Musicoterapia

Galeria dos Bambas: Noel Rosa

Postado por Simão Pessoa

Cantor, compositor, bandolinista e violonista, Noel de Medeiros Rosa nasceu no Rio de janeiro, no dia 11 de dezembro de 1910. O pai, Manuel Garcia de Medeiros Rosa, era comerciante, gerente de uma camisaria, e a mãe, Martha de Medeiros Rosa, professora. O único irmão, Hélio de Medeiros Rosa, era 4 anos mais novo. Proveniente de uma família de classe média baixa, Noel carregaria pelo resto de sua vida as marcas de um parto forçado que lhe causara fratura e afundamento do maxilar inferior, além de ligeira paralisia facial no lado direito do rosto. Foi operado aos 6 anos e, aos 12, colocou uma prótese. Como consequência carregou o defeito no queixo, o qual acentuava nas suas autocaricaturas, ao mesmo tempo que se manteve sempre tímido em público, evitando ser visto comendo. Sob o efeito da bebida e nas rodas de músicas descontraía-se, deixando vir à tona o seu humor inteligente e sarcástico.

Noel cresceu frágil e mirrado. Amava a rua, a confusão dos amigos, as pipas, os piões e os balões. Era, também, artista de estribo de bonde. Menino alegre e de gênio bom. Os saraus em sua casa eram constantes. Sua mãe tocava bandolim, seu pai, violão, sua madrinha, piano e sua tia, violino. As crianças participavam, ouvindo. Foi dona Martha quem iniciou Noel na música ensinando-lhe a tocar bandolim, entretanto, ele sentia-se fascinado por qualquer instrumento, qualquer música e qualquer dança. Seu grande e único sonho era a música. Quando ainda era pequeno, o pai foi trabalhar em Araçatuba como agrimensor numa fazenda de café. A mãe abriu uma escola em sua própria residência, no bairro de Vila Isabel, sustentando assim os dois filhos.

Aos 13 anos já alfabetizado pela mãe entrou para o colégio Maisonnette cursando depois o tradicional colégio São Bento. Nessa época, por mau gosto dos colegas, recebeu o apelido de “Queixinho”. Também aos 13 anos aprendeu a tocar bandolim, fato marcante em sua vida, pois a partir daí, percebera que a sua grande habilidade instrumental o tornava importante diante de outras pessoas. Aos 14 anos, já abusava do cigarro, da cerveja, e dos balaústres de bonde onde externava sua malícia, seu deboche, suas graças imaginativas e obscenas. Do bandolim para o violão, foi um passo. Em 1925, dominava completamente o instrumento, participando ativamente das serenatas do bairro.

Enquanto Noel ensaiava os primeiros acordes musicais, estava em voga a música nordestina e os conjuntos sertanejos. O garoto logo se interessou pelas canções, toadas e emboladas da época. Acompanhando a novidade, um grupo de estudantes do Colégio Batista e mais alguns moradores do bairro de Vila Isabel formaram um conjunto musical, denominado “Flor do Tempo”. Reformulado para gravar em 1929, o grupo passou a se chamar “Bando de Tangarás”. Sua primeira aparição em público foi a 27 de junho de 1929, no Tijuca Tênis Clube. Noel tinha, nessa época, apenas 18 anos. Alguns de seus componentes se tornariam mais tarde grandes expoentes de nossa música, como João de Barro, Almirante e o próprio Noel, que já era um bom violonista.

Ainda em 1929, Noel compôs as suas primeiras músicas, dentre elas a embolada “Minha Viola” e a toada Festa No Céu. Em 1930, conheceu seu primeiro grande sucesso “Com Que Roupa”, apresentado em espetáculos do Cinema Eldorado. Já se podia notar sua veia humorística e irônica, além da crônica da vida carioca, marcante em toda a sua obra. Nessa época, Noel já estava com 29 músicas compostas, inclusive “Com Que Roupa?”, cuja melodia foi modificada por Homero Dornellas e a letra melhorada por Nássara, seu grande amigo. “Com Que Roupa?” retratava o Brasil da época, cheio de dificuldades, com o povo quase na miséria. Segundo Noel, o “Brasil de Tanga”.

O samba explode em todo o país no carnaval de 1930 e aparece na boca do povo, surpreendendo até seu autor. A expressão – com que roupa? – passou a fazer parte do vocabulário do carioca, nas dificuldades. Aconteceu que, antes mesmo do sucesso o cantor Ignácio Guimarães ofereceu a Noel a importância de 180 mil réis pela aquisição da música, o que foi aceito. Dessa forma, o cantor tornou-se dono do samba mais cantado no Brasil. A partir do “Com Que Roupa?”, Noel compôs sem limite. Bastava surgir um tema para que nascesse uma letra de música.

Em 1931 ainda compunha músicas sertanejas como “Mardade De Cabocla” e “Sinhá Ritinha”, optando depois definitivamente pelo samba. No mesmo ano entrou para a Faculdade de Medicina, sem, no entanto, abandonar o violão e a boemia. O samba falou mais alto pois largou o curso meses depois. No ano seguinte começa a compor de maneira sistemática e em quantidade, como as canções “Cordiais Saudações”, “Quem Dá Mais?” e “Gago Apaixonado”, sendo que algumas delas acabam utilizadas no teatro musicado. O relativo sucesso individual e com o conjunto colaboram para a assinatura de contratos com algumas emissoras de rádio.

Noel Rosa, aos 18 anos, com uniforme do Colégio São Bento e acompanhado de Fernando Lopes

Em 1932 é contratado pela Rádio Philips como contrarregra no programa do Casé, apresentando-se também como cantor. A partir desse momento seu universo profissional e artístico se expande, revelando-se nas várias parcerias (Lamartine Babo, Ismael Silva, Orestes Barbosa, Francisco Alves) e nas excursões por São Paulo e sul do Brasil. Desse modo, começam as apresentações públicas de Noel e aos poucos o meio radiofônico e o público vai tomando conhecimento daquele rapaz que, em menos de oito anos, construiu uma obra invejável, não só pelo número de composições que fez – mais de 250 –, mas, principalmente, por sua genialidade de músico e letrista. E a certeza da importância de Noel Rosa para a cultura brasileira já era clara na época, como atestam as palavras de Orestes Barbosa, dezoito anos mais velho, para Nássara: “Sabe de uma coisa, Nássara? O sem-queixo é um gênio”.

Nesse contexto, Noel conhece Vadico, com quem estabelece marcante parceria, iniciada com “Feitio de Oração” (1933) seguida por “Pra Que Mentir” (1934), “Feitiço Da Vila” (1934) e “Conversa De Botequim” (1935). O ano de 1933 dá início a um período criativo e produtivo, com dezenas de canções gravadas por ele e outros intérpretes, tais como “Positivismo” (com Orestes Barbosa), “O Orvalho Vem Caindo”, “Três Apitos”, “Não Tem Tradução”, “Filosofia” (com André Filho), entre outras. É nesse ano também que ocorre a conhecida polêmica com o compositor Wilson Batista que redunda em canções como “Rapaz Folgado” (1933), “Feitiço Da Vila” e “Palpite Infeliz” (1935).

Nesse mesmo ano conheceu sua futura esposa, Lindaura, que quase lhe deu um filho: ao cair de uma goiabeira no quintal de sua casa, Lindaura perdeu o bebê. Apesar de fortes problemas pulmonares, Noel não largava a bebida e, com bom humor e ironia, formulou uma teoria a respeito do consumo de cerveja gelada. Segundo ele, a temperatura fria da cerveja acabava paralisando os micróbios, livrando-o da tosse. Com isso, ia ludibriando os amigos e a si mesmo.

Por essa ocasião Noel precisou transferir-se para Belo Horizonte devido à lesão pulmonar que o acometera subitamente. A capital mineira tornara-se o local ideal para o tratamento prolongado. Lá não havia bares, nem botequins ou as estações de rádio que Noel frequentava tanto. A viagem à capital mineira surtiu efeito temporariamente. Noel havia engordado 5 quilos e apresentava sinais de melhora. Entretanto, a boemia falou mais alto. Não tardaria muito para que o compositor descobrisse os segredos da vida noturna da capital mineira, entregando-se novamente às cantorias e bebedeiras. Noel e a esposa estavam instalados na casa de tios que, ao descobrirem as saídas noturnas às escondidas de Noel, mandaram o casal de volta ao Rio.

Nos últimos meses de 1936, Noel não mais saía de casa, preferindo evitar as pessoas, sobretudo as que o questionavam sobre o seu estado de saúde. A única pessoa que o poeta visitava regularmente era o sambista e compositor Cartola, lá no morro. Enfraquecido, faz poucas músicas, entre elas “Você Vai Se Quiser” e “Xis Do Problema”. No início de 1937, numa outra tentativa de recuperação, Noel e Lindaura rumaram para Nova Friburgo, em busca do ar puro da montanha. Em vão, pois Noel se deprimia, sentindo falta da Vila Isabel. Mesmo com o agravamento da doença, ele compõe “Pra que Mentir” e “O Último Desejo”.

Ao voltar para o Rio, a doença já havia o tomado por inteiro. Sentia-se fraco, melancólico, apático. Alguns amigos sugeriram-lhe que passasse uns tempos na tranquila cidade de Piraí (RJ). Mais uma vez, o casal partiu rapidamente, mas, certa noite, Noel sentiu-se muito mal, tendo que retornar às pressas para casa. Já se sabia que o poeta se encontrava em fase terminal. Na noite de 4 de maio deste mesmo ano, nos braços de Lindaura, em seu quarto no chalé, Noel veio a falecer de tuberculose aos 26 anos de idade. A notícia não pegou ninguém de sobressalto, pois, a essa altura, a sua morte já era dada como certa.

Noel tinha suas esquisitices, uma delas era não gostar de andar em grupo, motivo pelo qual se afastava o quanto podia do “Bando dos Tangarás”. Queria ser independente, andar pelos cabarés sem lenço nem documento. A época era favorável à música nordestina por isso todos a cantavam, inclusive os “Tangarás” e Noel Rosa. Ele apresentou-se com Renato Murce, fazendo uma embolada que recebeu o nome de “Perna Bamba” mas verificam que sua vocação não estava nesse tipo de música. Era carioca, portanto, sua praia era mesmo o samba.

O carnaval em Vila Isabel era um dos melhores do Rio de Janeiro. O bairro além das Batalhas de Confete competia com blocos de outros bairros em desfiles com premiações. Vila Isabel possuía dois blocos famosos: o Cara de Vaca, formado pela turma da Rua Souza Franco-Torres Homem, e o Faz Vergonha, formado pela turma da Rua Maxwell, próximo à Fábrica Confiança, do qual Noel fazia parte. Dizem que o nome do bloco se originou do comportamento de Noel Rosa, que estava sempre aprontando, fazendo vergonha.

Em 1934, participando ativamente da esbórnia carnavalesca, Noel começa a emagrecer e demonstrar cansaço. Dona Martha observa o filho e se preocupa, mas não consegue tirá-lo da rua nas madrugadas. O Dr. Edgard Graça Mello, médico da família, é chamado e detecta a doença: Noel estava com lesão no pulmão direito e já começando no esquerdo. Era o início de sua via-crúcis. Além disso, Noel amava as mulheres. Seus grandes amores foram, Clara Corrêa Netto, Fina (Josefina Telles Nunes) e Ceci (Juraci Correia de Morais) por quem se apaixonou, verdadeiramente. Casou-se, entretanto, com Lindaura, uma sergipana que morava na Rua Maxwell, no dia 1º de dezembro de 1934.

Entre outras bossas, foi Noel Rosa que, ao lado de Almirante e do Bando dos Tangarás, introduziu a “cozinha” – como a batucada com latas feita na gravação da música “Lataria”, de Almirante e João de Barro –, nome genérico para os instrumentos de percussão como pandeiro, reco-reco, cuíca, surdo e tamborim, entre outros, nas execuções dos conjuntos musicais e das orquestras. O fascínio que os malandros dos morros exerciam sobre Noel e a música feita por eles, fez com que Noel incorporasse não só a forma de compor, mas também a cadência melódica, marcando, em definitivo, a difusão e aceitação do samba como música de qualidade, contribuindo para a superação dos preconceitos que identificavam o samba como “música de negro”, coisa de um povo “bárbaro” e “ignorante”.

Por outro lado, Noel usou o seu talento para realizar nas suas músicas uma brilhante crônica social do Rio de Janeiro que se urbanizava com rapidez, das injustiças sociais do país, da política, das relações amorosas e das mudanças culturais provocadas pelo crescimento da “mass mídia”, particularmente o cinema falado e o rádio. O “Bernard Shaw do samba”, ou o “filósofo do samba”, como era chamado por alguns radialistas e jornalistas da época, deixou registrado em suas composições o universo histórico-cultural do final dos anos 20 e meados dos 30. Não é, pois, à toa a influência exercida por Noel sobre a música popular brasileira, as referências dessa influência feitas por Chico Buarque de Holanda, entre outros, os vários espetáculos teatrais a seu respeito, as inúmeras regravações das suas composições, sendo as mais recentes os dois CDs gravados, em 1997, por Ivan Lins com vinte e cinco músicas suas.

Mas Noel de Medeiros Rosa foi também um homem atormentado e descrente, que não concebia a vida sem a boêmia, a malandragem, os botequins, os cabarés, os prostíbulos – como os do Mangue que frequentou desde o início da adolescência – e as grandes bebedeiras. Este era seu modo particular de amar a vida, a tal ponto que mesmo sabendo que a tuberculose lhe corroía os pulmões nunca largou o cigarro, a bebida e a boêmia.

Foi um sedutor incorrigível, envolvendo-se com várias mulheres ao mesmo tempo, o que lhe custou um casamento forçado com Laurinda, embora não a amasse, e se declarasse um inimigo mortal do casamento. Amou intensamente Ceci, para quem deixou como última composição, entre as inúmeras feitas para ela, “Meu Último Desejo”, em parceria com Vadico, lembrando o dia que se conheceram numa festa de São João, no cabaré Apollo, fazendo uma espécie de samba-testamento. Sua relação com Ceci foi longa, intensa e tumultuada.

Também são famosas as suas brigas com dois malandros muito conhecidos na época: Kid Pepe e Zé Pretinho. Embora tenha dado a Kid Pepe a parceria em “O Orvalho Vem Caindo”, o fato de não querer continuar o tendo como “parceiro” provocou a ira de Kid que vivia ameaçando lhe dar uma surra. Zé Pretinho, por quem Noel nutria uma amizade sincera livrou-o das ameaças, explicando-lhe que mostrara a Kid Pepe que andava armado com um revólver e que se ele tocasse em Noel ia receber chumbo na cara.

Algum tempo depois, tendo viajado e deixado uma música sua com Zé Pretinho para que ele ultimasse os preparativos para a gravação, não se conforma quando, ao retornar ao Rio de Janeiro, sabe que a música havia sido gravada sem o seu nome e o amigo havia dado a parceria para o seu desafeto Kid Pepe. Inconformado, trata mal Zé Pretinho e acaba por levar uma grande surra. Sua resposta-vingança veio na forma de sempre e com a arma que melhor sabia manejar, compõe “Século Do Progresso”.

A outra briga que causou uma “polêmica musical”, curta, mas muito comentada, foi com Wilson Batista em virtude do samba deste enaltecendo a malandragem, “Lenço No Pescoço”, duramente criticada por Orestes Barbosa num artigo de jornal e numa música de Noel, “Rapaz Folgado”. Wilson respondeu com “O Mocinho Da Vila” na qual critica o compositor e o seu bairro. Noel então dá-lhe o troco com a brilhante “Feitiço Da Vila”.

Wilson não se dá por vencido e compõe “Conversa Fiada” recebendo como resposta “Palpite Infeliz”. Ao invés de reconhecer a sua incapacidade de competir com Noel, mas possivelmente interessado em se aproveitar da evidência e do sucesso deste, Wilson comete “Frankstein Da Vila”, referindo-se ao defeito físico de Noel, e este não se manifesta. Um dia encontram-se no Café Leitão e Wilson mostra-lhe “Terra de Cego”, Noel pede-lhe para colocar outra letra, e nasce assim “Deixa De Ser Convencido”. Termina dessa forma inusitada a famosa “polêmica”.

Assim era Noel. O crítico mordaz dos costumes da sua época e da política. Fascinado pela malandragem, de repente volta-se contra ela. Inconformado com a exploração que os compradores de músicas estabelecem aos compositores pobres, influencia Ismael Silva a se libertar de Francisco Alves. Foi capaz de passar por cima da leviandade de Wilson Batista, talvez por reconhecer ali um compositor embrionário que ainda daria bons frutos.

O menino que gostava de parodiar o Hino Nacional com letras pornográficas continuava a viver no homem dos improvisos com Marília Baptista, como na música “De Babado”, nas desculpas descabidas que dava a Ademar Casé por causa dos seus atrasos, nos vários títulos que dava à mesma música – “Cem Mil-Réis” –, aproveitando-se do ouvido desatento do radialista, e assim ganhando os bônus oferecidos por Casé pela apresentação de músicas “inéditas” semanalmente no seu programa. Talvez Noel Rosa soubesse enfim, mais do que ninguém, que “quem acha vive se perdendo”. E assim escolheu viver e morrer.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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