Memória Viva

Arthur Virgílio Filho (Capítulos 11 e 12)

Postado por Simão Pessoa

Por Mário Adolfo

O AI-5 cassou os mandatos do então deputado Bernardo Cabral e do senador Arthur Virgílio Filho, suspendendo seus direitos políticos por dez anos, no mesmo dia, mês e ano: 10 de fevereiro de 1969. Eram amigos de longas datas, mas foi na resistência à ditadura que essa amizade se consolidou ainda mais. Quando Arthur assumiu a Secretaria de Justiça, nomeou Bernardo Cabral por telefone, e este aceitou na hora. De lá para cá, nunca mais esqueceu o grau de confiança que Arthur nele depositou, apesar da pouca idade.

Em 1978, quando o seu filho, o hoje senador Arthur Virgílio Neto, disputou, pela primeira vez, o mandato de deputado federal pelo MDB, ambos foram à praça pública participar de sua campanha eleitoral, apesar de estarem cassados e correrem o risco da perseguição do governo militar. Cabral lembra a atitude do velho Arthur diante de seu gesto:

– Dessa minha atitude, escreveu-me uma longa carta (de cujo texto Arthur Neto tem conhecimento), que é um verdadeiro hino de louvor ao seu velho Amigo e Companheiro e na qual confirma uma das suas veementes características: a gratidão.

Ao saber que a vida do senador Arthur Virgílio Filho estava sendo resgatada através do projeto Perfil Parlamentar, da Câmara dos Deputados, Bernardo Cabral fez questão de enviar um depoimento comovente em que diz, entre outras coisas, que Arthur Virgílio Filho ganhou de Deus o privilégio de ser político, por vocação. Jamais nele se vislumbrou o exercício do contorcionismo político ou a neutralidade oportunista, que costumeiramente vêm revestidas de astúcia.

No seu desempenho como homem público, lembra, as decisões que tomava eram ditadas por imperativo de consciência que nele se sobrepunha a eventuais compromissos políticos.

– Fui seu amigo a vida inteira e com ele convivi de perto. Deputado estadual, secretário de estado, deputado federal, senador, líder de partido, Arthur Virgílio tinha os seus alicerces plantados no chão firme da dignidade, que será sempre superior às areias movediças do fisiologismo político.

Um outro fato digno de ser registrado por Bernardo é que Arthur Virgílio Filho conseguiu “adquirir matrícula e graduar-se na Universidade da Honradez Pessoal, o que o tornou intransigente com os princípios, mas tolerante com as pessoas, o que fez com que merecesse a admiração dos seus contemporâneos e o respeito dos seus pósteros”.

– Por não ser homem de bens materiais, o que ele deixou para a família como legado foi um amplo formal de partilha de lealdade, bravura, competência e dignidade. E se para alguns não vier ele a servir de modelo, haverá, por certo, de servir de exemplo.

Apesar dos dez anos que a ditadura militar lhe tirou, Bernardo Cabral conseguiu se soerguer e retomar de forma impressionante a carreira política. Foi eleito deputado federal em 1984, relator da Assembleia Nacional Constituinte em 1988, ministro da Justiça no governo Collor, em 1989, e senador em 1994. Perdeu a eleição em 2002 e passou a residir no Rio de Janeiro, onde mantém sua banca de advocacia.

O ex-deputado e jornalista Arlindo Porto

Em 1947, Arlindo Porto era o jornalista credenciado do Jornal do Commercio para cobrir a Assembleia Legislativa, quando ela ainda funcionava no imponente prédio do Instituto de Educação do Amazonas, na avenida Eduardo Ribeiro. Foi lá que ele conheceu e aprendeu a admirar o deputado Arthur Virgílio Filho, então no PSD.

A cada matéria que escrevia sobre Arthur, mais admirava seu discurso firme, a voz grave e impostada, o caráter e o sentimento de ética que faziam parte da personalidade do político. No fundo, foi essa admiração por Arthur Virgílio Filho que acabou levando Arlindo para a política, elegendo-se deputado estadual pelo PTB, em 1955.

No seu segundo mandato, Arthur se transferiu para o PTB, assumindo a presidência do partido, quando passou a conviver mais proximamente de Arlindo, que era o vice. Em 1963, eleito senador, Arthur tornou-se líder do governo, e Arlindo Porto foi guindado à presidência do partido no Amazonas e à vice-presidência da Assembleia Legislativa. E essa seria a pá de cal que provocou sua cassação, em fevereiro de 1967.

Foi o dia mais difícil na vida do jornalista, mas também aquele em que ele demonstrou que não tinha medo de nada quando se tratava de defender seus princípios. Arlindo foi o único político no país a ser cassado por seus próprios colegas, porque sua cassação foi submetida à votação. Apenas três deputados votaram contra a guilhotina da ditadura: Francisco Guedes de Queiroz, Rui Araújo e Abdala Sahdo.

– Eu sabia que o processo de cassação estava sendo desenvolvido de maneira secreta. Mas nunca eu fora ouvido nem sequer informado das motivações, das acusações do que pesava sobre mim. Eu não sabia de nada. Nesse dia eu tive a certeza de que iriam tentar realizar a sessão secreta de apreciação da matéria porque já haviam me dito isso na véspera. Não foi numa sessão normal, a minha cassação. Aconteceu depois de uma sessão ordinária, durante a convocação de uma sessão secreta, exclusivamente para cassar o meu mandato. Eu fui o único deputado no Brasil que teve seu mandato cassado pela própria Assembleia Legislativa. É impressionante essa mancha que o Parlamento do Amazonas carrega na sua história. Nenhuma outra carrega isso – lamenta o jornalista, que hoje é aposentado e dedica-se à literatura.

Arlindo Porto foi preso em sua casa, à rua Alexandre Amorim, na mesma noite da cassação, e levado para o Quartel do Cigs, no São Jorge, onde ficou recluso durante 128 dias. No dia 7 de fevereiro de 1967, ele escreveu à mão, numa cadernetinha de capa preta que guardava até hoje, o artigo que nunca seria publicado, a não ser aqui, neste Perfil:

“Homens escrachados pela pusilanimidade e pela covardia tiraram-me o mandato que 1.382 cidadãos, sem qualquer coação a não ser a da amizade e do reconhecimento por serviços prestados, me outorgaram pelo número de votos que eu tive. (Eu fui o terceiro mais votado nessa eleição, comenta, pedindo para desligar o gravador.) Na tarde desse dia, em reunião secreta, a Assembleia Legislativa cassou meu mandato de deputado, entregando minha cabeça numa bandeja de bronze, às exigências daqueles que não dormiriam em paz enquanto não corresse o sangue de alguém do Legislativo.

Qual meu crime? Que fiz eu? De que me acusam? De alguma traição ao meu povo, ao meu país, ao meu mandato? Não disseram! Essa preocupação não chegou a lhes tirar o sono, e aqueles que votaram pela cassação do meu mandato, por certo aliviados pelo cumprimento cívico que deles estava a ser exigido pelos medíocres, pelos invejosos, pelos despeitados, hão de ter retornado ontem para suas casas, para os braços de suas esposas, para os carinhos infantis dos seus filhinhos, sem se lembrar, sequer por um instante, de que de seus gestos brotaram lágrimas de minha mulher e de meus filhos na hora em que eu era preso por um crime que ainda continuo a ignorar qual seja. Lágrimas que não esquecerei jamais ainda que viva mil anos, mas diante de Deus e pela minha fé eu os perdoo, sei que não é possível encontrar em todos os homens aquela fortaleza e caráter que sentimos em nós, principalmente na hora da adversidade.

As criaturas, apesar de feitas pelo mesmo barro e inspiradas pelo mesmo alento vital, diferem profundamente entre si, cada uma reage de forma diferente e distinta ante os fatos. Diante do que alguns riem, outros choram. Por isso, a minha reação diante de todos os meus ex-colegas é esta, de perdão puro e simples, não lhes guardo rancor visto que eu lhes conheço um a um e sei, pobre deles, que agiam fiéis a si próprios, ao medo terrível de que quase todos eles têm de se adiantarem um milímetro sequer além da imensa mediocridade que são suas vidas públicas.

Manaus, 7 de fevereiro de 1967”

A primeira manifestação de solidariedade que Arlindo Porto recebeu, ainda na prisão, foi a do senador Arthur Virgílio Filho, que, como o próprio Arlindo, seria cassado mais à frente.

– Um dos professores que eu tive na minha juventude, que muito contribuiu na minha formação política em termos de ética, de austeridade, de respeito e de combatividade pelas causas em que eu me envolvia foi sem dúvida nenhuma Arthur Virgílio Filho – diz Arlindo, que fez questão de dar um depoimento pessoal para o Perfil Parlamentar do senador:

– Eu tive um conhecimento pessoal muito grande e respeitoso com o senador Arthur Virgílio Filho. Eu já o conheci como deputado estadual e tive a oportunidade de conhecer ainda mais quando, na condição de repórter credenciado do Jornal do Commercio na Assembleia, passei a cobrir as sessões do parlamento. Foi ali que eu travei conhecimento pela primeira vez na minha existência de jovem, com a impetuosidade e o destemor de Arthur. Eu o conheci ainda jovem, como deputado estadual quando ele já revelava suas condições, suas qualificações de um grande tribuno. Era um homem que abordava assuntos da maior exuberância com uma capacidade extraordinária de conhecimento e firmeza. Era tido e respeitado como um dos maiores oradores da Assembleia.

– De detalhes, eu não consigo me lembrar. Mas sei muito bem que a minha admiração pelo Arthur era grande, até por que eu já o acompanhava. Sabia que o pai dele era um magistrado respeitado, já bastante idoso, que morava ali na praça da Igreja dos Remédios, perto da Faculdade de Direito onde eu estudei. Ali morava o velho Arthur, desembargador Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro. No decorrer da minha vida profissional fui desenvolvendo um acompanhamento da atuação política, das mais respeitáveis, do Arthur.

– Na fase do golpe, em 1964, eu ainda era vice-presidente da Assembleia e tive meu mandato cassado, primeiro que ele. Na mesma noite da cassação, fui preso ali na minha casa, na rua Comendador Alexandre Amorim, de onde fui levado para o Quartel do Cigs, no São Jorge, onde fiquei preso durante 128 dias. Diga-se a bem da verdade que nenhum de nós sofreu qualquer espécie de violência física. A tortura era moral, psicológica e mental. Se alguém disse que alguém foi batido, torturado estará mentindo. Nunca foi explicado o porquê da minha cassação.

– Mas, voltando ao Arthur Virgílio, ele teve uma participação intensa na vida política e administrativa do estado. Sobretudo na fase final da administração do governador Álvaro Maia. Ele era assim, acreditava nas pessoas de quem conhecia o caráter e a honestidade. Por isso confiava. Eu, inclusive, me tornei delegado de Segurança Política e Social, um dos cargos importantes na minha juventude, por uma imposição fraterna do Arthur Virgílio, que era secretário de Interior e Justiça. O cargo vagou e ele, sem sequer me consultar, lembrou meu nome. Quando eu dei por mim já estava nomeado. Eu, como delegado de Segurança Política e Social; Bento Vital de Oliveira, como delegado de Segurança Pessoal; e o Guimarães Jacinto, como delegado de Roubos e Furtos. Todos os três sob o comando do chefe de polícia da época, o Dr. Washington Melo.

– Isso foi no primeiro governo do Plínio Coelho, a partir de 1954. Foi uma imposição fraterna do respeito que ele tinha por mim, da amizade que ele tinha por mim e do bem-querer que eu tinha por ele. Ele me colocou lá e, graças a Deus, eu tenho certeza absoluta de que eu desempenhei essa parte da minha vida com muita lisura. Devia ter uns 26 anos de idade. Quando eu fui cassado, tinha 34 anos.

(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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