Boemia

O prato feito de butiquim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Um grande escritor (fiquem tranquilos porque não é o Ernesto que, de escritor, só mesmo uma curta temporada trabalhando para o jogo do bicho), conhecido por maravilhosas biografias, fez uma declaração definitiva ao falar de prato feito: certos cardápios de butiquim deveriam ser lidos como sonetos com dois tercetos engordurados. E a verdade nesse manifesto se comprova em cada esquina, do subúrbio à Zona Sul, passando por becos históricos do centro da cidade.

O que surpreende também é o cartel da refeição. Em qualquer buraco que você se enfiar numa quinta-feira, vai encontrar dobradinha à paulista ou carne-seca com abóbora servidos no prato feito se o bar for de responsa, ou numa tigelinha marrom com borda descascada pelo uso e talher no plástico, exigência inútil da saúde pública. Funciona, também, com a feijoada, aos sábados, o cozido, no domingo e, com pequenas variações, frango com quiabo, às quartas-feiras.

A regra se torna regra na exceção das adegas, quase um atentado aos conceitos macrobióticos do Ibama quando expõem suas improváveis iguarias. Não posso afirmar que o tamanduá de estimação do vizinho que sumiu há três dias seja o mesmo acepipe guisado na taberna do cearense, mas tudo é possível nesses cardápios: testículo de boi, peru e cabrito, pernas de rã, javali e guaiamu, pés de porco, de galinha e de tracajá, uma tartaruguinha já extinta de longínqua região…

E foi daí, desse catalogado animal, o motivo da destemperada atitude do Ernesto diante de uma frase inocente do amigo íntimo quando devorava com casca e tudo o araracangaçu na festa de retorno ao velho boteco.

É que o fulano, cismado, largou o apontamento de grupos, centenas e duques combinados e partiu mata adentro para entender o seu interior pessoal – cá para nós, coisa de quem tem vista para o mar.

Completado um mês do mosquito e barata-cascuda, deu saudade do limão da casa feito de qualquer maneira pelo cearense e ele voltou, trazendo escondido, dentro de cocos remendados, a quantidade necessária do bichinho para uma panelada na birosca.

Ele e os fiscais por trilhas diferentes, até o tabuleiro do refogado.

O prato foi anunciado boca a boca pelos frequentadores antigos, atraindo até o clássico entrão, como é de praxe. Já servido, Ernesto toca a falar da África, onde foi caçar e de onde fugiu com o bicho. Disse que trouxe tangendo até a estrada, uma loucura. Quase acabou preso! Mas foi o comentário do amigo íntimo que estragou a festa:

– Isso aqui tá parecendo frango, tem certeza que é tartaruga?

Pronto. Saiu um bate-boca só resolvido na trégua da batida de limão. Uma delícia.

Papo reto com Paulão 7 Cordas

Uma dica: na dúvida em comprar um disco de samba, procure no encarte o nome do Paulão. Se ele estiver como arranjador, músico ou produtor, leve no escuro. Tenho orgulho de escrever isso, pois o conheço há quase trinta anos. Tenho certeza de que o meu primeiro cachê foi pago por ele. E se o dia for de calmaria, uma garrafa de branquinha é pouco pra nós dois.

Em vez de apenas um, você já comeu dois pratos feitos?

Já, e várias vezes. Quase sempre uma capa de filé que era servida embaixo dos Arcos da Lapa, numa mercearia que não existe mais, pegou fogo.

Qual o melhor prato feito da cidade?

Talvez eu cometa uma injustiça, porque faz tempo que não encaro um prato feito clássico: arroz, feijão, macarrão, vitelinha… mas vou citar o Bar do Mineiro, em santa Teresa.

Você conhece o Gandonga, célebre personagem das noites cariocas, conhecido pela fome voraz? A lenda sobre essa voracidade dele é real?

Eu vi ele comer uns três bifes, depois mais uns três frangos, e não era galetinho, não, era frango de granja. Sem contar as vezes em que ele dormia em cima de um Oswaldo Aranha com farofa e tudo mais.

E a lenda de que você não dividia o cabrito do Capela. Tem fundamento?

Era verdade. Ainda me chateava porque no fim ficava ruim pra mim e pra quem dividia, ninguém saía satisfeito.

A quentinha pode ser chamada de prato feito de rico, já que pode vir, por exemplo, um bacalhau à lisboeta?

Pode ser, por que não? Pedir de prato feito um bacalhau à Gomes Sá.

Existe a expressão de se comer pelas beiradas… Você acha que isso vem do tempo do Angu do Gomes?

É possível, mas eu penso que é porque esses pratos, tipo angu, mocotó, concentram muito calor. O angu tem seu valor, já comi muito na Praça XV, no rei do Angu, esperando o 254 pra voltar pra Madureira.

Na feijoada dá pra encarar o limão de cortesia?

Depende do dia, mas encaro. Eu reclamo demais! Chamo de perfume, parece Aqua Velva, mas encaro. Até porque depois eu como pra forrar.

Em caso de batida, tem receita pra curar a ressaca?

Até chegar aos 35, nunca tive esse troço. Hoje, eu começo devagar, encaro um bom café pra fingir que tá tudo bem, forrar o estômago e mandar bala de novo.

Qual a diferença emocional entre o mocotó e o sushi?

A diferença é que o cara pode até morrer. Se o cara sair pra comer mocotó e for apresentado ao sushi, o sujeito pode até morrer!

Que comida você acha que melhor representa o samba?

Tem três: feijoada, angu à baiana e macarronada – macarrão com frango.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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