Verso & Prosa

O Mozart na máquina

Postado por Simão Pessoa

Por Yuval Noah Harari

Ao menos no curto prazo, a IA e a robótica provavelmente não eliminarão por completo setores inteiros da economia. Trabalhos que requeiram especialização numa faixa estreita de atividades padronizadas serão automatizados. Porém será muito mais difícil substituir humanos por máquinas em tarefas menos padronizadas que exijam o uso simultâneo de uma ampla variedade de habilidades, e que envolvam lidar com cenários imprevisíveis.

Tomem-se os serviços de saúde, por exemplo. Muitos médicos concentram-se exclusivamente em processar informação: eles absorvem dados médicos, os analisam e fazem um diagnóstico. Enfermeiras, ao contrário, precisam também de boas habilidades motoras e emocionais para ministrar uma injeção dolorosa, trocar um curativo ou conter um paciente violento.

Por isso provavelmente teremos um médico de IA em nosso smartphone décadas antes de termos uma enfermeira-robô confiável. É provável que as atividades de cuidado – de enfermos, crianças e idosos – continuem a ser um bastião humano por muito tempo. Realmente, como as pessoas estão vivendo mais e tendo menos filhos, a área de cuidados geriátricos provavelmente será a de crescimento mais rápido no mercado de trabalho humano.

Assim como o cuidado, a criatividade também coloca obstáculos especialmente difíceis para a automação. Não precisamos mais de humanos que nos vendam música – podemos baixá-la da loja da iTunes –, mas compositores, instrumentistas, cantores e DJs ainda são de carne e osso. Nós contamos com sua criatividade não só para produzir música totalmente nova, mas também para escolher entre uma desnorteante gama de possibilidades disponíveis.

Entretanto, a longo prazo, nenhuma atividade permanecerá totalmente imune à automação. Até mesmo artistas receberão aviso-prévio. No mundo moderno a arte é comumente associada a emoções humanas. Tendemos a pensar que artistas estão direcionando forças psicológicas internas, e que todo o propósito da arte é conectar-nos com nossas emoções ou inspirar em nós algum sentimento novo. Como consequência, quando avaliamos arte tendemos a julgá-la segundo seu impacto emocional no público. Mas se a arte é definida pelas emoções humanas, o que acontecerá quando algoritmos externos forem capazes de compreender e manipular emoções humanas melhor do que Shakespeare, Frida Kahlo ou Beyoncé?

Afinal, emoções não são um fenômeno místico – são resultado de um processo bioquímico. Daí que num futuro não muito distante um algoritmo de aprendizado de máquina será capaz de analisar dados biométricos de sensores em seu corpo, determinar o tipo de sua personalidade e suas variações de humor e calcular o impacto emocional que uma determinada canção – até mesmo uma certa tonalidade – terá sobre você.

De todas as formas de arte, a música é provavelmente a mais suscetível a uma análise de Big Data, porque tanto seus inputs como outputs prestam-se a uma descrição matemática precisa. Os inputs são padrões matemáticos de ondas sonoras, e os outputs são os padrões eletroquímicos de tempestades neurais. Dentro de poucas décadas, um algoritmo capaz de analisar milhões de experiências musicais poderá aprender a prever como determinados inputs resultam em determinados outputs.

Suponha que você acabou de ter uma briga horrível com seu namorado. O algoritmo encarregado de seu sistema de som imediatamente vai identificar sua agitação interna e, baseado no que conhece de sua personalidade e da psicologia humana em geral, vai tocar canções sob medida para ressoar com sua mágoa e ecoar sua aflição. Essas canções específicas podem não funcionar bem com outras pessoas, mas são perfeitas para seu tipo de personalidade.

Depois de ajudá-lo a entrar em contato com sua tristeza mais profunda, o algoritmo vai então tocar a única canção no mundo que provavelmente vai animar você – talvez porque seu subconsciente a conecta com uma lembrança feliz da infância da qual nem mesmo você tem consciência. Nenhum DJ humano poderia jamais esperar equiparar-se aos talentos dessa IA.

Talvez você conteste, dizendo que a IA estaria assim eliminando o acaso e nos encerrando num estreito casulo musical, tecido por nossos gostos e desgostos anteriores. E quanto a explorar novos gostos e estilos musicais? Tudo bem. Você poderia ajustar o algoritmo para que 5% de suas escolhas fossem totalmente aleatórias, jogando em seu colo uma gravação de um conjunto de gamelão indonésio, uma ópera de Rossini ou o último sucesso de K-pop. Com o tempo, monitorando suas reações, a IA poderia até mesmo determinar o nível ideal de aleatoriedade que otimizaria a exploração, ao mesmo tempo que evita o enfado, talvez baixando seu nível de acaso a 3% ou elevando para 8%.

Outra possível objeção seria quanto a não ser claro como o algoritmo estabelece seu objetivo emocional. Se você acabou de brigar com seu namorado, o algoritmo deveria tentar deixá-lo triste ou alegre? Deveria seguir uma escala rígida de emoções “boas” e emoções “ruins”? Talvez haja momentos na vida em que é bom ficar triste? A mesma pergunta poderia, é claro, ser dirigida a músicos e DJs humanos. Mas com um algoritmo há muitas soluções interessantes para esse quebra-cabeça.

Uma opção é deixar isso por conta do cliente. Você pode avaliar suas emoções da maneira que quiser, e o algoritmo seguirá seus ditames. Se você quiser chafurdar na autocomiseração ou dar saltos de alegria, o algoritmo obedecerá a sua orientação. De fato, o algoritmo pode aprender a reconhecer seus desejos mesmo sem que você esteja explicitamente consciente deles.

Ou então, se você não confia em você mesmo, poderá instruir o algoritmo a seguir a recomendação de algum psicólogo no qual você confia. Se seu namorado terminar com você, o algoritmo poderá te conduzir através das cinco etapas oficiais do luto, primeiro te ajudando a negar o que aconteceu tocando “Don’t Worry, Be Happy”, de Bobby McFerrin, depois incitando sua raiva com “You Oughta Know”, de Alanis Morissette, incentivando-o a barganhar com “Ne me quitte pas”, de Jacques Brel, e “Come Back and Stay”, de Paul Young, deixando-o no fundo do poço da depressão com “Someone Like You”, de Adele, e finalmente ajudando você a aceitar a situação com “I Will Survive”, de Gloria Gaynor.

O passo seguinte é o algoritmo começar a experimentar com as próprias canções e melodias, mudando-as ligeiramente para que se adaptem a seus caprichos. Talvez você não goste de um determinado trecho de uma canção que, de resto, é excelente. O algoritmo sabe disso porque seu coração pula uma batida e seus níveis de ocitocina caem ligeiramente sempre que você ouve essa parte que o aborrece. O algoritmo poderia reescrever ou editar as notas que incomodam.

No longo prazo, algoritmos podem aprender a compor melodias inteiras, tocando as emoções humanas como se fossem um teclado de piano. Usando seus dados biométricos, os algoritmos poderiam até mesmo produzir melodias personalizadas, que só você, no universo inteiro, saberia apreciar.

Diz-se que as pessoas se conectam com a arte porque se veem nela. Isso pode levar a resultados surpreendentes e um tanto sinistros se e quando, digamos, o Facebook começar a criar arte baseada em tudo o que sabe sobre você. Se seu namorado te der o fora, o Facebook vai te fazer um agrado com uma canção personalizada sobre aquele babaca em particular e não sobre a pessoa desconhecida que partiu o coração de Adele ou de Alanis Morissette. A canção até o fará se lembrar de incidentes reais do relacionamento de vocês, dos quais ninguém mais no mundo tem conhecimento.

É claro que a arte personalizada pode não pegar, porque as pessoas continuarão a preferir sucessos dos quais todo mundo gosta. Como dançar ou cantar com alguém uma música que só você conhece? Mas os algoritmos poderiam se mostrar mais adaptáveis produzindo sucessos globais do que produzindo raridades personalizadas. Ao usar enormes bases de dados biométricas geradas a partir de milhões de pessoas, o algoritmo poderia saber quais botões bioquímicos acionar para produzir um sucesso global que faria todo mundo rebolar como louco nas pistas de dança.

Se arte de fato tem a ver com inspirar (ou manipular) emoções humanas, poucos (se é que algum) músicos humanos terão a oportunidade de competir com um algoritmo desses, porque não podem se equiparar a ele na compreensão do principal instrumento que está tocando: o sistema bioquímico humano.

Resultará tudo isso em grandes obras de arte? Depende da definição de arte. Se a beleza está na verdade nos ouvidos de quem ouve, e se o cliente tem sempre razão, então os algoritmos biométricos têm a oportunidade de produzir a melhor arte da história. Se arte tem a ver com algo mais profundo do que emoções e deve expressar uma verdade que fica além de nossas vibrações bioquímicas, pode ser que algoritmos biométricos não sejam bons artistas. Mas a maioria dos humanos tampouco é. Para entrar no mercado de arte e substituir muitos compositores e intérpretes os algoritmos não teriam de começar superando logo Tchaikovsky. Bastaria que fossem melhores que Britney Spears.

(Do livro “21 lições para o século 21”. Lição 2: “Trabalho”)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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