Por Sérgio Augusto
Sei que o Dia de Finados já passou, mas, como dizia um poeta português, todo dia é dia dos mortos na casa de alguém. De mais a mais, uma leitora, visivelmente oculta por um pseudônimo (Emma Karenina), quer saber se é verdade que eu não só defendo o suicídio “como um ato de coragem”, mas também já disse, alhures, que “os franceses, e não os nórdicos e japoneses, são os campeões mundiais do suicídio”. Diante de tão bandeiroso nom de plume tenho até medo de recomendar o suicídio como solução final para os sem-saída altaneiros. Vou, porém, ser sincero com você, Anna Bovary – perdão, Emma Karenina –, e dizer-lhe o seguinte: tenho o maior respeito pelos suicidas.
Toma-los por covardes, sem coragem de enfrentar a adversidade, é uma falácia religiosa, que muitas vezes confunde bravura com masoquismo. É preciso ter muita coragem para dar cabo da própria vida. Porque desafia Deus, o suicida é uma figura prometéica. O suicida é o mais soberano e solitário dos seres humanos. A seu modo, uma divindade, o dono absoluto de seu próprio destino. E mais não me aventuro nesta seara porque outros (Albert Camus, A. Alvarez etc) já discutiram a questão com profundidade e brilho.
Alhures. Vejam só que palavra eu tirei do baú. A última vez que a usei, claro que de molecagem, foi numa conversa com uma jovem jornalista paulistana, já lá se vão mais de três décadas ao perceber que a moçoila pensava que alhures era o nome de algum lugar específico (“Onde fica isso?”, perguntou-me toda catita), arquivei o vetusto advérbio (do provençal aliors), prometendo a mim mesmo jamais utilizá-lo na frente de interlocutores com menos de 40 anos.
Mas já que estou com a mão na massa, insisto: alhures afirmei, sim, que os franceses são chegados àquilo que a sua xará cometeu. Ou melhor, as suas duas xarás cometeram. Quando? Quando morreu o filósofo Gilles Deleuze, em 1995. Não generalizei, incluindo no mesmo abismo todos os franceses, mas tão somente os seus intelectuais.
Oui, oui, oui, Camus estuporou-se a bordo de um carro. Mero acidente. Como, d’ailleurs, o atropelamento de Roland Barthes e as mazelas que levaram Jean-Paul Sartre, Louis Althusser e Michel Foucault desta para melhor. Mas o que dizer do teórico marxista Nico Poulantzas, nascido na Grécia mas parisiense de adoção? Matou-se em 1979. E os suicídios quse simultâneos de Guy Debord, Sarah Kofman, Roger Stéphane e Gérard Voitet? Todos franceses da gema.
Sobreviventes de Maio 68, Debord, Kofman, Stéphane e Voitet cansaram-se de chocar pelos meios, digamos, tradicionais e apelaram para aquilo que Camus qualificou de o único problema filosófico realmente sério. Ao contrário de Deleuze, não se mataram para sustar uma situação física insuportável, mas para sublinhar algum aspecto vital de suas obras ou, como se dizia antigamente, para marcar uma posição. No mínimo contra a Igreja, que há 15 séculos, por inspiração de santo Agostinho, enquadrou o suicídio na categoria de pecado mortal.
Stéphane, escritor ligado a Gide, e Voitet, editor, se confessaram desiludidos com os rumos tomados pelo governo Mitterrand. O primeiro foi mais explícito: abominava todos os monumentos modernistas que Mitterrand espalhou por paris. Quem foi que disse que só as paisagens são vitimadas pela má arquitetura?
Debord, principal teórico do Situacionismo Internacional e inimigo número um da “sociedade do espetáculo”, optou pelo paradoxo. Vingou-se do que aí está com um gesto que é sempre espetacular, mesmo se cometido da forma mais discreta possível. Não surpreendeu seus pares, simpáticos ao aspecto prometeico do suicídio. Nem aqueles que acompanhavam suas crises de depressão, cada vez mais frequentes, profundas e alcoolizadas. Passara seus últimos cinco anos anunciando que em breve sairia de cena, pois julgava seu trabalho encerrado.
Igual motivo foi invocado por Kofman, austera filósofa ligada a Jacques Derrida e vítima, como Debord, do que os entendidos chamam de melancolia terminal. Debord saiu de cena comparado a Rimbaud, Lautréamont, Artaud e outros “grandes poetas revolucionários”, e com a insígnia de “suicida da sociedade”. Kofman não obteve honra menor: seu suicídio foi encarado nos meios acadêmicos franceses como um gesto genuinamente pós-moderno.
Kofman venerava Nietzsche, que, como se sabe, considerava o suicídio um grande consolo para as noites difíceis. É possível que o desprendimento com que o filósofo alemão encarava a morte (mais digna, segundo ele, do que sentir medo – ouviu, Regina Duarte?) tenha levado alguns de seus seguidores à auto-eliminação, mas seria injusto atribuir a letomania dos franceses à sua influência. Nietzsche tinha apenas 11 anos quando o poeta e escritor romântico Gérard de Nerval enforcou-se num poste de rua, dando início a uma tradição. Ou melhor, consolidando uma tradição. Afinal de contas, Alphonse Rabbe veio antes dele.
Rabbe não era um autor da envergadura de Nerval, precursor do simbolismo e do surrealismo, mas foi um dos primeiros a teorizar na França a favor do suicídio, receitando no seu L’Album d’um Pessimiste a melhor maneira de se matar. Um século depois, o vade-mécum de Rabbe ainda era consumido com mórbida fascinação pelos intelectuais parisienses. Especialmente pelos surrealistas, que por sinal enterraram três figuras de proa – Jacques Vaché, René Crevel e Jacques Rigault – no panteão dos suicidas.
Volta e meia a França surpreende o mundo com um novo Rabbe. O último de que tenho notícia chamava-se Claude Guillon, que também achava que eliminar a própria vida é uma reivindicação revolucionária. Ao estrear como jornalista, há 45 anos, foi logo anunciando: “Quando eu crescer, vou me suicidar”. Como já tinha 23 anos, a promessa soou como uma boutade. Em vez de se matar, Guillon fundou o Comitê Morte Serena. Tinha, então, 31 anos, e pouco mais do que isso quando, de parceria com Yves Le Bonniec, publicou Suicídio, Modo de Usar, best seller instantâneo e dos mais polêmicos que os franceses já leram.
À frente do Comitê, Guillon empenhou-se em desqualificar publicamente os métodos mais comuns de suicídio – enforcamento, fogo às vestes, saltos de grande altura – por serem brutais e dolorosos. No livro, ensinou quais as maneiras mais eficazes, recatadas e indolores de pôr termo à vida, listando 60 remédios à venda em qualquer farmácia (pílulas contra enjoo, xaropes antialérgicos etc), com as doses e misturas adequadas, sem desprezar venenos tradicionais como o arsênico e a estricnina.
Meticuloso, mediu o tempo que cada um dos coquetéis letais leva para executar o serviço e selecionou os ambientes mais apropriados para o gesto extremo. Como bom francês, recheou seu guia com digressões históricas e filosóficas, remontando a Sócrates, a mais famosa vítima da cicuta, daí, aliás, o nome dado à conhecida sociedade de apoio a suicidas, Hemlock Society. Hemlock é cicuta em inglês.
De repente, Guillon sumiu do mapa. Nunca mais ouvi falar dele. Vai ver, cumpriu sua promessa. Talvez não. Pois nem todos os franceses seguem na prática as suas teorias. Haja vista que alguns deles já escreveram sobre a arte de tomar banho.