Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 5 – A Segunda Dentição do Reggae Manauara (Parte 3)

O cantor e compositor Nicolas Jr., autor de mais de 700 composições
Postado por Simão Pessoa

(Por se tratarem de textos longos que só cabem num livro físico, optamos por destrinchar o Capítulo 5 em várias partes, para poder caber nessa plataforma digital. So sorry.)

Nicolas Jr. e a Divina Comédia Cabocla

Nascido em Santarém (PA), o cantor e compositor Nicolau Miléo Júnior, o “Nicolas Jr.”, passou sua infância na cidade vizinha de Terra Santa, no mesmo estado, na ilharga do município amazonense de Nhamundá. Aos 12 anos, começou a tocar violão de maneira autodidata, não indo além dos três acordes básicos do punk. Aos 15, foi estudar em um internato em Ouro Preto D’Oeste (RO), onde começou a escrever seus primeiros poemas e a compor suas primeiras canções, inspirado em Chico Buarque, Renato Russo, Belchior, Caetano Veloso e Raul Seixas.

Em entrevista concedida ao jornalista Paulo André Nunes, do jornal A Crítica, Nicolas Jr. relembrou um pouco de sua trajetória musical até se transformar em um dos mais respeitados e criativos artistas de Manaus. A entrevista vai copidescada por conta das conversas que tive com o cantor em alguns encontros pela noite manauara:

– Vim sozinho para Manaus, onde cheguei em 1998, aos 24 anos, para fazer um curso de música no estúdio do Carlinhos Bandeira, do Carrapicho, que ficava no Parque Dez de Novembro. E aí era para mim, depois do curso, trabalhar em outro estúdio, só que em Rondônia. Só trouxe uma mochila com algumas mudas de roupa, como três calças e uma bermuda. Vim de barco e, na época, as embarcações eram mais lentas, demoravam dois dias para descer o rio Madeira até chegar aqui. Eu dormia e morava no aquário do estúdio daqui de Manaus e, pra dormir, às vezes, era com gravação de bateria comendo no centro, na sala ao lado, na maior barulheira. Acontece que eu fui ficando, ficando e ficando e aí, em um determinado tempo, em 2001, o estúdio faliu. Foi quando mudaram as plataformas musicais, as condições de gravações e o mercado deu uma repaginada total, a partir do surgimento dos “home studio”, que eram aqueles estúdios de gravação feitos em casa, usando apenas um computador e com qualidade digital. A revolução digital e aquela coisa das plataformas de streaming na internet quebraram o mercado dos discos e o monopólio das gravadoras.

– Aí, claro, me vi obrigado a procurar outra coisa para sobreviver. E fui parar num bar do Conjunto Beija-Flor, chamado Fino da Bossa, do ex-vereador Celso Seixas, que foi uma das minhas primeiras experiências com a música. Tirava repertório e cantava por um prato de sopa, ou seja, pelo jantar, de 20h às 21h. Eu não tinha grana. Aluguei uma casa ali perto e não dava para cobrir o aluguel. Depois de algum tempo um amigo meu passou pela mesma situação e eu disse que eu já tinha a casa. Éramos dois lisos. Eu só tinha um espelho, dois pratos e uma panela de pressão, e era nela que a gente cozinhava e lavava a roupa. Eram os nossos únicos bens materiais. Passei fome pra caramba em Manaus. Numa época, durante um ano e pouco, eu comia farinha de manhã, de tarde e de noite. E tomava água pra tufar o bucho e dormir sossegado. Tocando na noite, me veio a ideia de compor. Antes, no estúdio, eu já fazia jingles, e quando o estúdio faliu, eu já tinha uma referência. Como eu tinha acesso aos artistas no estúdio, alguns deles gravavam as minhas músicas.

– Em 2000, no Parque Dez, onde eu morava, tinha uma empresa chamada Infopress, e o rapaz de lá, o Neto, era um cara incrível. Certa vez um carro bateu um cachorrinho de rua e o Neto comprou o medicamento para eu cuidar do cachorro. Num belo dia, quando eu estava dando comida pro cachorro, ao falar que queria gravar um disco, o Neto perguntou se eu cantava. Eu disse que dava umas arranhadas e falei o valor que a gravação do disco, com 1 mil cópias, custaria. E ele falou que iria custear o meu primeiro disco, chamado “Nicolas Jr.”, cuja foto foi feita por fotógrafos lambe-lambes na Praça da Matriz, no Centro, com o rapaz esticando um pano e eu lá, empacotado, com o violão, num calor desgraçado de 14h. Foi uma experiência muito maluca. Tive um sonho que aquilo iria vender e não aconteceu. Vendi pouco mais de 50 discos. Aí, um ano depois, a cantora Lívia Mendes, então presidente da Fundação Villa Lobos (FVL), fez o projeto Valores da Terra, que produziria discos a custo zero para uma galera. Eu me inscrevi na seleção e fui aprovado. Eu mudei o nome do CD anterior para “Simetria”, tirei uma música do disco anterior e coloquei outra, refiz o arranjo de duas músicas e mandei pra FVL fazer a prensagem. Porra, eu já tinha 1 mil discos e ganhei mais 2 mil. Não sabia o que fazer com aquilo. Eu tentava vender as cópias e nada, ninguém queria. Só consegui vender uns 100 discos. Quando você está começando é difícil pra caramba, pra quem veio do interior como eu, você ter a sua obra tocada em algum lugar. O barzinho não é o local para a sua obra ser comercializada, pois as pessoas não conhecem, elas vão lá em busca de entretenimento, de músicas conhecidas que tocam nas rádios e há uma tendência de a pessoa levantar, pedir a conta e ir embora. Isso é natural. Aí eu ficava com aquele monte de discos sem saber o que fazer. Foi muito duro, muito punk…

– Até que um amigo meu falou sobre o programa de rádio Zona Franca, que o Joaquim Marinho tinha aos domingos, na rádio Amazonas FM, no horário inglório de 8h, que para o artista que toca na noite é bastante complicado. Fui no programa, com meu violão, e chegando lá me deparei com aquela figura do Joaquim Marinho, voz grossa, empostada, me convidando para sentar, depois olhou o disco. Ao lado do aquário, uma telefonista e uma linha para cada telefone dos ouvintes. Eu cantei as baladas românticas “Versos de Outono” e “Diário”. Aí, na terceira música que eu ia tocar ao vivo, com a rádio no ar, o Joaquim Marinho, com sua peculiar finesse britânica, virou pra mim e disse, em tom sério: “Escuta aqui, porra, tu não tens alguma coisa melhor pra cantar não?… Essas merdas que você cantou, todo mundo canta, principalmente essa canalha de duplas sertanejas. Isso é um lixo só, porra, uma grande bosta!….”. Me desconcertei. Ai, eu já tinha feito a canção “Geisislaine”, que é uma música que conta uma história de amor com personagens da periferia de Manaus. Meio sem graça, falei que tinha algumas músicas menos românticas, mas que ainda não tinha gravado porque não sabia se elas teriam apelo musical. O Joaquim Marinho insistiu: “Então toca uma delas, porra! Ninguém escuta esse meu programa mesmo…”. Relutei, mas ele insistiu. E eu toquei os versos “Ó Geisislaine, Geisislaine meu amor”. Quando eu terminei de cantar, vi as três linhas de telefone congestionadas, com as pessoas querendo saber que música era essa e onde tinha pra comprar. Aí o Marinho falou: “Eu não te falei? Tá aqui a tua linha de trabalho”. Aí eu abandonei tudo e foquei na linha de trabalho do cotidiano amazonense. Ele me apresentou ao Aldisio Filgueiras, poeta maravilhoso, e foi assim que surgiu um trabalho chamado “Divina Comédia Cabocla”, que foi um disco que realmente vendeu e puxou os outros discos. Vendeu tudo o que não havia vendido antes.

Como se fosse uma mistura alucinada da saudosa banda Mamonas Assassinas revisitando a obra de Belchior ou de Chico Buarque, Nicolas Jr. resolveu colocar em prática o projeto de lançar um disco totalmente irreverente e diferente de tudo aquilo que as pessoas estavam acostumadas a ouvir nas emissoras de rádio da cidade. O resultado deste tour de force foi o CD “Divina Comédia Cabocla”, lançado em 2005, que apresenta músicas críticas e bem-humoradas sobre os mais variados aspectos do cotidiano do manauara. No disco, entre uma música e outra, Aldisio Filgueiras lê algumas de suas crônicas devastadoras e Joaquim Marinho recita o poema clássico de Quintino Cunha, “Encontro das Águas”, em um tom levemente irônico. O disco fez tanto sucesso que mereceu um repeteco intitulado “Divina Comédia Cabocla 2”, com a adição de novas músicas.

O caboclo cantado por Nicolas Jr. na música “Rubenilson” prefere o embalar da rede a correr o risco de sair no chuvisco em busca de trabalho ou cansar as pernas em filas para matricular os filhos Cleide Daiane e Michael Nadson. Seja na Praça da Matriz vendendo quinquilharias ou na “Feira da Panaí” (o nome original é Panair, nome daquela extinta companhia aérea) comprando peixe para fazer uma caldeirada, o caboclo espraia cultura e torna pública a fartura e a biodiversidade dos rios amazônicos. A parafernália musical, que inclui boi-bumbá, samba, carnaval, blues, reggae, rock, guitarrada, brega paraense, música dos beiradões e outros ritmos alucinantes sugerem temas para pesquisas acadêmicas e despertam a curiosidade em observar melhor o dia a dia do viver amazônico.

O disco desnuda a realidade cabocla, entrelaçada de humanidades pensadas e vividas de formas mundializadas ontem e hoje. Logo, trata-se de obra culturalmente construída para desconstruir esquecimentos propositais, como o cenário de maio de 1968, em Manaus, muito bem caracterizado na crônica “Quero meus amigos de volta”, de Aldisio Filgueiras, que não nos permite esquecer que “ter é ser em todo lugar, o que quer que signifique isto!”, e também não nos deixa se afastar da realidade do bodozal, que sustenta parte da maquiagem asfáltica emoldurada pelos semáforos nas avenidas construídas e em construção na periferia da Babilônia. Quando Nicolas diz “eu não sou leso nem tico bodó / mas eu boto no toco se tu me triscá (márrapá!) / eu não vim no Guaramiranga / sou moleque doido não venha frescá / pegue logo o beco e saia vazado / senão num tapa tu vai emborcá”, torna-se clara a identidade construída por quem se criou na “beira”, ali pelo “Ródo” e se “imbiocava lá pelos motô”, mesmo levando lambada da mãe.

A sensação de leveza no pensar ao ouvir músicas, crônicas e poemas do “Divina Comédia Cabocla 2” intriga e inquieta muita gente que, no momento seguinte quer saber como conseguir o “CD Divina Comédia Cabocla 1”. Mas isso só acontece com aqueles que “nadam com boto e chupam piqui, pois não foram criados na farinha do Uarini”, porque quem é “amazonês”, como canta o Nicolas, “dá de cum força na farinha e é inxirido até o tucupi”. E assim, as composições sugerem imagens conhecidas e presentes na vida de Manaus. Na voz de Joaquim Marinho, aprendemos um pouco sobre a vida e a obra de Quintino Cunha, “cearense-amazonense, nascido em 1873 e morrido em 1943”. O poema “Encontro das Águas”, de Quintino, navega na voz de Marinho em tom afinado e bom de ouvir: “Se estes dois rios fôssemos Maria, todas as vezes que nos encontramos, que Amazonas de amor não sairia, de mim, de ti, de nós que nos amamos!”.

“Portanto, de hoje em diante decidi que mesmo ilhado, pagando mais caro e com calor dos diabos, eu quero é ficar aqui, eu quero é ficar aqui”, entoa Nicolas na sua música “Hoje eu vim desabafar”. Esta realidade afirmada e reafirmada no verso e no reverso da vida de muita gente que vive no Amazonas, na Amazônia, nem sempre é expressa claramente, como fez o compositor e cantor, mas ao observar atos e fatos diários facilmente descobre-se o quanto é bom viver em Manaus. Aliás, o poeta Aníbal Beça já avisou que “Manaus é uma cidade que ao invés de morarmos nela, é ela que mora dentro da gente”. Na famosa “Viagem Insólita de Um Caboclo”, Nicolas Jr. simplesmente recria no caboquês a canção “Retrato 3X4”, de Belchior, que traz aqueles versos mortais sobre como o sudeste sempre olhou pro norte-nordeste: “Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava / Pedia os meus documentos e depois sorria / Examinando o três-por-quatro da fotografia / E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”.

Na música de Nicolas, um suposto primo fica contando “vantagens” da urbanização extraordinária do sudeste-maravilha, enquanto que o amazonense levanta a bola do rio Amazonas, da culinária, do mulherio e de outras coisas (que não são bem “vantagens”, mas que mostram o bom humor da canção): “A piscina lá de casa / É que é demais já muito grande / Fica até dificultoso pros menino tomar banho / A bicha mede 3 km de largura / Ela nasce no Peru e vai bater no Oceano / (…) / Já as mulheres tem um sabor diferente / Tomam sol todos os dias / São coradas que nem jambo / São belas por natureza / E fervem mais que café quente / E vou dizer mais uma coisa / Isso muito me convém / Eu não troco essa Amazônia / Por sudeste de ninguém”.

O primeiro grande hit de Nicolas Jr., “Geisislaine”, é um primor de ironia e bom humor: “Eu lembro aquela manhã linda de domingo / Você na laje tomando banho de mangueira / Nos se olhemo e logo se apaixonemo / E nos juremo que ia ser pra vida inteira / Domingo a tarde eu calçava meu All Star / Minha calça social e a camisa de tergal / Você de shortinho de lycra laranjado / E uma blusa sensual com a foto do Magal / E na cabeça uma fita verde e branca / Que nos ganhemo de lembrança / da Amazonha Celulare / Na cintura uma carteira de Derby / Um Corote na pochete e saía a passear / Primeiramente o balneário da Dengosa / Em seguida Ponta Negra e depois Praça do DB / A noite ia pros boteco, tomar Cerpa e jogar bilhar / Passava a noite nos brega lá da Grande Circular / Oh Geisislaine, Geisislaine, meu amor / Por que você pegou aquele barco / Não deixou nenhum recado e se mandou pro interior / Oh Geisislaine, mande uma carta por favor / Aproveita e manda uma fardo de farinha / E a cassete da Calypso que você me emprestou / Impressionava o seu cabelo bicolora / O som de Fernando Mendes a gente acasalava / Sonhava em ter um fusca totalmente incrementado / Atrás escrito “turbo” e um terço no retrovisor / E o cordão grosso de prata que te dei de aniversário / Ela esqueceu lá na gaveta do armário / Ficou ainda um tururi do Carnaboi / Um autógrafo do Nunes e um pinguim de geladeira / A camisa do Rio Negro e o poster do Arlindo / E a foto que ela tirou com um ex-vereador”.

Com 24 anos de carreira e mais de dez álbuns gravados, Nicolas Jr. contabiliza mais de 700 canções autorais, sendo pouco mais de 200 gravadas. Por conta deste acervo, algumas canções viraram fonte de conteúdo de discussão nas escolas públicas de Manaus. Pensando nisso, Nicolas buscou ajuda da Secretaria Municipal de Educação (Semed) para criar um material de cunho educacional. Assim, em setembro de 2023, nasceu o álbum “História e Geografia do Amazonas em Cantoria”, com 20 composições que esmiuçam o tema.

– Os professores cederam o material científico para mim, destacando os pontos importantes e as necessidades que talvez seriam possíveis enquadrar dentro do projeto. Após ler o material, desenvolvi cada música em ordem cronológica, destacando cada fase da história amazonense. Além disso, eu também busquei informações para exaltar a cultura e gastronomia local. Foi um trabalho feito com carinho e todos os envolvidos ficaram satisfeitos com o resultado, inclusive, o público.

Atualmente, Nicolas Jr. está desenvolvendo um novo projeto intitulado “Preservar é Brincar”. Trata-se de um canal no YouTube onde ele pretende manter o foco em composições sobre a preservação do meio ambiente. A ideia é utilizar as crianças como propagadoras de informação. O canal já conta com as histórias de algumas lendas amazônicas, mas a ideia do cantor é expandir esse conteúdo mediante a utilização de desenho animado e de pequenos videoclipes educativos.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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