Verso & Prosa

A Cultura do Cancelamento chega à UEA

O escritor Tenório Telles, ex-presidente do Conselho Municipal de Cultura
Postado por Simão Pessoa

A XII Semana de Letras é um evento acadêmico-cultural promovido pelo curso de Letras da Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas – ENS/UEA. A cada ano, um tema considerado pertinente e atual, na intersecção entre interesses acadêmicos e sociais, é escolhido como motor central do evento.

A 12ª edição teve como tema “Construção Identitária Amazônida”, com o objetivo principal de promover um ambiente aberto a discussões diversas sobre o processo contínuo de descobrimento de nossa cultura.

Um dia após a realização do evento, a Comissão Discente da XII Semana de Letras utilizou a esgotosfera para divulgar uma Nota de Posicionamento, acusando injustamente o escritor, ensaísta, poeta, membro da AAL e professor Tenório Telles de transfobia.

É claro que o professor se posicionou firmemente contra mais esta leseira baré da “idiotzia” manauara, que parece se considerar a vanguarda do atraso. Seguem a nota e a réplica.

A propósito de um Encontro de Literatura e os Novos Inquisidores

Por Tenório Telles

Uma narrativa quando não é esclarecida e posta dentro de seu contexto gera ruídos, desentendimento e incompreensões. Para evitar julgamentos e condenações injustas das pessoas, sobretudo nesse tempo de inquisidores virtuais, aproveito a oportunidade para esclarecer a desinformação que circula a respeito de minha participação da semana de letras da UEA. Faço com o intuito de que não prevaleça apenas uma versão sobre suposto ato desrespeitoso em relação a uma escritora que participou da mesa em que tomei parte.

Desse modo, contesto o teor do documento divulgado a esse respeito, pela comissão organizadora do evento, que de resto tão somente expressa o comportamento persecutório e inquisitorial de certos setores que se julgam donos da verdade e acreditam que podem acusar, julgar e condenar as pessoas sem lhes dar o direito de defesa. Esclareço ainda que aceitei participar do evento com boa vontade e com a intenção de colaborar com os debates, de forma voluntária e gratuita.

Me preparei para a ocasião com a finalidade de oferecer o melhor em termos de reflexão sobre o tema sugerido. Mas as ideias apresentadas de nada valeram. Prevaleceu o ruído e a mágoa. Com o propósito de aclarar o ocorrido e para que não reste dúvida sobre o que manifestei na ocasião, torno pública a minuta da minha apresentação que felizmente tinha sistematizado e submeto aos leitores e pessoas alcançadas pela versão distorcida do acontecido que circula nas redes sociais. Quando a uma pessoa lhe é subtraído o direito de defesa, resta a ela fazê-lo pelos seus próprios meios.

Para que tudo reste transparente nesta querela inútil, apresento o texto que evoca minha fala:

SOBRE O LITERÁRIO E A CRIAÇÃO ESTÉTICA

Não sei quantas almas tenho. / Cada momento mudei /
Continuamente me estranho. / Nunca me vi nem achei. /
De tanto ser, só tenho alma. / (…) Sou minha própria paisagem /
Assisto à minha paisagem, / Diverso, móbil e só. /
Não sei sentir-me onde estou. / Por isso, alheio, vou lendo /
Como páginas, meu ser / O que segue não prevendo, /
O que passou a esquecer. / Noto à margem do que li /
O que julguei que senti. / Releio e digo: “Fui eu?”.

A leitura do poema “Não sei quantas almas tenho”, de Fernando Pessoa, é expressiva do fenômeno poético e sua fluidez criativa, bem como do processo de autoconstrução do sujeito criativo – e do próprio poeta, um ser sempre em busca, cioso de sua incompletude, na sua jornada de consubstanciação. Como o eu lírico sugere no segundo verso do texto: “Cada momento mudei” – e, nesse devir, nos deparamos com nossas inquietudes e insatisfações, por isso declara: “Continuamente me estranho”.

Os versos de Pessoa são metafóricos da condição humana e do próprio fazer literário. Nesse sentido, a literatura, como expressão artística que se funda e se manifesta na/e/pela linguagem, encontra significação na tradição e na capacidade criativa dos escritores. Há autores que negam a tradição e acreditam que podem prescindir dos ensinamentos do passado. Tal ponto de vista enseja uma percepção equivocada, pois as conquistas criativas do pensamento e os temas têm sido praticamente os mesmos desde os gregos. Ao longo dos anos, percebe-se que novos autores surgem retomando e revestindo temas e questões com novas vestimentas, com ritmos diferentes, imagens e formas de linguagem mais condizentes com os novos tempos. Há um imbricamento entre a tradição e o anseio de renovação inerente à condição humana e as demandas do real.

Se é verdade que no plano literário as transformações são uma constante, no plano existencial não é diferente. Somos todos produtos de nossas histórias, nossas vivências, perdas, dores, nossas escolhas e decepções, também das alegrias e conquistas que experimentamos ao longo de nossas vidas. Tudo o que vivemos acresce ao que somos. E o que somos hoje não seremos amanhã, tanto no plano físico, como no subjetivo. Todas essas questões atravessam a literatura e estão presentes nos grandes livros, nos autores fundamentais e no nosso próprio trabalho criativo. A expressão de toda essa complexidade humana e vivencial ocorre por meio da linguagem. Os versos do poeta grego Píndaro não deixam dúvida quanto a essa conexão entre a criação, a vida e o desejo de viver e ser no mundo: “Ó minha alma, não aspires à vida imortal, / Mas esgota o campo do possível”.

Esse entendimento de que a linguagem é a matéria que enforma o fazer literário atesta a sua relevância e o seu caráter imperativo; ao mesmo tempo em que evidencia a responsabilidade dos escritores com sua própria criação. A escritura de um texto é um ato que demanda esforço, disciplina e um processo de amadurecimento humano e intelectual. A criação é um trabalho exigente – uma prática similar à ourivesaria, em que matéria e forma se equilibram num jogo de forças.

Nesse sentido, um bom texto literário nasce desse embate do eu criador com a sua subjetividade, sua história, a tradição, o domínio dos fundamentos linguísticos, sua capacidade inventiva e habilidade no momento de inscrever na página ou outro suporte o fluxo de sua criação, a obra materializada em palavras. Aristóteles, na Poética, já havia chamado a atenção para esses elementos extrínsecos e intrínsecos do poema e também das tragédias. Portanto, os estudos literários devem considerar como pressuposto fundamental e seu objeto o texto literário, que deve ser sempre o ponto de partida das análises e discussões sobre o fenômeno literário. As demais questões, sociais e políticas, estão refletidas nas criações literárias e artísticas em geral. A Hermenêutica, como método de interpretação, deixa essa questão bem evidenciada ao considerar que todo texto é um mundo a ser revelado.

No meu processo de formação, a leitura teve um papel crucial na minha constituição subjetiva e existencial. As leituras de Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo; A poesia de Gregório de Matos; A Mãe, do escritor russo Máximo Gorki; A divina comédia, de Dante; Mar morto e Terras do sem fim, de Jorge Amado, foram fundamentais no meu despertar para a força das palavras e afirmação do meu amor pelos livros. Gostaria de destacar ainda o significado da Bíblia, como uma obra seminal, em especial o texto do Eclesiastes, que é uma das mais densas reflexões sobre a inconstância do mundo e a precariedade da condição humana.

Ainda considerando essa reflexão sobre obras e autores, como forma de contribuir com a leitura dos jovens escritores que estão presentes, gostaria de sugerir alguns criadores que seguem vivos e que podem servir de inspiração e ajudar na formação literária e criativa dos interessados: Machado de Assis, Lima Barreto, Safo, Shakespeare, Dante, Drummond, Bandeira, Fernando Pessoa, Basho, Li Po, Mallarmé, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Louise Glück, Luiz Bacellar, Astrid Cabral e Thiago de Mello. É uma pequena lista para servir, quem sabe, como ponto de partida.

Concluo, por fim, fazendo uma breve consideração sobre o meu processo de criação. Todo o meu trabalho está baseado na leitura. A propósito disso, devo confessar que gosto mais de ler do que de escrever. A escritura é uma experiência penosa que se traduz numa busca e numa luta para expressar sentimentos e percepções sobre o nosso existir que, nem sempre, conseguimos realizá-las a contento. Todo processo criativo e de escrita é uma experiência malograda, na medida em que não conseguimos traduzir, em linguagem, as imagens, sensações, desejos e experiências vividas como imaginamos e pensamos que poderiam ser manifestas. Isso talvez explique a obsessão de Ernest Hemingway no momento da revisão de seus textos. A imaginação é o mundo recorrente na minha criação e nas minhas viagens. É o território por onde me aventuro em busca de sentido, referências e inspiração para o meu trabalho e a minha constituição existencial e poética.

P.S.: Esta é uma síntese da minha apresentação na Semana de Letras da UEA. Fica evidente que em nenhum momento emiti qualquer juízo de valor em relação à autora retratada na nota da comissão discente organizadora do encontro, tampouco fiz qualquer referência ao seu trabalho. Os ruídos apontados foram colaterais à fala que fiz sobre as contingências e metamorfoses da vida; o que foi corroborado pela própria escritora durante os debates, quando relatou que no passado possuía uma existência e um nome masculino e que, presentemente, autodefine-se e se identifica com o gênero feminino, adotando um nome correspondente à sua condição atual.

No transcurso dos comentários sobre perguntas da plateia, foi mencionado o fato da experiência pessoal da debatedora mencionada ser metafórica do próprio fenômeno literário e do ser humano em sua busca permanente, e que sua história é uma evidência da própria metamorfose que define todas as coisas sob o sol – uma condição inerente a todo ser humano, como bem evidenciou o poeta Raul Seixas que afirmava preferir “ser uma metamorfose ambulante / do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Não é inoportuno lembrar o sábio grego Heráclito e sua afirmativa sobre o eterno renovar de todas coisas. Também o velho Marx e sua dialética. Enfim, é o que tenho a dizer sobre essa situação que nada tem a ver com o teor, o tom e a extensão da minha participação na semana de letras da UEA. Gostaria que as pessoas que tiveram acesso a essa versão dos acontecimentos examinassem o teor dos argumentos suscitados na minha apresentação e fizessem seu próprio juízo. Pelo que agradeço a todos – [os que amam os livros de verdade, a literatura e que têm apreço sincero pelo franco debate das ideais] – que tiverem a paciência de ler esta ponderação. Isso tudo é uma lição para não esquecermos o que disse o poeta Eduardo Alves da Costa no texto “No caminho com Maiakóvski”:

Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem; / pisam as flores, matam nosso cão, / e não dizemos nada. Até que um dia, / o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.

É assim que vamos sendo pouco a pouco privados de nossa liberdade, dos espaços de debate das ideias e troca de opiniões. Mas hoje reina o medo de falar, de se expressar e os inquisidores espreitam sedentos de ressentimentos, esperando o deslize, o ato falho, um lapso de memória ou de linguagem para atacar e destruir o que não está de acordo com seus dogmas e arrogância.

O poeta grego Kaváfis, no seu célebre poema, avisou que os bárbaros chegariam [“… os bárbaros chegam hoje, / tais coisas os deslumbram”]. Pois eles chegaram, como previu o poeta, e espalham suas nuvens obscuras e toldam a claridade. Eles nada entendem de humanidade, de compaixão, de alteridade, de poesia e de beleza. Eles só entendem de rancor, ressentimento e vingança. Se comprazem em destruir. Os bárbaros estão em todos os lugares…

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

2 comentários

  • Tenório Telles, ilustre professor, erusito, literato, imortal e querido amigo é das pessoas mais doces que conheço. Daquelas que me fazem sentir um bárbaro apenas por existir. É incapaz de uma descortesia, que dirá do que o acusam.

    Dito isto, realmente é preciso concordar ao reconhecer que vivemos em tempos inquisitoriais. Nesse tema danidentidade de gênero, como em tantos outros, há inquisidores nos dois extremos do reacionarismo e do progressismo aloprado, amvos objetivamente aliados pela supressão dos espaços de debate, pelo estrangulamento da capacidade de pensar temas complexos e cheios de nuances e de eliminar o contrário.

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