Memória Viva

Sergio Mendes e Brasil 66 no Blow-Up

Postado por mlsmarcio

Por Luiz Carlos Miele

Outro bar (ou boate) que aconteceu em São Paulo com a assinatura de Miele & Bôscoli foi a Blow-Up. Na rua Augusta, funcionava uma casa chamada Raposa Vermelha, pertencente a um cantor português chamado Abilio Herlander.

Um grupo de amigos resolveu comprar a casa: Roberto Mendonça, Odilon Sandoli e Gersino Alves. Como nenhum dos três era da noite, resolveram chamar a mim e ao Ronaldo. Eles não entendiam da noite, e nós não sabíamos nada de negócios, de maneira que ficou um casamento perfeito.

Nunca assinamos contrato nenhum, como sempre, e ficou acertado quem iríamos ganhar 20% do negócio. No primeiro mês, recebemos o equivalente a essa porcentagem de todo o movimento bruto da casa, o que fazia com que nós tivéssemos um faturamento formidável, pois não entrava em nosso percentual nenhuma despesa com pessoal, estoque, aluguel, pagamento dos artistas etc.

É claro que eles perceberam o erro e tudo foi acertado novamente. Para nós, tudo bem. Acho que em toda a nossa carreira, nem eu nem Ronaldo soubemos quanto ganhávamos. Queríamos mesmo realizar os nossos shows, era tudo como uma grande aventura, muito divertida. Até invejada por muita gente. Mas, dizem, com dinheiro não se brinca, e isso foi fatal para nós. Eu, hoje em dia, gosto de dizer que o dinheiro me odeia, mas quem sabe isso muda antes de chegar aos 80 anos.

Voltando à casa paulista, escolhemos o nome de Blow-Up por causa do filme de Antonioni, de sucesso absoluto na época. Mas não bastava mudar o nome. Era necessária uma reforma completa, e os proprietários nos acenaram com uma verba, digamos, de seis mil cruzeiros, não me lembro bem, mas era pouquíssimo.

Eu estava empolgado com o sucesso da DPZ, a agência de propaganda de Dualib, Petit e Zaragoza, e ingenuamente fui até eles para ver se tinha algumas idéia, dentro daquele orçamento, talvez alguns desenhos bem inteligentes para decorar as paredes. Bondosa e penosamente, o Petit me informou que aquilo não era consulta que se fizesse a uma agência daquele prestígio.

Humilhadíssimo, voltei aos três sócios para desfazer nosso acordo, e então, eles me ofereceram dez vezes mais para a reforma. Mais animado um pouco, tomei uma decisão completamente fora dos padrões das casas noturnas: fui procurar Wesley Duke Lee, o artista plástico brasileiro que havia ganho a Bienal de Tóquio, por cujos trabalhos eu estava apaixonado. Surpreso, Wesley afirmou que nunca havia feito um projeto para uma casa noturna, mas eu consegui convencê-lo:

– Tá bom, Miele, eu faço o projeto, mas só se for executado pelos japoneses que eu trouxe da lá.

Wesley havia ficado impressionado com o qualidade e o profissionalismo dos operários no Japão e tinha vários projetos a executar no Brasil, “instalações” das mais variadas. Sugeriu a eles que o Brasil poderia ser um bom mercado e eles vieram com as famílias.

Compraram um terreno no bairro do Jabaquara e fizeram o seu shongunato. Trouxeram diferentes especialistas. Um era pedreiro; o primo dele, o encarregado da parte elétrica; outro, do estofamento; um, chefe de carpintaria; outro para o ar refrigerado; o mestre da hidráulica; um engenheiro-chefe, o diabo.

Estavam aptos a fazer desde um canil até o edifício do governo. Na metade do tempo, e sem roubar o meu, o seu, o nosso pobre dinheirinho.

Levei até eles o projeto. A própria planta feita pelo Wesley já era um objeto de arte. Uma série de círculos superpostos que iam revelando todo o design inusitado.

O líder do grupo, único que já falava um pouco de português, reuniu todo o clã, analisou tudo e, para minha surpresa, exclamou:

– Projeto muito bom, né? Pode entregar tudo pronto dia 17 de julho.

Quer dizer, não deu um prazo de “uns dois meses mais ou menos”. Daqueles que viram quatro meses, ou um ano por aqui. Mas falou: “No dia 17 de julho.”

Falou e disse.

– Metade adiantada, né?

Depositado o dinheiro, combinamos que a obra poderia começar na segunda-feira seguinte, pois domingo teríamos a despedida da Raposa Vermelha. E no domingo, lé estávamos para o último show de Consuelo Leandro, uma das poucas mulheres que podia fazer um show de hora e meia, acompanhada pelo Trio de Luiz Carlos Vinhas.

Não é preconceito não. Mas, naquele momento, o humor brasileiro era escrito apenas por homens, e as mulheres, sempre as vítimas das situações, coadjuvantes para o sucesso dos humoristas. Hoje, várias mulheres redigem os textos de programas humorísticos, e grandes atrizes mostraram a faceta de ótimas comediantes.

Assim, entre texto e interpretação, palmas para Dercy Gonçalves, Marília Pêra, Consuelo Leandro, Berta Loran, Nair Belo, Débora Bloch, Fernanda Torres, Marisa Orth, Claudia Rodrigues, Ingrid Guimarães, Heloísa Perissê, Claudia Raia, Andreá Beltrão e tantas outras, lindas sempre, palhaças quando querem.

Pois bem, estávamos lá no domingo, esperando o show de Consuelo, que iria começar mais ou menos a uma hora da manhã. (Naquele tempo, a violência ainda não era a maior puta da noite.) Foi quando o Gunga Din, o porteiro, me avisou que havia estacionado na porta uma clientela nada convencional. Um caminhão cheio de japoneses.

Fui até lá para dizer ao Tanaka que havíamos combinado segunda-feira para o início da obra.

– Agora zero hora vinte minutos. Já segunda-feira, né?

Avisei que a casa só ia ficar desimpedida lá pelas quatros horas. Ele retrucou:

– Agora cada um para sua casa, pior, né? Senhor paga sanduíche e conhaque no botequim, gente espera.

E assim, deixamos os japoneses no bar da esquina e fomos curtir e Consuelo. Terminado o show, ela convidou ex e atuais proprietários para mais um drinque na casa dela. Fomos todos. O uísque e o papo eram da melhor qualidade, e o último drinque da noite transformou-se no café da manhã. Lá pelas oito horas, na saída, Ronaldo me disse:

– Miele, vai ver que todo esse papo dos japoneses é uma tremenda cascata. Vamos dar uma passada lá na boate para dar uma olhada.

Só que não havia mais boate. Nada. Nem o balcão do bar, os sofás, Nada. E não havia mais o chão. Não estou falando do carpete. O chão tinha desaparecido. Junto com uma escada de ferro, em caracol, que ligava a casa a um corredor no andar de cima. Daí para a frente, a qualquer coisa nova que a gente pedia, o japonês respondia com a letra e a data.

– Tanaka, a gente lembrou do frio de São Paulo. Dá para fazer um armário para os casacos das mulheres?

Ele pedia para a gente rabiscar o desenho e respondia:

– Quinta-feira pronto, quinze pras quarto, né?

Toda a casa ficou pronta três antes da inauguração, é claro. E ficou um beleza. Como o tema era Blow-up, o filme que contava a história de um fotógrafo, Weslei fez a entrada pela garagem. Os automóveis desciam a rampa em forma de um fole de máquina fotográfica. Aquela Roleyflex, lembram? O manobrista pegava o carro na frente da porta, que era a “objetiva” da máquina. Um círculo de acrílico, que entrava lateralmente num corte na parede como se a objetiva tivesse sido acionada. (E quem não vinha de carro? Bom, quem não vinha de carro, tinha errado de boate.)

No interior, todas as paredes eram espelhadas, assim como as colunas.

O estofamento, todo em plástico prateado, acentuava ainda mais os reflexos.

Quando a casa estava vazia, no início da noite, os primeiros frequentadores tinham que ser conduzidos pelo maître até suas mesas, porque se perdia a relação entre o que era realmente físico e o que era reflexo. Tudo isso era necessário para ampliar as dimensões da casa, que não tinha mais do que oitenta lugares.

Oitenta lugares que receberam shows como os de Bethânia e Lennie Dale, Edu Lobo-Gracinha Leporace e o Quarteto Novo, formado por Hermeto Paschoal, Airto Moreira, Théo de Barros e Helio Delmiro. Depois, Chico Anísio, Jorge Ben (o Benjor ainda não havia pintado), Eliana Pittman e, no auge do sucesso, Miriam Makeba (Zacutin azatipega-tatuí-pata-pata…lembram?), acompanhada pelo Sivuca.

Conta a lenda que Albino Pinheiro (grande animador cultural) estava uma noite no camarim e ligaram para ele. Atendeu a mulher do Sivuca.

– Boa noite, é do camarim?

– Sim senhor, quer falar com quem?

– Me chama aí o Albino.

– Albino é a puta que o pariu…

O telefonema era para Albino Pinheiro, a esposa do Sivuca achou que era molecagem com os pêlos e cabelos brancos do marido.

Como conseguíamos pagar os artistas com esse número de lugares, era um mistério. Na verdade não havia as grandes casas de espetáculos, os artistas ganhavam menos, e as casas noturnas cobravam mais. Outros tempos.

Nem todo mundo achava graça. Um cliente irritou-se com o preço cobrado no show de abertura da casa, que apresentava Miele & Tuca. (Ainda se fosse a Miriam Makeba…) Fez um escândalo, foi posto educadamente para fora por dois rapazes do Itamarati que faziam a nossa segurança. Já na rua, gritava para todo mundo:

– Não volto mais nessa merda. E se eu pegar um de vocês aqui na rua, vou meter porrada, de tanta raiva que eu fiquei.

Disse isso e com a tanta raiva, deu tamanho soco na parede do prédio que apagou a luz do quinto andar. Infelizmente, também quebrou a mão. E olhando para a mão sangrando, vociferou:

– E vocês notem que eu não estou com raiva da parede.

Durante o show de Edu e Gracinha Leporace, Sergio Mendes, já consagrado como um grande cartaz internacional, apareceu para uma visita. Depois de algumas desavenças que tivemos, das quais já nem me lembro, ou nem quero me lembrar, ele chegou ao Brasil e me convidou para dirigir o show dele no Teatro Paramount, que seria transmitido pela TV Excelsior.

Não era bem dirigir o show, que estava superpronto e era um grande sucesso no mundo inteiro. Era apenas para dar uma olhadinha no repertório. Como eu e Ronaldo havíamos feito o primeiro show da vida dele, que foi também o primeiro show de nossa vida, no lendário Beco das Garrafas, acho que era mais um carinho dele para com a dupla. Mas o Paulinho de Carvalho, dono da TV Record, de onde eu era contratado, não quis me liberar para a emissora concorrente, e eu tive que me desculpar com o Sergio:

– Olha aí, Mendes, não vai dar. Infelizmente o Paulinho não abriu mão.

– Tem nada não, Miele. Onde é que fica a tal casa de vocês, aqui em São Paulo?

– É a Blow-Up, na rua Augusta. Hoje à noite tem Edu e Gracinha. Aparece depois do teu ensaio para a gente tomar uma.

E ele apareceu. Provocou um sensação na chegada. Era o primeiro brasileiro a estar na parada de sucessos nos Estados Unidos. Perguntei se ele queria dar uma canja, ele não se fez de rogado e criou uma noite de grande emoção.

– Boa noite, senhoras e senhores, é um prazer estar aqui, reencontrar o Miele e o Ronaldo. O meu show estréia amanhã no Teatro Paramount, mas eu resolvi passar aqui hoje para deixar um abraço. Eu e o meu grupo, o Brasil 66.

E para a surpresa de todos os fregueses da casa, foram entrando no palco, já cantando Mas, que nada, grande sucesso internacional: Karen Phillip, Lannie Hall, as duas cantoras americanas do grupo e todos os músicos do conjunto, que ele havia deixado esperando numa Kombi parada na porta da boate, para oferecer essa emocionante surpresa.

Uma das cantoras, Lannie Hall, casou-se com Herp Albert, também de grande sucesso nos Estados Unidos. Em compensação, Sergio conheceu nessa noite a Gracinha Leporace, que fazia o show com Edu Lobo. Adorou a moça e a cantora, e casou com as duas.

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