Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 4 – Os Pioneiros do Reggae Caboclo (Parte 1)

Visita do presidente da República Café Filho e do presidente da Petrobras Arthur Levy ao campo de Nova Olinda
Postado por Simão Pessoa

Em 1904, um dinamarquês a serviço do governo dos EUA, Thorvald Lock, seguiu um rastro de óleo no rio Madeira e chegou a um morro de onde saíam de 500 a 600 litros diários de petróleo. Ele concluiu que a região tinha uma estrutura geológica siluriana (uma das que normalmente possuem petróleo e gás), mas somente em 1909 novos pesquisadores franceses e americanos definiram o eixo principal da bacia petrolífera: ela ia de Nova Olinda, no Amazonas, até o vale do rio Guaporé, no Acre.

Em 1932, uma balsa e um rebocador, que transportavam uma grande sonda para 1.500 m, afundaram no rio Solimões. O fato foi abafado pelos pesquisadores estrangeiros responsáveis pelo maquinário, mas a história da descoberta de petróleo chegou aos ouvidos do prefeito de Manaus, Carvalho Leal, por um geólogo que garantiu:

– No Amazonas há mais petróleo do que água!

Vinte anos depois essa mesma frase foi dita por um oficial militar do Geological and Geodesic Survey ao então major Salvador Benevides, na base aérea de Belém (PA).

Finalmente, no dia 13 de março de 1955, jorrou petróleo em Nova Olinda. O governador Plínio Coelho apareceu nas primeiras páginas dos jornais brasileiros com o seu terno de linho branco tingido com o petróleo que jorrou do poço pioneiro da Petrobras.

Orador brilhante, Plínio Coelho fez um discurso ufanista, de quase meia hora, para concluir dessa forma:

– No caso do petróleo, o sentimento da população brasileira parece expressar-se num eterno e eloquente arremedo dos versos do poeta Castro Alves: o petróleo é nosso e a Petrobras também, como a praça é do povo e o céu é do condor!

Em Manaus, algumas lojas passaram a vender vidrinhos com o petróleo trazido daquelas terras. Pessoas de vários lugares começaram a rumar para Nova Olinda, alimentando o sonho de ganhar dinheiro com o ouro negro. Dois presidentes, Café Filho, em 1955, e Juscelino Kubitschek, em 1957, foram ver os poços de petróleo de perto.

Neste último ano, no entanto, a Petrobras começou a dizer que o petróleo amazônico não possuía valor comercial. Em pouco tempo os poços foram fechados e era uma vez a riqueza amazônica que nem chegou a existir. Especulou-se até que os americanos haviam mandado fechar os poços para que o Brasil não desfrutasse e usufruísse dessa riqueza.

– O primeiro episódio do jorro do petróleo ocorreu quando a broca atingiu a profundidade de 2.713 metros, no dia 13 de março de 1955. O terreno era na fazenda Nova Olinda, pertencente ao Sr. Arnaldo Pinheiro, onde ele criava 100 cabeças de gado. Com a divulgação desse acontecimento, a notícia se espalhou rapidamente – contou a pedagoga, psicóloga e escritora Gezyneida Cunha Nogueira, autora do livro “A verdadeira história de Nova Olinda do Norte”.

– Em dezembro daquele ano, empolgado com a repercussão que o caso atingira, o governador Plínio Coelho, após reunir e consultar os moradores daquela localidade, criou o município de Nova Olinda do Norte, através da Lei nº 096, de 19 de dezembro de 1955 – diz a escritora. – Ele pediu sugestão de nomes e vieram Primor, Canaã, Sobradinho e Nova Olinda. Óbvio que Nova Olinda foi o escolhido e Plínio Coelho se encarregou de acrescentar o ‘do Norte’, para ficar claro que a cidade ficava no Amazonas.

As pesquisas em torno do óleo surgido na fazenda Nova Olinda começaram em abril de 1953, através do Conselho Nacional do Petróleo. A Petrobras foi criada em outubro daquele ano, mas em agosto os técnicos da futura empresa chegaram a Nova Olinda com os equipamentos para montar as torres. Compraram terras, montaram sua base e iniciaram os trabalhos.

Dois anos depois pesquisas atestavam que “não resta a menor dúvida de que o óleo é da melhor qualidade, classificado por nós como tipo Pensilvânia” ou “num ensaio de destilação sem ‘cracking’, acusou 35 a 40% de gasolina, o que constitui um índice excepcional”.

– Em 1957, um segundo jorro de petróleo se deu na ilha do Maraca, em frente à já cidade de Nova Olinda do Norte o que ocasionou a vinda de um segundo presidente ao local, Juscelino Kubitschek, em 16 de março – afirmou Gezyneida Cunha Nogueira.

Naquele ano, porém, a euforia com o petróleo amazônico começou a esmaecer. A Petrobras, de acordo com o geólogo americano Walter Link, alegou que o hidrocarboneto da região não tinha valor comercial e determinou o fechamento dos poços. O geólogo “gringo” era um alto funcionário da Petrobras e contrariou tanto o desejo de Janary Nunes, presidente da Petrobras, quanto do próprio presidente Kubitschek, que queriam investir na Amazônia como região petrolífera, o que o geólogo desaconselhava comparando os altos gastos de prospecção com o tamanho insuficiente da empresa. Estranhamente a opinião do americano foi acatada e os poços lacrados. O episódio ficou como mais um capítulo da teoria conspirativa contra a Amazônia. No caso, colocada em prática por um emissário dos Rockefeller para sabotar a busca de petróleo pela Petrobras.

– A Petrobras construiu, na época, dez grandes prédios em Nova Olinda, hoje ocupados pela prefeitura, secretaria de Educação, Pestalozzi, Emater, cartório e Escola N. Sra. de Nazaré. Os demais foram ocupados por invasores – garante a escritora. – Se andarmos pela região, nas matas, encontramos muitos equipamentos abandonados pela Petrobras.

Cileno Conceição, nosso primeiro reggaeman

Funcionário da Petrobras, em Manaus, Silvio da Conceição havia acabado de se casar com Ana Maria de Oliveira quando foi designado pela empresa para trabalhar em Nova Olinda. Ele chegou no município em meados de 1957, logo após ter jorrado petróleo na ilha do Maraca. Leitor compulsivo de mitologia greco-romana, Silvio havia feito apenas duas exigências à esposa: queria que o nome de todos os filhos começasse com a letra “S” e que o primogênito se chamasse Sileno, em homenagem a um dos seguidores, professor e companheiro fiel do deus Dionísio (na mitologia romana conhecido como Baco, o deus do vinho).

Segundo o crítico cultural, poeta e filósofo alemão Friedrich Nietzsche, no livro “O Nascimento da Tragédia”, de 1892, o sátiro Sileno era meio abusado:

“Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: — Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.”

O nosso primeiro grande reggaeman nasceu no dia 12 de setembro de 1958, em Nova Olinda, tendo sido registrado como Cileno de Oliveira Conceição porque o tabelião do cartório não entendia nada de mitologia greco-romana. O erro só foi descoberto em Manaus, seis anos depois, quando o moleque foi matriculado no Grupo Escolar Getúlio Vargas, na Cachoeirinha. É que com o fechamento dos poços de petróleo em Nova Olinda, dona Ana Maria convenceu o marido a retornarem para Manaus, onde havia mais oportunidades para darem uma boa educação aos filhos. Na capital amazonense, nasceram os demais irmãos de Cileno: Sílvia, Sueli, Silvana, Sônia e Sávio.

Com o encerramento das atividades da Petrobras, em Manaus, Silvio da Conceição passou a trabalhar na Prefeitura, por onde se aposentou. O primeiro endereço do casal no seu retorno à capital foi na Rua Belo Horizonte, exatamente no terreno onde hoje está construído o Hotel Da Vinci. Alguns anos depois, Silvio comprou uma nova residência na Rua Joaquim Tanajura, em São Francisco. Foi ali que o cantor Cileno Conceição residiu durante 45 anos, até se mudar para o Conjunto Hileia, na Redenção, onde mora atualmente.

– Tive uma infância e uma adolescência feliz, como a todo moleque da periferia – se diverte o cantor, recordando aquela época. – Era aula pela manhã, jogo de bola à tarde, banhos de igarapé de vez em quando e escutar as músicas tocadas nas casas dos vizinhos ao longo do dia e, às vezes, durante a noite: hits da Jovem Guarda, Tropicália, Novos Baianos, Luiz Melodia, Dominguinhos, Raul Seixas, essa gente toda.

Com 14 anos, após muita insistência, Cileno ganhou um violão de presente da sua mãe e começou a dedilhar o instrumento, tentando reproduzir em casa os acordes das músicas que ouvia na casa dos vizinhos. Ele não conhecia teoria musical, mas tinha um ouvido privilegiado. Os vizinhos, percebendo o talento do moleque, começaram a incentivar dona Ana Maria a contratar um professor particular de violão para lapidar aquele diamante bruto. Ela bem que gostaria, mas o orçamento doméstico apertado não permitia esses arroubos.

Depois de concluir o ginásio no Colégio Estadual Márcio Nery, também na Cachoeirinha, Cileno começou a fazer o curso técnico de Estradas, na Escola Técnica Federal do Amazonas, na Praça 14 de Janeiro. Foi ali que teve contato com teoria musical pela primeira vez, ao ser admitido na banda marcial da escola e começar a aprender sax-alto e flauta transversal.

– Eu aprendi um pouco de teoria musical, comecei a ler partituras e até tocava direitinho – diz ele. – Mas sempre fui muito perfeccionista e hiperativo, sou virginiano, estou sempre em busca de coisas novas, não consigo ficar parado, sou muito inquieto, tanto que abandonei as aulas de sax-alto e flauta transversal pela metade para voltar a me dedicar ao violão. Foi quando o maestro da banda sugeriu que eu me profissionalizasse na Ordem dos Músicos. Fui lá, fiz o curso e os exames finais, que eram rigorosíssimos, e fui aprovado. Dos trinta músicos que iniciaram o curso, apenas cinco foram aprovados. Era uma pedreira! Na real, me considero um autodidata. Ainda na adolescência, aprendi a afinar o violão e entender o lance dos acordes com a ajuda dos meus primos e lendo aquelas revistas com partituras musicais que eram vendidas em bancas de jornais. Mais tarde, já como músico profissional, peguei algumas aulas fundamentais com o violonista Carlito, que ficou cego aos cinco anos, mas é um gênio nos instrumentos de corda, aprendeu de ouvido a tocar cavaquinho, banjo, violão e guitarra. É claro que ainda não domino o instrumento tão bem quanto ele, mas dou minhas palhetadas e elas dão pro gasto…

No início de 1980, aos 21 anos, Cileno deixou o emprego de técnico da Semosb, na Prefeitura de Manaus, onde estava há três anos, para se dedicar à carreira musical: o guitarrista Adonay Pereira o convidou para ser um dos vocalistas da banda Supersom, que ele estava formando. Era uma banda de bailes, ou seja, ia apenas fazer “covers” das músicas que estivessem fazendo sucesso nas rádios da cidade. Cileno aceitou o convite para dividir os vocais com Eliana Printes. Além de Adonay Pereira, a banda era formada pelos músicos Raimundo Nonato (guitarra), Jonas Pereira (contrabaixo), Jorge (bateria) e Vanderlei (teclados). O repertório da Supersom era eclético: bolero, forró, MPB, samba e rock nacional. O empresário da banda era Aldery Nunes, representante em Manaus da gravadora Ariola, por onde eram lançados os discos de Bob Marley.

Um belo dia, logo após um dos ensaios da banda Supersom, Aldery Nunes resolveu presentear Cileno com um disco de vinil.

– Dá uma olhada aí no trabalho desse jamaicano e vê se você gosta! – avisou o empresário.

Era o consagrado LP “Kaya”, de Bob Marley. Para Cileno, aquilo foi como uma revelação mística.

– Eu já tinha ouvido falar no cantor, mas não sabia nada a respeito dele. Também não conhecia as músicas dele e muito menos o que era reggae. Quando ouvi aquela batida, aquilo me conquistou. E quando passei a estudar inglês e pude compreender o que ele queria passar nas músicas dele me tornei seu fã. Porque o Bob Marley era muito incisivo quando falava de política, de religião, de questões sociais. Ele sempre bateu de frente contra o preconceito, a escravidão, as desigualdades econômicas. Então, era tudo aquilo que eu gostaria de falar e que até hoje falo nas minhas canções. O reggae me pegou de verdade! – recorda o cantor.

Em paralelo com a carreira de músicos da banda Supersom, Cileno, Adonay Pereira e Eliana Printes montaram um segundo grupo, batizado de banda Transcendental, para exibirem suas composições autorais. Nos finais de semana, a banda Supersom se apresentava em clubes e casas noturnas da capital, animando bailes para 3 mil pessoas. No meio da semana, de vez em quando, a banda Transcendental se apresentava em barzinhos, para uma plateia de 50 a 80 pessoas.

– Eu fui pegando gosto em cantar nos barzinhos mostrando meu próprio trabalho e comecei a me “desapaixonar” pelo trabalho de vocalista da Supersom. Aí, uns três anos depois, larguei a banda para iniciar minha própria carreira-solo – recorda Cileno. – Foi uma separação amigável, tanto que o Adonay e a Eliana Printes também resolveram partir para a carreira-solo e obtiveram bastante sucesso.

A partir de 1983, Cileno começou a mostrar suas composições nos barzinhos mais descolados de Manaus (Coração Blue, Paulo’s Bar, Terraço, Xorimã, etc), conquistando um pequeno, mas ruidoso, fã clube. O próximo passo foi se apresentar nos festivais de música que aconteciam na cidade. Numa dessas incursões, ele conquistou o primeiro lugar no Festival de Verão do Parque 10 de Novembro, com a música “Feira Hippie”, considerado o primeiro reggae autoral produzido no Amazonas: “Feira hippie / Hiperfeira livre / Feira hippie / Hiperfeira livre / Caça velha desbotada / Um cabelo embaraçado / Armo a tenda na calçada / Bolsas sapatos bordados / Ocupar as belas praças / Não ter outra atividade / Libertar seres e raças / Não ter pátria nem cidade / Feira hippie / Hiperfeira livre / Feira hippie / Hiperfeira livre / Usar brincos e colares / Pulseiras anéis correntes / Desvendar rios e mares / Ser metade bicho e gente / Pôr a mochila nas costas / E firmar o pé na estrada / Nem pergunta nem resposta / Não se preocupar com nada / Feira hippie / Hiperfeira livre / Feira hippie / Hiperfeira livre.”

O movimento hippie foi um movimento de contracultura que surgiu em São Francisco, na Califórnia, durante o contexto da Guerra Fria, na década de 1960, quando os Estados Unidos estavam envolvidos na Guerra do Vietnã. A palavra hippie deriva do adjetivo hip, que indica uma pessoa ou coisa que é sofisticada, legal, informada. Os hippies questionavam o “American Way of Life”, estilo de vida americano baseado no consumismo. Eles também rejeitavam a hierarquia, a obediência, o autoritarismo, o capitalismo, o comunismo, a segregação racial, a corrida armamentista, o uso de armas nucleares, a ordem bipolar da Guerra Fria e criticavam a imposição de valores estéticos de beleza, o modelo de educação, de matrimônio e de família vigentes. Manifestavam-se de modo pacífico e buscavam romper com os padrões culturais e sociais impostos no período.

Na arte se expressavam através da música, da literatura e da moda. Os integrantes usavam roupas coloridas, calças desbotadas, colares, camisas indianas, flores no cabelo, camisetas tie-dye, sandálias, bolsas a tiracolo, roupas reaproveitadas, saias curtas, muitos adereços e geralmente usavam cabelos longos. Tinham como lemas as frases “Faça amor, não faça guerra” (“Make love, not war”), “Paz e amor” (“Peace and love”), “Poder das flores” (“Flower Power”) e “Proíbam a bomba” (“Ban the bomb”). Em 1969, as reinvindicações do movimento hippie culminaram na realização do Festival de Woodstock. Diretamente ligado ao movimento hippie, o Flower Power compartilhava de ideias de resistência e luta por direitos civis presentes nos movimentos Black Power, Woman’s Lib e Gay Power, e acabaram fornecendo régua e compasso para os ativistas ambientais das décadas seguintes.

Em Manaus, chamados preconceituosamente de “ripongas” e “bichos-grilos”, os remanescentes hippies se reuniam na Praça do Congresso, na Praça da Saudade, na Praça da Matriz e na Praça da Polícia para recitar poesias, fazer shows musicais alternativos, jogar conversa fora e vender suas produções artesanais. Eram colares, brincos e pulseiras feitos com miçangas, pedras semipreciosas e sementes nativas, artefatos feitos de metal e epoxy, sandálias feitas com couro cru e borracha de pneus, boinas tricotadas de lã, camisetas pintadas à mão e produtos semelhantes. Pelo fato de terem abraçado alguns aspectos de religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo, e do xamanismo indígena norte-americano, os hippies começaram a desembarcar na cidade em busca do chá de ayahuasca, ministrado nos primeiros núcleos urbanos da União do Vegetal e do Santo Daime.

Naquele mesmo ano, Cileno participou do concurso “A mais bela voz do Brasil”, promovido pelo SBT, de São Paulo, representando o Amazonas, e logo depois, ainda como componente da banda Transcendental, ele, Eliana Printes e Adonay Pereira apresentaram o show musical “Barraca Popular”, no palco do Teatro Amazonas.

– Foi a primeira vez que me apresentei naquele palco sagrado e aquela foi uma experiência inesquecível – diz o cantor. – Porque até então eu só havia entrado no teatro como plateia, para aplaudir meus ídolos. E, de repente, lá estava eu realizando o grande sonho de todo artista amazonense e sendo aplaudido pelos meus conterrâneos. Fico emocionado até hoje quando me lembro daquele dia!

O certo é que o hit “Feira Hippie” fez tanto sucesso nos barzinhos, que o cantor foi convidado para incluir a composição no LP “Nossa Música”, coletânea produzida pela Superintendência Estadual de Cultura do Amazonas, na época comandada pelo também cantor e compositor José Augusto Rodrigues, o “Guto”. Foi o primeiro registro em vinil de uma nova geração de músicos amazonenses. Além de Cileno, participaram do álbum duplo, entre outros, Candinho & Inês (“Renovação”), Torrinho (“Porto de Lenha”), Pedrinho Ribeiro (“Igarapé dos Currais”), Pereira (“Mi Canto”), Grupo Carrapicho (“Coração Baião”), Banda Transcendental (“Marabá”), Grupo A Gente (“Amazônia”) e Grupo Tariri (“Pirarublues”).

A gravação do LP foi uma verdadeira odisseia porque simplesmente não havia estúdios de gravação em Manaus. O superintendente Guto Rodrigues teve que contratar a empresa Spalla Gravações, em São Paulo, para montar um estúdio de gravação no Teatro Amazonas porque queria que todas as apresentações fossem gravadas ao vivo, com entrada livre para o público manauara. O álbum teve a direção artística e musical de Marcus Vinicius de Andrade, sendo posteriormente prensado na RCA Victor. As primeiras gravações até que começaram bem, mas uma interferência oriunda dos transmissores da Rádio Rio Mar, localizada ao lado do teatro, logo colocou água no chope e impediu a continuidade do trabalho. A solução foi desmontar o estúdio de gravação e transferi-lo para o Teatro do Cecomiz, no Distrito Industrial. Por conta disso, o LP “Nossa Música”, que começou a ser gravado em 1984, só foi lançado em 1986.

Com o sucesso decorrente de suas apresentações nos bares e clubes de Manaus, Cileno pôde dar-se ao luxo de fazer uma das coisas que mais gosta na vida: viajar no estilo mochileiro, tendo como companheiro de estrada apenas seu violão. E foi viajando por Brasília, Salvador e João Pessoa que ele teve sua atenção despertada por imensos outdoors espalhados pelos pontos estratégicos das cidades convocando a população para um certo tributo a Bob Marley, que rolava sempre no dia da morte do cantor jamaicano, no mês de maio. Quando retornou a Manaus de uma dessas viagens, ele resolveu colocar a ideia em prática.

Praticamente trabalhando sozinho e utilizando exclusivamente seus próprios recursos financeiros, Cileno conseguiu a cessão do Teatro Chaminé, alugou os equipamentos de som e iluminação, convidou uma dupla de guianenses que se apresentavam na época, em Manaus, Sicley e Bush, do duo “Reggae Flame” para dividirem as apresentações com ele, fez toda a divulgação do evento em rádios, jornais e tevês, e no dia 9 de maio de 1987, um domingo, a população manauara tomou conhecimento do “1º Tributo a Bob Marley”. Pouco mais de 30 pessoas foram prestigiar o evento. Uma dessas pessoas foi o falecido poeta Marcos Gomes. “Eu fui ver o show achando que ia ter distribuição gratuita de kaya, mas quebrei a cara porque só estavam servindo água mineral”, ironizava ele. “Mas o show musical foi da melhor qualidade, com Cileno e os guianos cantando verdadeiros hinos do ‘roots reggae’, que agitaram a galera”.

– É claro que fiquei um pouco decepcionado com a falta de público – recorda Cileno. – Mas mesmo tendo um grande prejuízo, resolvi tocar em frente. E hoje, quase 40 anos depois, quando vemos cerca de 1.500 pessoas curtindo o “Tributo a Bob Marley”, no Bar Ao Mirante, em Santo Antônio, que já está na 35ª edição, sempre organizado por mim, é claro que fico orgulhoso de ter contribuído para a popularização do reggae na cidade.

No início de 1990, intrigado com o fato de muitas revistas de fofocas divulgarem que artistas como Lucélia Santos, Nei Matogrosso, Carlos Alberto Strazzer e Peninha era consumidores habituais do chá de ayahuasca, Cileno comentou o assunto com a bailarina Samara Evangelista, do Núcleo de Danças do Amazonas (NUDAC), com quem estava desenvolvendo um espetáculo musical juntando balé e reggae. Ficou surpreso com a sinceridade da bailarina:

– Meu pai é mestre de uma congregação da União do Vegetal, localizada no bairro Lírio do Vale. Se você quiser conhecer o ritual, posso te levar lá…

Cileno, que nunca ingeriu bebida alcóolica, fumou qualquer tipo de cigarro ou cheirou qualquer tipo de droga, entendeu aquele convite como se fosse um godsend (dádiva ou evento inesperado, particularmente bem-vindo e no momento certo, como se enviado por Deus). Além do mais, o pai de Samara era nada mais nada menos que o poeta, artista plástico e publicitário Roberto Evangelista, celebrado como um dos pioneiros da arte conceitual e da videoarte no Brasil. O cantor acompanhou Samara em uma das sessões dirigidas pelo artista plástico, experimentou o chá e nunca mais deixou a congregação.

Ritual religioso da UDV

Para quem nunca experimentou, a cor da bebida varia entre o ocre e o marrom-escuro. O gosto é mais amargo que o de um suco de laranja esquecido fora da geladeira. E os efeitos mais comuns são vômito e diarreia. Mas nada disso impede que ela seja consumida regularmente por índios da Amazônia ou pelos moradores de grandes cidades que frequentam os rituais de seitas religiosas como o Santo Daime e a União do Vegetal. Ela também provoca alucinações e visões místicas. Com os olhos abertos, as luzes parecem dançar. As cores ganham uma intensidade fora do comum. Fechando-se os olhos, manchas brilhantes e pulsantes transformam-se em animais da floresta, como onças e serpentes. A audição fica mais aguçada. Assim são as descrições mais comuns das visões provocadas pela bebida – também chamadas de “miração”, no Santo Daime, e “burracheira”, na União do Vegetal.

Chamado de daime ou vegetal por seus adeptos, o chá é mais conhecido pelos antropólogos como ayahuasca – cipó dos espíritos ou vinho dos mortos em quéchua, língua indígena peruana. Obtido pela fervura de duas plantas amazônicas – o cipó jagube, ou mariri, e o arbusto chacrona –, ele é usado há milênios pelos pajés da floresta. Para eles, o chá é capaz de livrar o corpo e a alma de toda impureza, fazer a mente viajar no tempo e no espaço e abrir a comunicação com os antepassados e as forças da natureza. Nenhuma seita moderna descobriu a ayahuasca. A primeira descrição do consumo da bebida é de 1855, feita pelo britânico Richard Spruce, mas há evidências arqueológicas de que ela já fazia parte dos hábitos indígenas há 5 000 anos. Sua utilização em rituais religiosos é uma tradição corriqueira entre os pajés de várias tribos amazônicas do Brasil, do Peru e do Equador.

Foi no meio da mata, com curandeiros indígenas, que o seringueiro maranhense Raimundo Irineu Serra conheceu o chá. Certo dia na década de 20, sob efeito da ayahuasca, Irineu teve a visão de uma senhora, sentada em um trono, que se identificou como Nossa Senhora da Conceição. Sob sua inspiração, e sempre sob efeito da bebida, ele se embrenhou na floresta para receber da santa os ensinamentos da igreja que iria fundar. Essa é a história contada pelos seguidores do Santo Daime, seita criada por mestre Irineu, originalmente em Rio Branco, no Acre, com o mesmo nome que ele deu ao chá. A origem desse batismo está no pedido que aparece nos hinos cantados durante os rituais, em versos como “dai-me força, dai-me luz, dai-me amor”.

O mesmo fenômeno aconteceu com a União do Vegetal (UDV), a maior organização baseada no uso do chá. Nascida em 1961, em Rondônia, e tendo como fundador outro seringueiro, mestre José Gabriel da Costa, a União conta com 6 000 seguidores espalhados por todas as grandes cidades brasileiras. Trata-se de uma religião de fundamentação cristã e reencarnacionista que usa em seu ritual o chá hoasca (o mesmo chá de ayahuasca, com mudança apenas na grafia). Na UDV, o chá hoasca é também chamado de vegetal e seus discípulos o bebem, durante as sessões, para efeito de concentração mental. A UDV tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento espiritual do ser humano, para o aprimoramento de suas qualidades intelectuais e de suas virtudes morais, sem distinção de raça, sexo, credo, condição social ou nacionalidade. Sob o efeito do chá hoasca, Cileno já escreveu duas belíssimas canções: “Florais” e “Deusa Inca”.

O certo é que aquela experiência quase caótica da gravação do disco “Nossa Música” pela Superintendência Estadual de Cultura, em 1984, despertou a atenção de alguns empresários mais antenados e começaram a surgir os primeiros estúdios de gravação em Manaus. Um dos pioneiros em sonorização profissional para shows e eventos no Amazonas foi o Estúdio Tomaselli, que continua na ativa até hoje. Foi nesse estúdio que Cileno gravou seu primeiro LP, “Reggai Por Nós”, em 1994.

– Eu já tinha um bom repertório de músicas autorais e o público começou a exigir um disco – diz ele. – O Tomaselli foi um verdadeiro parceiro e acho que o resultado foi muito bom, porque prensamos apenas 1 mil discos e todos foram vendidos durante os shows que eu realizava na cidade. Aí, ainda que timidamente, algumas músicas começaram a tocar nas emissoras de rádio.

Em 1996, um novo disco de Cileno era lançado: o classudo “Sindicato do Reggae”, que trouxe algumas composições do primeiro disco e outras inéditas, incluindo “Feira Hippie”, “Reggai Por Nós”, “Violência”, “África Brasil” e “ContraBanda”. Esse saiu com uma prensagem de 3 mil “bolachões” e também esgotou rapidamente. Em 1997, Cileno lançou o álbum “Eletroacústico”, no qual contou com a participação especial do cantor David Assayag, levantador oficial de toadas do Boi Garantido, de Parintins. A dupla interpretou a faixa “O Amor Está No Ar”. Em 1998, ele gravou o álbum “Reggae do Skatista”, que trazia como destaques “Reggae Do Skatista”, “Dia Das Mães”, “Eu, Você E O Mar” e “Cegos No Poder”.

A partir daí, já na época dos CDs, Cileno começou a produzir quase um disco por ano: Em 1999, “AleluJah”, em 2002, “WWW. I Love You”, em 2003, “Da Batida Primitiva à Pulsação Urbana”, em 2004, “Amores Urbanos”, em 2005, “Minha História”, em 2006, “Nudez”, e, em 2007, “Dialética”. Os hits de sucesso também se multiplicaram em progressão geométrica: “Vibe Zona Sul”, uma homenagem ao bairro de São Francisco, “Lusis”, para uma de suas paixões arrebatadoras”, “Orixás Dos Trovões”, uma singela homenagem à religiosidade africana, “Menina De Brasília”, “Mimo De Beija-Flor”, “Sol De Amsterdã”, “Homem Rasta”, “Ametista”, “Contando Estrelas”, “Oração Rasta”, “Conquista” e “Palavras Cruzadas”, entre outros.

O cantor e compositor também começou a ser bastante requisitado para fazer apresentações nos municípios do interior e em cidades de estados vizinhos, como Boa Vista (RR), Santarém (PA), Belém (PA), Porto Velho (RO), Rio Branco (AC) e Goiânia (GO). Num de seus shows em Santarém, durante a Festa do Çairé, ele conheceu o trabalho das Suraras do Tapajós, um grupo musical de carimbó formado por mulheres indígenas da região de Alter do Chão. O grupo surgiu em 2018 e é um coletivo da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós, conhecidas por trazerem o protagonismo feminino na defesa de causas indígenas, como o direito da mulher, a preservação dos povos originários e o cuidado com o meio ambiente. O nome “surara” vem da língua nheengatu, falada pelos povos do Baixo Tapajós, e significa “guerreiro” ou “guerreira”.

De volta a Manaus, Cileno resolveu homenageara aquelas guerreiras paraenses e compôs o belíssimo reggae “Canto das Surararas”: “As águas que caem do céu / Escorrem por nossas mãos / Adoçam os rios daqui da vila de Alter do Chão / Suraras cantando a terra, guerreiras de pés no chão / A voz que desperta a fera / Ecoa do coração / Areia branca e florestas / Emolduram este rio-mar / Aldeias se alegram pra festa / Piracaia ali na praia / Para celebrar / Vem na batida do tambor / Mostrar seu valor e tradição / Chama esse povo pro Çairé, é dia de festa em Alter do Chão.”

Nos anos seguintes, o cantor e compositor lançou várias coletâneas – “Cileno 40 anos”, em 2021, registro do show de mesmo nome no Teatro Amazonas”, “Coletânea I”, também em 2021, “Valores da Terra”, em 2022, “Nossa Música”, em 2023, e “Coletânea II”, em 2024 – mas ele próprio está convencido de que a época de lançar discos chegou ao fim. Que o caminho são os sites de streaming na web, as plataformas digitais. O mais impressionante é saber que todos os seus discos foram lançados de forma independente. A pergunta é: valeu a pena?

– Sim, valeu demais, basta analisar os prós e os contras – responde rindo. – Vejamos os prós: você tem a liberdade de cantar o que gosta, de compor na hora em que a inspiração se apresenta, de ter liberdade para fazer experimentos, de não ser obrigado a seguir a “modinha” da hora formulada pelas gravadoras. Dá pra me imaginar cantando sertanejo?! Pô, fala sério… Contra: não ter um contrato com gravadoras, não ter uma divulgação suficiente para escoar seu trabalho e o difícil acesso às grandes mídias. Aí, o jeito é continuar correndo atrás porque cachorro molenga só come com os olhos…

Cileno também tem uma explicação bem fundamentada para explicar como é sobreviver de música num gênero musical que corre muito distante do mainstream, sem abrir mão de suas concepções sobre o que é uma boa música há mais de 40 anos.

– É verdade, eu acho que sou um dos poucos artistas amazonenses que conseguem sobreviver exclusivamente de música – diz ele. – Não que eu seja melhor do que ninguém e nem mais talentoso do que ninguém. Mas o profissionalismo conta e muito dentro desse meio, em qualquer cidade, em qualquer estado ou em qualquer país. O que vai contar mesmo é o teu profissionalismo. Cumprir com os horários, se reciclar, ser um bom profissional, por isso estou há tanto tempo vivendo da música. E acho que ainda tenho bastante lenha para queimar…

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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