Onde ele nasceu? Na África? No Brasil? Se no Brasil, foi na Bahia? Ou no Rio de Janeiro? Procurou seus ancestrais no Norte? Desceu para o Sul e depois se fixou em definitivo no país inteiro? Seu nome original é semba? Mas não existem os que já o chamaram zambra, zambo, zamba ou ainda mais ancestral e simplesmente de batuque?
Sua família é muito grande e se divide pelo Brasil afora onde, desde há muito tempo, seus parentes – avós, tios, sobrinhos, primos – são conhecidos por nomes às vezes estranhos como lundu, jongo, maculelê, fofa, samba-de-roda, maxixe, tambor-de-crioula, samba-lenço, partido-alto, modinha e tantos outros?
Suas origens são urbanas, engravatadas, ou ao menos embaladas pelos sons próprios de cidades grandes ou pequenas? Ou teria surgido no ambiente rural, tranquilo e bucólico dos terreiros de fazendas, nas raras folgas senzalas, nas festas religiosas miscigenadas pela força do chicote do feitor, movido pelo controle remoto nas mãos do sinhozinho?
Hoje tão sedutor, arrastando multidões em sua esteira, aplaudido e acarinhado, já foi proscrito, perseguido, preso, confiscado, quase excomungado, coisa da ralé, divertimento vil, próprio do negro africano e de seu subproduto, o indolente mulato, no dizer das classes dominantes brasileiras no século passado. Mencionado na imprensa pela primeira vez em 1838, tem atualmente grande espaço na mídia, que dele se ocupa não apenas como manifestação musical, mas como um dado formador do todo da cultura brasileira.
De que forma esse ritmo, meio bastardo, pé no chão, saindo dos terreiros e dos fundos de quintais, entrando pela porta das cozinhas das casas-grandes das fazendas e descendo as ladeiras de barro das favelas para subir as escadas de mármore dos teatros municipais das grandes capitais, transforma-se no retrato musical do Brasil, como nossa mais forte identificação cultural diante dos povos, e assume o papel emblemático de nosso representante mais conhecido fora das fronteiras?
Das primitivas rodas de batuque, da lasciva umbigada que tanto espantava os cronistas estrangeiros que, ao retornar de suas visitas ao Brasil, a descreviam como a mais erótica de todas as danças, raiando pela imoralidade (o que lhe valeu a proibição e proscrição religiosa em várias regiões do Brasil, chegando mesmo a ser preso o fazendeiro que a permitisse) até a consagração internacional, o caminho foi longo.
A imposição do sincretismo, aceitando nomes cristãos para deuses africanos; as adaptações de festas religiosas para o ritual católico, transformando festivos desfiles em procissões que aos poucos, porém, retornaram ao seu caráter lúdico (como exemplos o reisado, a congada etc.), a guerreira capoeira, valente luta camuflada em jogo dançado, o jongo que antecede o partido-alto, são alguns dos muitos passos que, iniciados em várias origens, acabam por convergir no resultado musical de um país de muitos ritmos, mas que sem nenhuma dúvida tem nele seu representante maior, o samba.
Já codificado, deixando a adolescência, abandonando terreiros, avizinhando-se de casas festeiras, primeiro nos subúrbios, depois nas mansões, que aos poucos vão se deixando seduzir por ele, cantarolado nos bares e cafés da moda, assobiado nas calçadas, vai-se aproximando dos microfones, tomando conhecimento da novidade que era o rádio nas primeiras décadas do século e deixando que o rádio tomasse conhecimento dele.
No início do século 20 viu seu nome impresso em um rótulo de disco – outra novidade musical que mexia com o Brasil e o mundo a partir de sua invenção nos últimos anos de século 19 – e já mostrava que nascera polêmico e que as coisas deveriam continuar assim para sempre: era tão importante, mesmo ainda muito jovem, que vários pais apareceram para adotá-lo e batizá-lo. No decorrer dos anos seria muitas vezes manipulado, alterado, roubado, negociado, plagiado, objeto de inspiração e talento para alguns e de cobiça para muitos.
Ainda se prepara para glórias maiores e faz isso por meio de seus primeiros cultivadores, a gente humilde que combateu na revolta de Canudos e escolheu o Rio de Janeiro para começar vida nova, juntando-se à leva de migrantes que vieram do Vale do Paraíba para trabalhar no braço, morar nos cortiços do centro da cidade e se divertir principalmente nas muitas festas nas casas das tradicionais “tias” baianas. Que por “dá cá aquela palha”, promoviam – para festejar santo, aniversário, batizado, fosse o que fosse – cultos religiosos, sambas e comilanças que chegavam a durar uma semana, nos quais os participantes saíam para trabalhar e voltavam para se divertir ininterruptamente, dormindo em esteiras, as panelas sempre quentinhas e o samba comendo solto no fundo do terreiro.
Ali e em comemorações tradicionais como a Festa da Penha, a que compareciam todos os bambas, os maiores compositores da época, para comer, beber, brigar e lançar suas criações, que com certeza seriam sucesso no Carnaval, o samba começava a se mostrar. Sem desprezar – muito pelo contrário – os palcos dos teatros de revista, as principais vitrines de lançamento musical na cidade, fazendo pelo samba urbano o que a Festa da Penha fazia pelo chamado samba de morro.
Conquistados o disco e a radiofonia, todos os salões se abrem para o samba. O cantor Sílvio Caldas leva, pela primeira vez para o aristocrático palco do Golden Room do Copacabana Palace, um conjunto de ritmistas negros liderados pelo compositor Cartola, da Escola de Samba da Mangueira. O mesmo Cartola em um samba memorável – Os Tempos Idos – canta a saga do samba desde suas origens, até seu acesso aos jardins do Palácio do Itamaraty – então a sede da diplomacia brasileira, no Rio de Janeiro –, quando a Escola de Samba da Mangueira exibiu-se para a duquesa de Kent.
Tempos depois, o príncipe de Gales, Charles da Inglaterra, em situação semelhante, rendeu-se aos encantos da passista Pinah e desceu do alto de sua nobreza para ensaiar uma desajeitada performance de sambista ao lado da bela negra. O samba, os (e as) sambistas passam a ser figuras obrigatórias nos grandes shows brasileiros. As escolas de samba reunindo a princípio apenas as comunidades circunvizinhas evoluem para o maior espetáculo musical semovente de todo o mundo, envolvendo milhares de componentes e encantando milhões de pessoas, ao vivo, nos desfiles dos sambódromos, ou no mundo inteiro pelas transmissões de televisão.
Compositores, cantores, criadores, componentes indispensáveis às várias vertentes que formam uma escola de samba – harmonia, bateria, fantasias, alegorias etc. –, ganham destaque como figuras importantes no conceito cultural brasileiro. A própria televisão, como elemento responsável pela divulgação em massa da cultura de imagem, encarrega-se de fazer com que o samba chegue ao conhecimento de um número cada vez maior de pessoas, o que em consequência aumenta o contingente dos que se interessam por ele, de forma artística ou didática.
Tudo isso levaria normalmente a um rompimento físico de fronteiras e no final do século 20 todo o globo terrestre tem conhecimento – de forma mais intensa ou menos intensa – do ritmo moleque que traduz o Brasil em colcheias e bemóis. Levado aos Estados Unidos para apresentação no famoso Carnegie Hall, sob a luxuosa roupagem harmônica da Bossa Nova, acaba por conquistar o país, o mercado fonográfico e por consequência toda a área musical sob a influência norte-americana, tornando Garota de Ipanema, a composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, uma das cinco mais vendidas no mundo, na história da fonografia.
No outro lado do globo são os japoneses que descobrem o samba e em rápida escala passam da admiração inicial à exploração comercial, importando gravações ou levando artistas brasileiros para temporadas em suas casas noturnas, aproveitando as viagens para gravações em seus próprios estúdios. Existe em Tóquio um pub bar chamado Elizeth, que só toca músicas da “Divina” Elizeth Cardoso.
Arte popular da melhor qualidade, tema de um sem-número de teses e antíteses, monografias e biografias, estudos eruditos ou populares, responsável pelo aparecimento de artistas da mais fina extração, amado por todo um país, impulsionador importante da indústria fonográfica, inspiração maior para compositores, músicos e cantores, reunindo em torno de si uma quase unanimidade favorável, só não conseguiu fazer com que seus inúmeros historiadores chegassem a um consenso quanto às suas origens, ao seu nascimento, ao seu desenvolvimento. Dificilmente duas teorias coincidem, é raro as opiniões concordarem, em geral este ou aquele detalhe não encaixa.
Mas, história existe para ser contada. Assim, vamos contar a história do samba. Sob a ótica de muitos historiadores, respeitando todas as opiniões, reproduzindo – e creditando ao autor – todas as teses, todas as suposições, todos os fatos. Desde suas origens mais remotas, de suas mais hipotéticas ou estranhas ramificações, passando por todo o processo de crescimento e sedimentação, até o fastígio de fim-de-século, em que, em vez de pelo telefone, o samba agora se comunica até pela Internet.
(Texto da coleção “História do Samba”, publicada pela Editora Globo, em fascículos semanais, nos anos 90. Vou publicar aqui, claro. O saber é o resultado da soma de conhecimentos da humanidade. E copyright é coisa de viado.)