo Federal. Parece incrível, mas as Assembleias Legislativas do Pará e Amazonas votavam concessões de ajuda à União em milhões de libras esterlinas, independentemente dos impostos federais arrecadados. A Amazônia chegou a contribuir com 38% das divisas do país. Os impostos federais jamais retornavam sob a forma de qualquer benefício. Ficavam para embelezar o Rio de Janeiro e contribuir para industrializar São Paulo. Apesar dessa prodigalidade, ainda sobrava dinheiro!
Houve os que recriminaram com veemência a dissipação reinante. Mas, examinando a questão a fundo, há que reconhecer que gastar com obras suntuosas, esbanjar em festejos e frivolidades era o que restava fazer com o dinheiro que entrava com tamanha abundância nos cofres públicos. São as armadilhas da economia capitalista. Naquele mundo de Midas, a reprodução ampliada do capital estava proibida por força das circunstâncias objetivas. As tentativas de investir em fábricas e usinas para criar uma base industrial, nunca deixaram de ser feitas. Bem que projetaram dominar a transformação da borracha em artefatos. Mas como? Não foi suficiente comprar máquinas e instalá-las, como fez a empresa J. G. Araújo. Era necessário muito mais. Precisava-se de uma estrutura industrial amadurecida envolvendo população, tecnologia, volumosos capitais e, sobretudo, de poder sobre o mercado. Nada disso havia.
A força de trabalho era o fator mais escasso. Basta dizer que para os projetos arquitetônicos e urbanísticos veio da Europa a maior parte dos operários. Só de portugueses havia, em 1900, um contingente de dez mil ocupados no comércio e na construção civil, representando 20% da população. Seria injustiça omitir que em meio a tanta folgança, havia gente que trabalhava duro das 6 da manhã às 9 da noite, sem folga aos sábados e, frequentemente, trabalhando aos domingos. Não era só por vaidade que mandavam lavar roupas na Europa, como faziam os ingleses. Os portugueses também mandavam lavar as suas na “terrinha”, por falta de tempo. O navio “Hilary”, da Booth Line, trazia engomadinhas as camisas dos “gajos” que as noivas apaixonadas, esposas saudosas e mães amantíssimas lavavam, matando as saudades do “cheirinho” do “pimpão”, cãs do Brasil.
Os nordestinos preferiam enfrentar a mata bruta, e os perigos das doenças, onças e índios. Mas faturavam alto. Um seringueiro ganhava líquido em um dia o que não ganharia em um ano trabalhando no seu lugar de origem. Os operários europeus ganhavam o que para eles correspondiam a pequenas fortunas para, ao voltarem, à sua pátria, estabelecerem-se em pequenos negócios independentes.
Os únicos investimentos possíveis eram na estrutura dos transportes fluviais. Foram feitos os portos de Belém e Manaus. Sendo que o cais flutuante desta última constituiu-se em uma obra de engenharia que representou um avanço da tecnologia e serve, noventa anos depois, ainda à cidade. Foi comprada a maior e mais moderna frota fluvial do mundo. Graças a ela foi possível amenizar a crise que sobreveio e viver na Amazônia, depois da queda dos preços da borracha. Os navios permitiram que outros produtos de menor valor pudessem ser comercializados, o que sem eles seria impossível.
Gastava-se como era possível e, mesmo assim, o drama de Midas continuava. Como deter a mão ágil no dinheiro fácil? Como impedir a “tendência compulsiva” para esvaziar os cofres públicos sub-repticiamente? Impossível! As histórias acerca de desfalques no erário público são infindáveis e ate cômicas. Os pilantras, longe de serem castigados, eram distinguidos como heróis populares, conforme mostrassem requintes de habilidade e esperteza em seus golpes. Não existem notícias de punição de corruptos. Somos forçados a reconhecer que aqui foi e continua sendo o paraíso dos velhacos. É uma herança implacável!
A corrupção era tal, que o mais famoso governador do Amazonas em toda a sua história, Eduardo Ribeiro, responsável pela construção do Teatro Amazonas e de outras grandes obras, era considerado um tremendo dilapidador dos cofres públicos. Costa Azevedo e Joaquim Sarmento formularam libelos contra ele, relacionando propriedades adquiridas. Nesse sentido houve, ao que parece, um ligeiro requinte: atualmente os “Ribeiro” compram terra fora do Estado. Às vezes em Miami, nas proximidades de Madri e em Portugal. Chego a pensar que talvez tenha sido aqui que inventaram a pérola do cinismo demagógico: “rouba, mas faz”.
A complacência para com a corrupção foi o pior de nossa herança. Longe de refrear-se com a crise da economia, aguçou-se. Passou a ser considerada como um lado fraco do caráter amazônico. A corrupção é uma característica do subdesenvolvimento, mas não é seu monopólio. Os desenvolvidos sofrem do mesmo mal. A diferença é que lá, quando descoberta, é punida, e aqui, premiada. Pode ser com uma cadeira no Senado ou no próprio Palácio Rio Negro.
Para não dizer que exagero, transcrevo as palavras de um dos mais respeitados historiadores e ilustre homem público deste Estado, professor Angnello Bitencourt,in “Chorographia do Amazonas”, página 231:
“A situação financeira do Amazonas é assombrosa. Sobre o TESOURO PÚBLICO pesam compromissos extraordinários, como RESULTADO DAS PRIORIDADES DE ALGUMAS de suas administrações. Contra os interesses econômicos do Estado cometeram-se atos de verdadeira loucura, cuja história seria triste narrar, inacreditável, às vezes, por seus episódios. Sistematizou-se o assalto aos dinheiros públicos. Todas as formas de pilhagem foram postas em prática, para o que se lançaram aos pés os escrúpulos. Um amazonense ilustre, HELIODORO BALBI, quando defendia, no Rio de Janeiro, em plena Câmara dos Deputados, o seu discípulos e representantes do povo amazonense, chegara a dizer: ”O Amazonas é a Calábria da Pátria!”. Pois bem, daí por diante, ainda se requisitaram o motivos daquela explosão. (…) Fizeram-se empréstimos leoninos sem que o seu resultado se concretizasse em benefício coletivo. A crise econômica de 1912 a 1920, veio agravar esse procedimento dos maus governos desta terra. Hoje (1925) é esta a situação desoladora das finanças do estado:”
Dá, a seguir, o resumo da dívida do Estado: 129.280:231$417, ou seja, 129 mil contos de réis. Algo parecido com a dívida externa brasileira atual.
Não há porque perder as esperanças de sairmos desse atoleiro em que estamos metidos. O remédio existe: democracia em doses elevadas, “glasnost”, transparência dos atos dos governantes, fiscalização dos representantes do povo. Com democracia se consegue seriedade, justiça social e desenvolvimento. Para isso precisamos de eleições e partidos políticos. Eleições, quanto mais melhor. Partidos políticos organizados e permanentemente atuantes.
Leituras sugeridas:
BITENC0URT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Edição facsimile da edição de 1925 feita pela Associação Comercial do Amazona, 1985.
LOUREIRO, Antônio José Souto. A Grande Crise (1908-1916). Editada sob os auspícios de T. Loureiro & Cia., 1986.
BENCHIM0L, Samuel. Um Pouco Antes e Além Depois. 1977.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 1952.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 1989.