Por Antônio Maria
Vi-a, pela primeira vez, no Vogue. Cantava escondidinha, fora de luz, atrás do saxofonista. Quase não se lhe via o rosto. Faz muito tempo. Mais tarde, fizemo-nos amigos. Com Ismael Neto, andávamos constantemente juntos. Estava presente, quando fizemos algumas canções, Canção da volta, por exemplo, de que foi a primeira intérprete. Hoje em dia, lembrava-se de canções, minhas e de Ismael, das quais não me lembro. Só ela se lembrava. Prometia sempre um encontro (um maestro presente), para escrevermos essas músicas, que Ismael não teve tempo de escrever. Uma delas chama-se Dez noites. Essas músicas não serão conhecidas nunca mais.
Poucas vezes passou pela música popular uma mulher de tanta sensibilidade. Seu coração era um coração repleto de amor. Nunca a vi que não dissesse estar apaixonada. Não dizia por quem. Vi-a, pela última vez, na madrugada da última quinta-feira, no Kilt Bar. Fazia contracanto com um disco de canção francesa. Todos a ouviam, em silêncio. Depois, levantou-se, atravessou o bar e foi sentar-se sozinha, a uma mesa escanteada. Atirou-me um amendoim, para que eu a olhasse, e gritou de lá: “Estou tão apaixonada, e quero ficar aqui quietinha. Posso?”
Ultimamente, fazia canções lindíssimas, uma delas, Por causa de você, de parceria com Tom. Sozinha, fez o samba Castigo, onde, expressivamente, disse o que nenhum compositor ou letrista soube dizer antes: “A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer; briga pensando que não vai sofrer”, etc. Sua última composição é, porém, a mais bonita de todas – “para enfeitar a noite do meu bem”. É aí que dá todo o seu delicado coração. As coisas que ela arranja para enfeitar a noite do seu bem vão desde a “paz de criança dormindo” até a “alegria de um barco voltando”.
Agora, que Dolores foi dormir, o que encontraremos, o que iremos buscar, para enfeitar-lhe a longa noite?
Nos começos deste ano, aqui esteve uma condessa portuguesa, que me pediu, certa noite, para levá-la a lugar onde visse gente interessante.
Estava cansada de uma Sociedade que frequentava. Expliquei-lhe que coisa difícil ela me pedia. E levei-a, por levar, ao Baccara. Lá, chegou Dolores, casualmente. Sentamos os três, e Dolores começou a contar sua viagem à União Soviética. Minha amiga não parava de rir um só instante. Dolores, com aquela riqueza de palavras raras, com aquele seu espírito agudíssimo de observação, a descrever Moscou (com todos os seus bens e males) como ninguém descreveu, até hoje. Em cartas, essa minha amiga, de vez em quando, recorda essa noite e manda lembranças e recados para Dolores Duran. Dizia, na última carta: “Essa menina não existe.” Terei que mandar dizer-lhe: “Aquela menina já não existe.”
Desambiciosa. Simples e modesta. Feliz, porém, da alma que tinha. Não sabia fazer planos. Pretendia, mas só pretendia, voltar um dia a Paris, ir ficando e, lá, continuar até à morte: “Nasci para viver aquela vida. É uma vida que eu não sei dizer como é. Mas é aquela vida que eu quero viver.”
Perdemos uma amiga de qualidades muito raras. Não sei muito o que dizer do seu coração. Sei que o conhecia e o amava. Aqui, onde estou, penso em levar flores para enfeitar sua Noite. São tantas as rosas por aqui. Prefiro mandar-lhe, porém, o meu pensamento, repleto de amor, transbordante de saudade.
Chega o cantor Bola Sete, com um violão. Faço-o sentar. Dou-lhe a notícia e um copo de vodka. O negro chora, procurando esconder o rosto dentro das mãos. Conta, entre soluços, que, na véspera, Dolores tocou em seu violão. “Estava tão calma” – disse o negro.
Soluça e diz depois às pessoas que se sentavam conosco: “Pergunte a ele quanto ela era boa.”
Pegou o violão e cantou, entre lágrimas, A noite do meu bem.
E é só, Dolores. Essas palavras. Só. Depois, a pouco e pouco, iremos todos esquecê-la. Lá uma vez ou outra, quando cantarem o Castigo, a gente se lembrará. Seu rosto gordo, sua boca fina, seus olhos ansiosos, sua voz rouca, bonita – a voz que eu mais gostava de ouvir. Escrevo estas notas em um dia limpo de sol. Você gostaria de ver este dia, porque você amava os dias claros, assim. Você disse, numa canção: “Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol”. Como eu queria agora lhe dar a mão! É tarde, menina. Sua mão é distante. Tem que ficar para depois, se depois houver, ainda, uma manhã assim, de sol glorioso e imensa fraternidade.
Tem que ficar para depois – um “depois” que a gente não sabe onde é e quando será. Que triste a vida, quando se perde um amigo!
Procuro você, agora, para guardar os traços do seu rosto. Você, palidamente, você. O aroma da morte, entre as flores. Realizo no sono do seu rosto toda a humanidade, num só momento difuso e longínquo. Roda-me a cabeça pelo álcool que bebi à notícia de sua partida. Já não sei onde estão as palavras. Bola Sete está aqui defronte, emborcado sobre os braços. Há pouco, levantou a cabeça e, ao ver-me escrevendo, pediu, como se pedisse a alguém que escrevesse uma carta: “Mande-lhe um abraço.”
Emborcou-se outra vez sobre os braços. Desce sobre mim um sono feito de todas as desilusões. Não é o sono bom, de todas as noites, onde o cansaço e a rendição voltam todas as noites. É um sono sem brandura, que deve somar todas as minhas desesperanças. Alguém já escreveu qualquer coisa parecida com isso, sobre o sono. Um poeta, Dolores, não me lembro qual. Estou que não sei mais o valor e a ordem das palavras. Mando-lhe um beijo, para enfeitar sua noite. Se for pouco, depois a gente acerta. Devo ter melhor em mim, melhor que isto, para um bilhete de despedidas.
Depois, a gente acerta.
(Última Hora / 27 de outubro de 1959)