Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 4 – Eliakin Rufino, Neuber Uchôa e Zeca Preto

Os cantores e compositores Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa
Postado por Simão Pessoa

(Por se tratarem de textos longos que só cabem num livro físico, optamos por destrinchar o Capítulo 4 (“Os Pioneiros do Reggae Caboclo”) em três partes, para poder caber nessa plataforma digital. So sorry.)

Eliakin Rufino e o Movimento Roraimeira

Escritor, poeta, filósofo, jornalista, músico, compositor e professor universitário, Eliakin Rufino nasceu em Boa Vista (RR), no dia 27 de maio de 1956. Ele é o filho caçula de Joana e Genésio Rufino de Souza. Seu único irmão, Elieser Rufino, três anos mais velho, é artista plástico, muralista, ensaísta e professor universitário. Filho de pais amazonenses (seu pai nasceu no Manaquiri, próximo de Iranduba, e sua mãe, em Jutaí, próximo de Fonte Boa), sempre sorrindo, meio negro, meio índio, Eliakin Rufino é uma espécie de dínamo da cultura roraimense.

– Eu sou um caboco preto metido a índio, como diz o compositor amazonense Guto Rodrigues. Na verdade, eu sou um cabocrioulo. Meu bisavô era um preto pernambucano que casou com uma índia da etnia mura, na floresta amazônica. Além da bagagem cultural, do estudo, da pesquisa, dos saberes ancestrais e do apreço pela natureza, eu tenho uma herança genética africana – revela, com seu eterno jeito de moleque.

Seu apreço pela natureza não é gratuito. Seu pai era pescador artesanal em Manaquiri e se mudou para Boa Vista, na época ainda Território Federal do Rio Branco, em 1942. Sua mãe era de uma família ribeirinha, que se mudou para Boa Vista em 1945. Os dois, Genésio e Joana, ambos evangélicos, se conheceram em um dos cultos da Igreja Batista de Boa Vista, em 1946, e se casaram no ano seguinte. Sonhando em replicar aquela vivência quase aquática do interior do Amazonas, de comer peixe, andar de canoa, observar o ciclo das águas na enchente e na vazante, foi natural que, em Roraima, o casal comprasse uma casa também na beira do rio. E a infância de Eliakin transcorreu desse jeito: nadando, andando de canoa, pescando, dormindo na praia, caminhando pela floresta, observando os pássaros.

– Tive uma infância de contato muito íntimo com a natureza, uma coisa quase visceral. É por isso que mais tarde eu vou me tornar um “poeta da natureza”. O eixo condutor da minha obra literária e musical gira em torno da questão do meio ambiente, da natureza, da defesa dos povos da floresta. É uma espécie de destino manifesto – explica.

Frequentando a Escola Dominical da Igreja Batista, onde era obrigatório o estudo da Bíblia, Eliakin tomou gosto pela leitura e, em companhia do irmão Elieser, começou a procurar livros “profanos” na pequena biblioteca pública de Boa Vista. Com 14 anos, já havia descoberto – e se encantado – com os poetas Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo e J. G. de Araújo Jorge, conhecido nacionalmente como o “Poeta do Povo e da Mocidade”, pela sua mensagem social e política e por sua obra lírica, impregnada de romantismo moderno e, às vezes, dramático. Na adolescência, ganhou de presente da mãe um violão e uma máquina de escrever. São desta época suas primeiras composições. E foi durante o curso ginasial, no Colégio Lobo D’Almada, que Eliakin descobriu o dom da palavra, ao eletrizar seus colegas de classe com declamações arrebatadoras de “O Navio Negreiro” e “Canção do Africano”.

Na época, Boa Vista não possuía os cursos de Clássico e Científico no ensino médio. Havia apenas o curso Normal, que preparava professores para o ensino primário. O jovem Elieser já havia ido morar na Casa do Estudante de Roraima, em Belém (PA), para estudar o Clássico e depois fazer Ciências Sociais, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Eliakin pretendia fazer o mesmo, mas foi dissuadido pelos pais, que não queriam ver o caçula enfurnado numa casa com 30 pessoas mais velhas. Ele acabou fazendo apenas o primeiro ano do curso Normal, em Boa Vista, e começou a construir a sua lenda pessoal, tão dramática e épica quanto divertida.

– É claro que aquilo não podia dar mesmo certo! – recorda ele, com bom-humor. – Eu tinha um tio em Brasília e mamãe me levou para morar lá. Aí, esse menino da beira do rio, que vivia andando de canoa, pescando, nadando, mergulhando, vai pro Planalto Central, com aquele clima seco, sem água, sem rio por perto… Porra, foi um choque muito grande! Eu fiz o segundo ano do ensino médio num colégio chamado Elefante Branco, que era uma boa escola pública, mas não me adaptei. A cidade tinha só 13 anos de fundação e eu, 16. Era uma cidade muito burocrática, de pessoas que estavam ligadas ao poder, pouco habitada, sem vida comunitária, sem esquinas. Algum tempo depois, eu fui conhecer Goiás e me apaixonei por Goiânia, que tinha mais jeito de cidade, tinha centro histórico, tinha vida cultural, tinha escritores renomados, já tinha uma história. Goiás tem uma história desde Goiás velho, a poeta Cora Coralina ainda era viva nesse tempo… Então, eu me apaixonei por Goiás e me mudei pra Goiânia, onde fiz o terceiro ano do ensino médio em 1974 e passei no vestibular para jornalismo no final do ano. Em 1975, eu começo minha vida acadêmica na Universidade Federal de Goiás (UFG) e vai indo tudo muito bem, até que, no mês de outubro, a ditadura militar assassina o jornalista Vladimir Herzog, numa sessão de torturas no DOI-CODI, de São Paulo. Aí, eu sou levado a abandonar o curso, porque a minha família temia pelo meu futuro e cortou logo a minha mesada para que eu retornasse a Boa Vista. Eles imaginavam que ia acontecer comigo o que tinha acontecido com Herzog, porque eu já era rebelde, já fazia música de protesto, já participava dos movimentos estudantis contra a ditadura…

Em 1976, os Novos Baianos lançaram o seu sexto disco de estúdio pela Tapecar, intitulado “Caia Na Estrada e Perigas Ver”, que obteve um estrondoso sucesso por conta da faixa que dava título ao álbum. A música é uma verdadeira viagem filosófica e poética. A repetição do verso “Caia na estrada e perigas ver” sugere uma incitação à aventura e à descoberta, incentivando o ouvinte a sair de sua zona de conforto e explorar o desconhecido. A estrada aqui pode ser vista como uma metáfora para a vida, cheia de surpresas e aprendizados. O verso “Estamos nos últimos dias de outrora” pode ser interpretada como uma reflexão sobre a passagem do tempo e a necessidade de aproveitar o presente.

A música também faz referência ao poeta do Tabaris, que é “mais alegre que feliz”, sugerindo que a alegria pode ser encontrada nas pequenas coisas e momentos, mesmo que a felicidade plena seja difícil de alcançar. A repetição de “E o mundo é oval, e a vida é uma” reforça a ideia de que a vida é cíclica e única, e que devemos vivê-la intensamente. A letra é um convite à reflexão sobre a vida, a liberdade e a busca por significado, tudo isso embalado pelo som característico e inovador dos Novos Baianos. O poeta Eliakin Rufino retornou para Boa Vista, mas entendeu o recado dos Novo Baianos. Para se transformar no primeiro hippie roraimense foi conta de multiplicar. Ele passou aquele ano inteiro em viagens de ida e volta para Manaus, Santarém, Belém e São Luís, sempre no estilo mochileiro, sem nada no bolso ou na mão. Caminhando contra o vento.

Em 1977, já um estradeiro tarimbado, Eliakin logrou seu maior feito: ir, de carona em carona, fosse de barco, balsa ou automóvel, de Boa Vista a Arembepe, na Bahia, considerada na época a Meca dos hippies brasileiros. A Aldeia Hippie da praia já atraiu turistas famosos, como Mick Jagger, Janis Joplin, Tim Maia, Raul Seixas e Gilberto Gil. A praia tem areia branca e fofa, com águas mornas e calmas – perfeitas para quem busca sossego e até mesmo um refúgio para passar uma temporada desconectado da civilização. Ainda hoje, os moradores trabalham com artesanato e turismo para garantir o bom funcionamento da comunidade, repleta de casas e cabanas rústicas. O acesso é feito a pé a partir das dunas que marcam a região.

Eliakin passou oito meses convivendo com aquela animada comunidade florida e também visitou outro santuário da geração “paz & amor”: a mítica Canoa Quebrada, no Ceará, na época uma simples aldeia de pescadores. Cercadas por falésias que marcam e dão o tom de sua bela paisagem, as praias de Canoa Quebrada já foram consideradas um dos melhores esconderijos da comunidade hippie, sobretudo no início dos anos 1970. Hoje, o turismo local se fortaleceu, mas a atmosfera continua a mesma. O que não faltam são os luaus e festas à beira-mar, regados a muito reggae. E alguns hippies ainda perambulam por lá vendendo seu artesanato.

O Trio Roraimeira foi responsável por dar uma identidade musical a Roraima

De volta a Boa Vista, em 1978, e cada vez com mais ódio da ditadura militar, Eliakin tomou uma decisão ainda mais radical: se autoexilou na Venezuela. Foram os dois anos mais complicados de sua vida porque ele viajou para o país sem documentos, sem dinheiro e sem falar o idioma. O poeta se estabeleceu na cidade de Puerto Ordaz, na Venezuela, onde trabalhou em várias profissões, destacando-se como vendedor a domicílio. Nesta época, apresentou-se em alguns ambientes artísticos, com números de música brasileira acompanhando-se com o violão. Em 1979, uma nova peregrinação o levou até a cidade de Guayaquil, no Equador, onde ficou uma longa temporada. Foi quando ouviu falar que o general Geisel havia promulgado a Lei da Anistia e que os exilados brasileiros iriam passar o Natal em casa. Ele resolveu fazer o mesmo. Na viagem de volta até Boa Vista, cruzou por via terrestre o Equador, a Colômbia e a Venezuela, adquirindo instrumentos musicais típicos da região nas feiras livres que conheceu.

No final daquele ano, Eliakin presta vestibular para Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e é aprovado. Ele passa a residir em Manaus, onde permanece por cinco anos, do início de 1980 ao final de 1984, quando, então, recebe o seu canudo de papel. Durante o período na universidade, destacou-se como poeta, compositor e músico, participando de alguns festivais universitários de cultura. Nesse meio tempo, Eliakin participa ativamente dos vários movimentos sociais que eclodiam na cidade, como o Movimento Alma Negra (MOAN), de defesa da população afrodescendente, capitaneado pelo ativista Nestor Nascimento, e participa da fundação do jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de defesa da causa indígena. Simultaneamente, ele cria fortes laços de amizades com os músicos locais, como Guto Rodrigues, Cileno, Pereira, Armando de Paula, Aníbal Beça, Celito, Candinho & Inês, Lucinha Cabral, Torrinho, Afonso Toscano, Carlos Castro, Jane Jatobá, Célio Cruz e Arnaldo Garcez.

Ainda, em 1984, Eliakin Rufino lança seu primeiro livro de poesia, “Pássaros Ariscos”. Em parceria com Cileno, ele compõe o reggae “Endereço”, gravado por Lucinha Cabral: “Sistema solar / Terceiro planeta / Uma lua flutua / E mexe com o mar / Entre Vênus e Marte / Entre o amor e a arte / Você vai me encontrar / Numa ilha do sul / Onde o céu é azul / Pode me procurar / Numa ilha do sul / Onde o céu é azul / Vem me procurar”. Em parceria com Armando de Paula, Eliakin compõe o reggae “Mosquito da Malária”, uma crítica bem-humorada sobre a devastação das florestas da região: “Hoje quem defende a Amazônia / É o mosquito da malária / Se não fosse esse mosquito / A floresta virava palha / Salve, salve, salve ele / Viva sua febre incendiária / O maior ecologista da Amazônia / É o mosquito da malária, / Não adianta Sucam / Jogar DDT na sua área / Super defensor da Amazônia / É o mosquito da malária”.

Do seu encontro com Neuber Uchôa e Zeca Preto, surgiu o Movimento Roraimeira, que buscava valorizar os elementos da cultura local em suas múltiplas identidades. O primeiro show do trio aconteceu no dia 28 de agosto de 1984, no Teatro Amazonas, em Manaus.

– Nesse ano de 1984, que é meu último ano de faculdade em Manaus, acontece um festival de música lá em Boa Vista, e o Zeca Preto, que é um paraense que mora lá, ele faz uma música chamada Roraimeira, ele inventa essa palavra, e eu fico surpreso porque a letra da música me homenageava, a letra da música falava no meu nome, tinha o verso “a semente do poeta Eliakin” – relembra o poeta. – Eu já sabia da existência do Zeca Preto, mas como eu morava fora não tinha muito contato com ele. Só que depois de ouvir a música, já me aproximei dele. A música ficou em 2º lugar nesse festival e, embora não tenha sido a vencedora, caiu no gosto da população porque foi a primeira música que falava das nossas coisas. Eu já compunha coisas regionais, mas nunca a gente tinha tido uma plateia tão grande como aquela. O Zeca Preto já vinha fazendo música regional, tinha acontecido um outro festival quatro anos antes, em 1980, e ele também tinha ficado em 2º lugar, com a música chamada Macuxana, onde ele mistura macuxi com wapixana. Ele sempre foi dado a esses neologismos, essas aglutinações, e Roraimeira é mais ou menos isso: ele inventa essa palavra, a música tem uma repercussão muito grande na cidade, eu regresso pra Manaus para fazer meu último semestre em Filosofia, e prometo a eles dois, ao Neuber e ao Zeca, que eu vou articular um show pra gente em Manaus, porque eu já fazia shows lá em Manaus, já estava com um certo nome, já tinha feito show no Teatro Amazonas. E é justamente o Teatro Amazonas que eu consigo, de maneira que o primeiro show Roraimeira já foi logo no Teatro Amazonas, em agosto de 84, e nós conseguimos o apoio do governo do território pra prestigiar o evento. Aí, eles tiveram a ideia de mandar uma exposição de artistas plásticos roraimenses para botar no hall do teatro, serviram um coquetel e em seguida aconteceu o show Roraimeira. Foi uma grande noite roraimeira em Manaus. Aí, eles voltam pra Boa Vista, o Neuber e o Zeca, e alugam o único cinema da cidade, e nós fazemos o show Roraimeira, em outubro do mesmo ano, no Cine Super K, que era um cinema de 800 lugares que tinha em Boa Vista, que mais tarde a Universal vai comprar e vai fechar porque o Edir Macedo começou uma cruzada de fechamento de cinemas e teatros para transformar em templos da IURV. Aí perdemos o nosso único cinema, mas antes de perdermos fizemos o show Roraimeira. O show saiu na imprensa, a Folha de Boa Vista estava circulando no seu 10º número, o jornal também estava começando, ou seja, nesse momento, você percebe que o único jornal impresso está nascendo ali também, junto com o Roraimeira. Então, a coisa toda estava começando e fluindo naquele momento.

A trinca de artistas voltando ao palco do Teatro Amazonas após 40 anos

Sem jamais negar ou omitir a forte influência recebida do Modernismo e do Tropicalismo, o Movimento Roraimeira influenciou e revelou dezenas de artistas nas artes plásticas, culinária, literatura, dança, fotografia e, claro, na música. Ele teve início quando Roraima experimentava um crescimento demográfico acelerado por conta da intensa imigração de gente de todo o país e, também, da Venezuela e Guiana Inglesa, recebendo principalmente imigrantes nordestinos que vinham trabalhar no garimpo de ouro, tendo estes a ilusão de melhorar significativamente as condições econômicas em que viviam ou até mesmo de obter uma riqueza imediata. Esse momento foi marcado pela violência e morte de muitos indígenas, pois grande parte dos garimpos eram localizados em terras indígenas. Diante deste cenário e aliado à situação de transformação do Território Federal de Roraima em Estado, em 1988, o Movimento Roraimeira buscava, em um primeiro momento, exaltar as riquezas naturais de Roraima e valorizar a forte contribuição dos povos indígenas para a formação cultural local.

– Eu regresso definitivamente para Boa Vista no início de 1985. De maneira que aquela minha saída de lá com 16 anos, em 1973, para estudar em Brasília, até esse ano de 1984, são 12 anos de minha odisseia fora de Roraima – recorda Eliakin Rufino. – Quer dizer, eu passei a infância e a adolescência em Boa Vista, aí passo esses 12 anos fora e volto com esse diploma de Filosofia, para tentar fazer uma “revolução” em Roraima. E essa “revolução” vai se chamar Roraimeira, que é um movimento cultural em torno da construção de uma identidade para o nosso povo, porque, na época da ditadura, os militares colocaram no centro da cidade de Boa Vista a estátua de um garimpeiro, uma estátua gigante de um garimpeiro, sinalizando que ali era um imenso garimpo, né, e você sabe que garimpo… Garimpo não tem caráter, né, garimpo não tem personalidade, garimpo é faroeste caboco, é terra de ninguém, é lugar de exploração, é lugar de saque, e aí eu não queria esse destino pra minha terra, né, esse destino de currutela de garimpo…

O trio Roraimeira – como ficaram conhecidos Eliakin Rufino, Neuber Uchôa e Zeca Preto – lançou dois CDs: “Roraima” (1992) e “O Canto de Roraima e suas Influências Indígenas e Caribenhas” (2000). Paralelo à carreira de cantor, o poeta Eliakin Rufino lançou vários livros de poesia: “Poemas” (1987), “Escola de Poesia” (1990), “Brincadeira” (1991), “Poeta de Água Doce” (1993), “Versão Poética do Estatuto da Criança e do Adolescente” (1995), “Poesia para Ler na Cama” (1997), “Poeta de Água Doce – Parte 2” (1999) e “Cavalo Selvagem” (2011).

Também, em carreira-solo, ele lançou os CDs: “Amazônia Legal” (1997), “Me Toca” (1998), “Eliakin em Porto Alegre ao vivo” (2006), gravado em um dos shows da turnê que o artista fez pelo país, dentro de um projeto patrocinado pelo Banco da Amazônia, “Mestiço (2008)”, “Roraimeira – O canto de Roraima – Projeto Pixinguinha” (2009) e “Eliakin Diz” (2011)

– Eu abandonei o curso de jornalismo na Federal de Goiás, mas não abandonei o jornalismo. Aqui em Roraima, além de escrever artigos, eu já produzi e apresentei programas de rádio e de televisão. Fui o primeiro a criar um programa radiofônico para tocar a música de Roraima e da Amazônia em 1987 – recorda o poeta. – E durante dez anos, de 1988 a 1998, escrevi artigos de opinião para jornais impressos de Boa Vista. É neste conjunto de artigos, mais de 300, que está a minha reflexão filosófica sobre a realidade roraimense. Na real, estou no mundo para fazer poesia. Música e poesia. A atividade artística criadora me remoça, me recicla, me renova. Sofro e rio junto com meu povo. Optei por viver na cidade onde nasci. Como diz Thiago de Mello: ‘estou no centro da praça, estou no meio do povo, piso firme no meu chão, sei que estou no meu lugar, como a panela no fogo e a estrela na escuridão’.

O poeta Eliakin Rufino continua na sua ânsia de abraçar a cultura regional

Durante um bate-papo com Marcos Cólon, no programa LatitudeCast, Neuber Uchôa e Eliakin Rufino explicitaram melhor a revolução cultural que fizeram em Roraima. Confiram:

Marcos Colón: Como vocês definiriam a música que fazem?

Eliakin Rufino: Eu poderia até te responder com uma música… Eu defino minha música como uma coisa local. (Canta um trecho da música “Universal”, dele próprio).

Marcos Colón: Neuber, na sua música “Cruviana”, vocês também falam dessa paixão de cantar Roraima. Há um diálogo nessa questão que o Eliakin falou.

Neuber Uchôa: O Eliakin é e sempre foi cirúrgico. Foi muito generoso durante esse tempo todo, porque, coincidentemente, ele se formou no ano em que nasce o Movimento Roraimeira. Ele estava em Manaus, costurou o primeiro show do Movimento e colocou nossa interrogação, todo nosso trabalho de busca pela identidade à luz da ciência. Compartilhou conosco tudo o que recebia na universidade. O Zeca Preto tem uma brincadeira de dizer que durante esse tempo a gente se formou umas quatro vezes.

Nossa música procurou traduzir esse povo heterogêneo que há 40 anos se reuniu aqui no meio desse lavrado para procurar ouro, diamante, essas coisas todas. A gente entendeu que ali seria um ponto nevrálgico e, se a gente mistura, a gente dilui, é uma questão de antropofagia, de aproveitar o que o colonizador trouxe de bom.

Nossa música é de Roraima, não tem similaridade, é uma mistura perfeita de todo mundo que vem aqui fazer conosco essa poesia que Roraima é. A gente agradece de coração.

Marcos Colón: Qual a importância do Movimento Roraimeira e o que ele foi?

Eliakin Rufino: O Movimento Roraimeira é um movimento cultural formado por artistas de várias linguagens artísticas e tenta ajudar na construção de um esboço da nossa fisionomia cultural. É um movimento nativista, de raiz, que está buscando… O que é nosso aqui em Roraima? Como é que um lugar que é feito por brasileiros de todas as partes do Brasil, mais dez nações indígenas e mais duas fronteiras, uma de língua inglesa e uma de língua espanhola… Como acomodar essas diferenças todas e encontrar um ponto em comum? Esse é o trabalho do Roraimeira. E nós acomodamos tudo, sem excluir nada. O Movimento é inclusivo. Antes da moda, a nossa identidade é a diversidade.

O tempo nos ensinou que não havia identidade, e sim identidades, porque a nossa identidade é um caleidoscópio, é uma pluralidade, e isso é que é bonito. Claro que essa diversidade foi feita pela presença de milhares de garimpeiros que estão na área indígena Yanomami, a presença do agronegócio e do CTG.

Quer ver um dado interessante?… O Movimento Roraimeira começa em 1984, ano em que é fundado um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) aqui. Nas cidades do Mato Grosso onde se instalaram CTGs e não houve um Roraimeira local, hoje são todas gaúchas, giram em torno do CTG. Por isso que o movimento Roraimeira não só é de identidade, mas de resistência. Porque se não fosse o Roraimeira, hoje estaríamos à mercê da cultura gaúcha.

Marcos Colón: Nesse sentido, o Movimento Roraimeira parece ser um dos últimos desdobramentos do movimento modernista de 1922. Vocês podem traçar quais seriam as possíveis aproximações e diferenças do Movimento Roraimeira, que completa agora 40 anos, como o último desdobramento do Modernismo?

Eliakin Rufino: Tu sabes quando é que começa, aqui no Brasil, esse sentimento de brasilidade, de procurar uma identidade, de procurar uma fisionomia local? Isso começa em 1822, com a Independência. Inclusive, Dom Pedro é autor do hino da Independência. Dom Pedro tocava seis instrumentos. É nesse momento que, no Brasil, começa a se discutir essa questão da brasilidade.

A Semana de Arte Moderna, em 1922, é um evento que comemora os 100 anos dessa luta, do início. Então é um desdobramento, e essa coisa vai chegar aqui também. Ou seja, o que mais nos aproxima do grito de independência e da Semana de Arte Moderna é esse sentimento de brasilidade, é fazer uma coisa que tivesse a nossa genética.

Neuber Uchôa: Trazendo para a gente, que é mais recente, a coisa só se renovou, se ressignificou. Mas a tendência é a mesma. Como o poeta falou, o sentimento vem em primeiro lugar. A nossa intenção é trazer à tona esse sentimento de amor pela música, pelo estado, pelas coisas bonitas que temos. A estética. Optamos pela estética do regionalismo.

Marcos Colón: Vocês foram gravados por cantores de vários vieses e pegadas musicais, como o Nilson Chaves, por exemplo. Vocês acreditam que houve um movimento de terem recebido influência de Belém e depois acabarem influenciando a música de Belém e da Amazônia em geral?

Neuber Uchôa: A música, a arte, são isso mesmo, uma samsara. A gente indo e voltando para o mesmo lugar. E todo esse amor, carinho, reverência que a gente tem pela música paraense é como uma simbiose, algo perfeito.

Agora mesmo eu tenho me preocupado em mergulhar mais profundamente nessa música urbana que se faz em Belém e nas cidades do interior. Passei 32 dias dirigindo pelo interior, achei bacana. Conheci cidades interessantes do interior, Bragança, Ourém, Salvaterra, na Ilha de Marajó, Soure. E conheci a pegada mais raiz que eles têm, assim como a música urbana, que respeita toda essa jogada, essa resposta.

Eliakin Rufino: Inclusive, Neuber, lembrando que você trouxe do Pará a música “Rodopiado”, que nós colocamos no repertório do Roraimeira há muitos anos, e que somente agora está ganhando o mundo.

O cantor e compositor Neuber Uchôa

Neuber Uchôa: Fomos os primeiros a regravar. A gente conheceu o Ronaldo Silva em 1993. Ele tinha gravado no primeiro disco dele, em 1991. Enfim, a gente seguiu essa pegada amazônica, e por uma coincidência enorme, a gente tem o respeito e o agrado dos artistas amazônicos de Belém e de todo o Pará.

Eliakin Rufino: Belém também é onde a gente gravava os discos.

Neuber Uchôa: No fundo, Belém é onde a gente vai recarregar as baterias amazônicas, mas não é à toa, eles têm 408 anos. Imagina, é muita história. E é uma coisa linda, que faz parte da nossa vida. Todos os discos que nós gravamos foram gravados em Belém. Mesmo que a gente levasse uma música que a gente queria que tivesse a nossa cara, ela terminou tendo um pouco do sotaque paraense. Os músicos eram todos paraenses.

Eliakin Rufino: Sim, nós somos influenciados pelo Pará, porque gravávamos lá, que era o centro de gravação. Mas com o tempo, eles gostaram também do nosso trabalho e começaram a gravar a gente lá.

Neuber Uchôa: A gente cantou a pedra com muito talento, humildade, mas a gente estava no caminho certo. Sabia que era algo novo, e era isso que a gente queria: antes de tudo, ser essa voz que traduz o sentimento do seu povo. Acho que é a coisa mais emocionante, mais espetacular que pode existir na carreira de um artista.

Marcos Colón: Nas várias músicas de vocês, como “Makunaimando”, “Do Norte” e “Mosquito da Malária”, vocês têm umas referências diretas à natureza da Amazônia, à floresta, às comunidades, aos povos. Vocês podem falar um pouco dessas composições e qual foi a influência, por exemplo, da tríplice fronteira, do ritmo caribenho, dessa simbiose musical, latina, caribenha?

Neuber Uchôa: Comecei a cantar há 60 anos. Faço 65 daqui a uma semana. Foi num programa de auditório e, por coincidência, hoje de manhã cedo, estava fazendo uma pesquisa para saber quantos habitantes Boa Vista tinha nessa época. Uma cidadezinha com 20, 25 mil habitantes, que só tinha uma rádio AM, que ia embora às 11 horas da noite, quando a energia também ia embora, e só voltava no dia seguinte, às 6 horas da manhã. Depois disso, era Caribe. Desde a Rádio Havana e todas essas rádios caribenhas, isso era o que nós ouvíamos.

Meu avô era viciado em rádio. Quando ele largava a rádio, às 11 horas da noite, e ia embora, eu pegava para ouvir essas coisas. Sempre adorei a música, o balanço. Gosto de ritmo, de alegria. E a nossa história tem essa alegria. A música roraimeira tem esse sentimento de amor e estética.

Eliakin Rufino: Há um Movimento Roraimeira feito com muitos artistas e, dentro do Movimento Roraimeira, tem o núcleo de música, que é representado, principalmente, por esse trio que passou a ser conhecido como o Trio Roraimeira, formado pelo Neuber, o Zeca e eu.

Nesse trio, quem faz a pesquisa musical é o Neuber e o Zeca. Eu sou mais letrista, poeta. Embora dou alguns palpites e tenho composições minhas, não é o meu forte. Meu forte são as parcerias, muito embora eu não tenha muitas parcerias com o Neuber e o Zeca, porque eles também são poetas-letristas. E eu sou letrista, mas de músicos que não escrevem ou que escrevem, mas que também têm um trabalho forte de parceria, como é o caso do próprio Nilson Chaves.

O Nilson Chaves escreve, mas o trabalho 100% autoral dele é mais ou menos uns 10, 20% do trabalho dele. São 10, 12 letristas que ele já trabalha há muito tempo. E eu tenho a honra de ser um deles.

Tem um documentário em que o Nilson, inclusive, ressalta essa pesquisa musical feita pelo Neuber, que tem essa bagagem, que ouviu muito do rádio e tem toda uma concepção do que quer fazer de música. E junto com o Zeca, você vê que os maiores sucessos do Roraimeira são parceria dos dois, porque o Zeca traz do Pará também essa coisa popular do carimbó, siriá, brega, essa própria mistura interna. Neuber e Zeca já são uma pesquisa, já são uma fusão.

Temos um CD gravado em abril de 2000. É o primeiro gravado ao vivo em Roraima, no Teatro Carlos Gomes, e se chama “O canto de Roraima e suas influências indígenas e caribenhas”.

Neuber Uchôa: Queria falar de uma música especial que tem muito a ver com isso que o poeta falou. A gente já vinha discutindo isso lá no início dos anos 90, a saudade que o povo, principalmente os nordestinos, que foram os principais colonizadores, têm da terra natal, porque todo mundo que vem para cá, ou para qualquer lugar, pensa em voltar. Existe essa saudade latente em cada cidadão. Os nordestinos têm uma bagagem cultural muito grande.

A gente tinha acabado de fazer um show lá no sul do estado, em Rorainópolis. O prefeito era um nordestino e todo o secretariado dele também. Lá pelas tantas, uma das secretárias do prefeito disse: “Eliakin, toque o hino”. Eliakin disse: “Hino de quê, querida?”. Ela disse: “O hino nordestino. Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa”.

Voltamos para o hotel conversando sobre isso e passamos a viagem de volta conversando a respeito. Chegamos aqui em Boa Vista e fizemos uma música chamada “Saudade de Casa”, que é muito especial.

O cantor e compositor Zeca Preto, autor de “Roraimeira”, hino cultural de Roraima

Marcos Colón: Vocês acreditam que haja uma Música Popular Brasileira amazônica com uma cara própria?

Eliakin Rufino: Não tem, não. Essa coisa de localizar é muito ruim. Existe uma MPB que é feita na Amazônia, no Nordeste, no Sul, e não há essa compartimentação. Você vê que nós sofremos muito e temos que ter muito cuidado com essas regionalidades. Você mesmo usou uma apresentação de Roraima como o extremo norte, mas a ponta do Seixas, lá na Paraíba, não é chamada de extremo leste, assim, normalmente. Nem Cruzeiro do Sul, no Acre, é chamado de extremo oeste. Inclusive, o Acre nem está no oeste. Olha o absurdo! É o ponto mais a oeste do Brasil, mas está na região Norte. Então tem alguma coisa errada.

Essa região Norte foi criada irresponsavelmente. Foi uma maneira de homogeneizar a coisa. Estamos, na verdade, no Noroeste. Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia estão no Noroeste. Temos outro fuso horário, diferente do resto do país.

Aqui em Roraima, mais ainda, que não estamos no bioma amazônico, e sim no Planalto da Guiana, que é uma savana, outra vegetação, outro clima. Os picos mais altos do Brasil, estão nesse Planalto, que são Neblina, 31 de março, e Roraima. Não estamos na baixada. Até fiz um haikai que é assim: “Sou da região serrana / Não tenho lugar de fala / na Terra Plana”. Aqui a gente está mais alto.

Marcos Colón: Entrando numa outra temática: o avanço do agronegócio em Roraima. Um advento que não é novo no Brasil, mas em Roraima tem avançado muito. Observo como a entrada do agronegócio em Roraima se reflete na música. Para que o agro possa se estabelecer no local, ele precisa primeiro se estabelecer culturalmente. Nesse sentido, fico pensando nesse tal de agronejo ou sertanejo. Como vocês veem essa mudança na região?

Neuber Uchôa: Isso tem sido um tema recorrente aqui. A gente está acostumado. A gente vive com uma estátua de um garimpeiro no centro da cidade, entre o Palácio do Governo, a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Justiça, além da Catedral, abençoando tudo. E nem por isso, a gente deixou de fazer a nossa música, seguir o nosso caminho, sem puxar saco nem tapete de ninguém. É difícil, claro, mas 40 anos se passaram, e eu acho que a gente mais ganhou do que perdeu.

Eliakin Rufino: Apostamos na beleza. Os problemas não se resolvem com canções. Embora tenhamos feito homenagens à cultura indígena de Roraima em vários momentos da nossa obra, quem é responsável pela questão indígena é a Funai. Embora nós tenhamos defendido a vida, o meio ambiente, quem tem que cuidar disso é o Ibama. Existem instâncias governamentais para cuidar desses problemas, e não é uma tarefa nossa.

É claro que isso nos preocupa, mas como diz o Neuber, aprendemos a conviver com isso, porque o Roraimeira tinha um compromisso de ser um show de divulgação turística de Roraima, para atrair turistas para cá e não garimpeiros, não o agronegócio. É uma resistência. O Roraimeira defende como binômio econômico para Roraima turismo e cultura, que são duas indústrias associadas no mundo todo e não seria aqui que a gente defenderia uma ou outra. As duas ainda são a saída econômica para Roraima, e não madeira e minério como querem os outros.

Madeira e minério são extrações depredadoras. Está aí a tragédia dos Yanomami, extração de minério. Está aí a tragédia do desmatamento, extração de madeira. Então enquanto madeira e minério não forem substituídos por turismo e cultura, a Amazônia não vai.
Inclusive, tem o disco do Neuber e do Zeca que está escrito na capa do disco, sem ninguém pagar nada, “Faça turismo em Roraima”.

Neuber Uchôa: A gente sempre fez isso. Quase todo o nosso trabalho, a gente tentou ligar diretamente a nossa arte, a esse lado bonito que a economia tem, de vender a cultura de um povo. A gente já pensava nisso há 40 anos.

Eliakin Rufino: A gente é muito criticado no Roraimeira por não ser artistas engajados, muito sério. Pode parecer até meio alienado a gente só cantar a beleza, mas não é, não. É uma estratégia que deu certo. Hoje, as crianças nas escolas estão cantando as nossas canções porque elas são bonitas e falam das belezas daqui.

Neuber Uchôa: A gente distribuiu a identidade. Hoje, existe um amor próprio que foi produzido culturalmente, pelas nossas intervenções.

Eliakin Rufino: Estava contando para um jornalista que eu sou o autor do hino oficial do município. Ele disse: “Ah, então você foi cooptado”. Digo: “Não, eu venci um concurso”. E eu vejo isso como uma conquista do Roraimeira.

O Zeca Preto é autor do hino informal do estado. A música “Makunaimando” foi tombada como patrimônio cultural por decreto da Assembleia Legislativa.

Uma estratégia de apostar no belo, de apostar na beleza e de emocionar as pessoas, de conquistar as pessoas, não mostrando a tragédia. Ninguém faz campanha contra a violência violentamente. E ninguém faz campanha pela vida denunciando tragédia. A gente tem que mostrar a beleza mesmo, encher os olhos das pessoas de beleza, emocionar as pessoas para que elas acreditem que a vida é mais bonita viva.

Marcos Colón: O Ailton Krenak tem o livro que virou uma referência para todos nós, “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2020). De que maneira a música que vocês produzem também nos ajuda a adiar o fim do mundo?

Eliakin Rufino: Olha, eu penso que, somando com todas as outras, a música ajuda. Por isso, tem gente que pensa que o Movimento Roraimeira é o Trio Roraimeira, porque as outras artes não têm essa visibilidade toda. Como a música é a rainha das artes, ela tem esse alcance todo, tem musicoterapia, a música das esferas celestes, Pitágoras, a matemática que está na música. A música está ligada com tudo, com matemática, com o universo. Então é mais profundo.

O que nós fazemos é a música popular, que é uma música de consumo, que existe também no mundo todo, de entretenimento e de regionalidade. Porque nesse ajuste agora da linguagem, por exemplo, não se fala mais índio, se fala indígena. Então temos muitas músicas e poemas que usavam a palavra índio e que agora já ficaram um pouco para trás por causa da mudança. A própria palavra regionalismo, hoje não se fala mais, regionalidade é mais adequado, porque está mais ligado com identidade. A gente vai se adequando aos novos tempos.

Os indígenas hoje têm um protagonismo muito maior do que tinham quando nós começamos a falar alguma coisa em defesa deles.

Estamos contribuindo, e, ao mesmo tempo, mudando o tempo todo para não tentar falar em nome de ninguém, não tentar ser prepotente com o trabalho. Vamos nos adaptando, repensando, reavaliando sempre. Mas, no fundo, eu penso que há uma contribuição, sim. Não só para a melhoria da nossa identidade local, mas também para outras consciências de regionalidades. E isso faz as pessoas mais felizes, porque ninguém é feliz sem ter uma porçãozinha de regionalidade, de pertencimento a algum lugar.

Neuber Uchôa: Eu faço música pensando nisso. Não em adiar os finais dos mundos, mas em deixar as pessoas mais alegres e mais para cima.

Este ano, eu faço parte de um bloco de pessoas de todas as cores e sabores. É um bloco libertário, se chama Mujica, que prima pela diversidade, pela pluralidade. E eu fiz uma música, a terceira que eu faço pelo bloco, que é exatamente em cima desse tema. A identidade do bloco é a diversidade. É Roraimeira.

Depois que eu fiz a música e toquei no primeiro ensaio, o que eu vejo de gente nos agradecendo por falar o que eles querem ouvir. A gente já chegou nesse ponto. É muito gratificante você ter enviado o esforço de 40 anos para chegar nesse momento e dizer que está feliz. Para construir a estética de um povo. Se isso não servir, eu não sei mais o que serve.

Eliakin Rufino: Uns constroem prédios, outros constroem estradas. A gente constrói música, constrói arte.

Marcos Colón: Para vocês, o que significa cantar e compor para o povo?

Eliakin Rufino: Isso virou nossa missão de vida, porque como não fomos tentar carreira artística no Rio de Janeiro, em São Paulo, continuamos morando aqui, então, o trabalho a fazer era esse. Tem uma coisa grandiosa no nosso trabalho: não foi por encomenda. A gente não recebeu dinheiro, a gente cantou por amor.

Até criticamos alguns eventos, como festivais que foram feitos e que era obrigatório o tema local. No Parque da Cidade, tem um muro cheio de quadros de artistas, mas, por causa da obrigatoriedade do tema local, todos os quadros são iguais, porque todo mundo tinha que pintar aquilo. Deixava cada um se expressar, o muro teria ficado lindo. Como nos expressamos sem ninguém encomendar, sem ninguém pagar, é uma coisa autêntica, genuína, legítima, bonita.

A gente começou a cantar porque viu a necessidade de fazer esse trabalho aqui. Esse é o mais bonito da história toda, não foi uma missão encomendada.

Neuber Uchôa: Hoje, a gente goza do respeito, do carinho, somos referência para essa juventude que está fazendo música. Existe uma nova geração Roraimeira. Acabamos de nos apresentar com nossos filhos, já sinalizando que eles vão continuar mesmo, não era papo.

Eliakin Rufino: Crescem os trabalhos acadêmicos, TCC, dissertações de mestrado. A academia tem se interessado também pelo tema.

Neuber Uchôa: O diálogo com a juventude que a gente mantém, isso é legal. Fortalecer o movimento significa estar sempre atento e se atualizando dia e noite, principalmente neste tempo, novos artistas surgindo, novas tendências. Nosso cuidado foi é uma coisa admirável.

Eliakin Rufino: O Trio Roraimeira foi agraciado em 2018 com a Ordem do Mérito Cultural, a maior honraria cultural do país, do Ministério da Cultura, da Presidência da República. Somos cavaleiros da Ordem do Mérito Cultural, que é um reconhecimento, por parte do Estado, do nosso trabalho no Noroeste do Brasil.

Marcos Colón: Eliakin, você vai estar participando do lançamento do álbum “Amazônia sem Garimpo – Volume 1”?

Eliakin Rufino: O lançamento faz parte de um programa internacional que se chama Pint of Science, no qual se lançam trabalhos científicos em bares, para popularizar. Isso já está sendo feito em 26 países. E na nossa Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um grupo de cientistas, dirigido pelo médico e cientista, sanitarista, professor Paulo Basta, que é amigo nosso, tem feito trabalhos científicos conectando ciência e arte. Esse é um projeto de defesa do povo Munduruku. A contaminação de mercúrio lá está extremamente alta, dos rios, dos peixes.

Foi feita uma ação da Fiocruz lá, e um dos desdobramentos do projeto foi produzir um álbum com músicas sobre essa necessidade que todos temos de pedir o fim do garimpo na Amazônia, porque todo garimpo é ilegal. Então estamos indo contra uma ilegalidade que está sendo praticada. Agora, se há condições sustentáveis de ser feito, isso tem que sentar para conversar, porque destruir a natureza, contaminar os rios para a riqueza de poucos em detrimento de muitos, não pode.

O disco está lindo. São nove faixas. Eu sou letrista de cinco delas, parcerias com o Leandro Floresta, que é um músico. E a consultoria do povo Munduruku, com a participação do próprio Daniel Munduruku, que canta uma das faixas. Tem também Cátia de França, Moreno Veloso, Dora Morelenbaum, o próprio Lelê Floresta cantando. Minha participação como letrista é de adequar essa linguagem, criar uma linguagem de música popular que fosse não panfletária contra o garimpo, mas também que quisesse sensibilizar para a vida, para a importância da floresta viva e se posicionar publicamente contra o garimpo.

É um ato contra o garimpo, na Lapa, no Rio de Janeiro. Com um show com a banda Ciência e Poesia, que é formada pelo Paulo Basto, o Lelê Floresta e os músicos. O Daniel Munduruku vai estar lá para uma rodada de conversa. Eu participo também.

Vamos fazer um ato contra o garimpo no Rio de Janeiro para chamar a atenção da sociedade de um modo geral, numa cidade que tem mais visibilidade, para a necessidade de darmos um basta nisso. É para combater com música, com alegria.

A quantidade de lama que o garimpo jogou no Rio Tapajós, a pérola da Amazônia, o caribe da Amazônia, é duas vezes maior do que a lama de Brumadinho, eu ouvi. Então não estamos falando de uma coisa localizada, é um desastre geral. E qualquer pessoa tem que se voltar contra. Primeiro, pela ilegalidade da prática.

Marcos Colón: Como vocês veem a cena cultural da música na Amazônia? Que artistas vocês indicam entre esses novos que têm despontado na música da região?

Neuber Uchôa: Eu faço parte dos que são do presente. E tenho um orgulho danado de fazer parte desse time de artistas que conseguiram romper a barreira do sistema e fazer um novo destino para a música produzida no Norte. Estamos aí há 40 anos, antes tinha a gente fazendo, daí o brega, daí a indústria dos discos, dos estúdios em Belém, tudo centenário. Existe um movimento. É que o próprio país virou de costas para a nossa região durante a vida toda, até hoje. Quando se fala em Belém, já pensam que é o mato.

Eliakin Rufino: Para citar nomes, em Roraima, temos Anne Louise Sanfoneira, uma menina de 17 anos que está se destacando muito no forró. Temos Ana Lu, voz feminina do reggae e do pop. Ela tem um trabalho bem frequente de produção de clipes, de shows, e uma atuação bem grande. Os meninos do Bodó Valorizado, da antiga John Rock.

Neuber Uchôa: E tem também os Hermanos, que estão fazendo música com a gente. Tem dois rapazes da Venezuela, o Israel. Acabamos de contratá-los para fazer um sopro no nosso Carnaval.

Eliakin Rufino: Outra mudança digna de ser colocada é que antigamente a fronteira era na cidade de Pacaraima, na linha de fronteira. Do outro lado, tem Santa Helena, lá era a fronteira. Aqui tinham alguns venezuelanos, que vinham como turismo, um outro morava aqui. Mas hoje 15% da população de Boa Vista é formada por venezuelanos. Agora, a cidade de fronteira é aqui.

Hoje, é muito comum você ouvir música venezuelana andando na rua ou venda de comida venezuelana na rua. E veio também essa parte musical. Os maestros das orquestras são todos venezuelanos, bandas venezuelanas tocando. Estamos vivendo um auge de uma fusão cultural em Boa Vista. Um fenômeno bem atual. São quase 100 mil venezuelanos que se mudaram para cá.

Inclusive, fomos os primeiros a fazer um discurso de acolhida, porque, num primeiro momento, houve reações de xenofobia. Neuber compôs uma música sobre isso, eu compus um poema. Demos muitas declarações na imprensa sobre a necessidade de acolher. Tenho até um poema que diz que um dos nossos costumes é acolher nossos vizinhos aqui: “Quem deixou seu país / encontra aqui nosso amor / e a chance de ser feliz”.

Nós nos colocamos na linha de frente quando houve algumas reações xenofóbicas ou de bairrismo aos venezuelanos. E ainda há, mas agora me parece que as coisas estão se acomodando.

Marcos Colón: Qual a importância de pensarmos a Amazônia pela música?

Eliakin Rufino: Eu tive a honra de participar de um encontro nacional de geógrafos da cultura, que são professores de Geografia que ensinam tendo a cultura como a coluna vertebral da sua metodologia. Então eu penso que a importância é que não só por meio da música como da cultura da Amazônia, é possível conhecer a Amazônia de perto, pelo olhar de quem tenta traduzir, que é a questão do artista.

Se a gente pegar a cultura que é produzida aqui na região que se chama Amazônia, é possível termos uma ideia real. Claro que não é toda a música que é produzida aqui, tem música de entretenimento. Mas a música popular, de modo geral, feita pelos compositores da Amazônia é, sim, um caminho de conhecimento e de reflexão sobre a nossa região.

Neuber Uchôa: A importância é imensa. Primeiro, pela continuidade. O que tem de mais antigo aqui é a nossa cidade que tem 133 anos. Belém acabou de fazer 408. Muita história. O que a gente está fazendo é escrever as primeiras letras da nossa história, junto com todo mundo que está com a gente. Como eu e o Zeca dizemos numa música: “nossa história é feita de pajés e corações de cada canto do país”. Nesse caso, do mundo todo, a gente vive outro tempo.

Mas como somos um povo muito jovem, a gente tem essa vantagem de ser contemporâneo. Não somos da época da flautinha de urso. Nossa história é toda nova. Fora essa história dos fazendeiros, do garimpo, nossa história, de fato, tem 40, 50 anos. É a idade do Roraimeira. Antes disso, o que havia era um ajuntamento. A gente não tinha nenhuma cara em particular. Eram muitas identidades.

Então acho que é a importância de a gente continuar fazendo esse trabalho, produzindo os filhotes disso tudo. Com toda sinceridade, meu maior orgulho é esse. Tenho cinco filhos, todos artistas. Temos feito arte juntos. Família que faz arte unida, permanece unida.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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