Verso & Prosa

Verdadeiro fim da aventura em Casablanca

Postado por Simão Pessoa

Por Rubem Braga

Devem estar lembrados os senhores de que duas mulheres me arrastaram para um bar, onde bebemos e fizemos uma grande despesa. Elas pagaram – e isso me deixou tão comovido, que me pus a cantar a Maselhesa com os olhos úmidos. A explicação sentimental da coisa era que estávamos no dia seguinte ao Dia da Vitória, e elas ainda não tinham festejado o fim da guerra com um brasileiro. Eis que nada era por mim; era por uma das Nações Unidas, o Brasil, que eu representava naquele botequim como o Sr. João Neves e outros representam agora na Europa.

– A outro bar! – gritei eu. – A outro bar! – Sim, eu queria retribuir aquelas gentilezas que atingiam a minha Pátria através de minha garganta; pois o brasileiro é assim, sentimental e generoso; e se o brasileiro é assim, este aqui então nem se fala. Estava disposto a gastar todo o meu dinheiro com aquelas senhoras, especialmente de dentinho acavalado. Lembro-me de um bêbado de minha terra, que dizia:

– No dia em que eu tirar vinte contos na loteria não fica uma mulher pobre nesse Cachoeiro!

Nunca tirou; ainda há mulheres pobres, o que é pena. Mas a senhora do dentinho acavalado me fez saber que era enfermeira voluntária de um hospital aliado; e estava na hora de entrar em serviço. Sairia somente pelas cinco e mela da manhã. Depois de muitos debates (confesso, com ligeira vergonha, que tentei demovê-la do cumprimento de seu dever) ela me pediu o telefone do hotel. Chamaria pelas cinco e meia e iríamos, num carro puxado por um cavalo branco, visitar o palácio do Sultão. Disse que a madrugada em Casablanca é linda em maio; conduziu-me carinhosamente até uma rua mais perto do centro, orientou-me e abandonou-me.

Ah, pobre homem triste e bêbado numa cidade confusa, longe dos seus e de sua terra, sem um amigo, ao escurecer. Andei para um lado e outro, quase me atropelaram e eu murmurava de mim para mim coisas meigas e desoladas – em francês. Em mau francês; tão ruim que às vezes eu mesmo não entendia bem, o que aumentava minha confusão. Vi o anúncio luminoso de um barzinho e parti naquela direção como a pobre criança perdida no meio de um conto antigo, na escuridão, marcha no rumo de uma luzinha que vê lá longe.

O bar era estreito e ruidoso com muitas mulheres e oficiais; mas havia a um canto uma pequena mesa vazia, e me sentei. Deus sabe por que pedi champanhe. Era, segundo creio, de Argel; mas naquela altura dos acontecimentos, poderia ser licor de cacau que eu não notaria a diferença. Fiquei por ali a erguer brindes imaginários, pensando coisas, vendo as pessoas que conversavam, discutiam e riam dentro do botequim.

Havia um piano, e alguém tocava. Insensivelmente, comecei a acompanhar a música, batendo com os dedos na mesa; e de súbito levei um susto e ergui a cabeça. Era o Tico-Tico no Fubá – e a pianista tocava olhando para mim e sorrindo. Em menos de meio segundo, eu a havia baldeado para a mesa e quinze minutos depois ela já fazia uma ideia razoável do que significa tico-tico no fubá.

Como não sei como é tico-tico nem como é fubá em francês, minha explicação foi um pouco longa, e ajudada pelos gestos que eu fazia com os dedos sobre a mesa tentando imitar o gentil passarinho no ato de bicar o fubá. Partimos daí para outras conversas; ela voltou ao piano para tocar outra música brasileira que resultou ser cubana, mas nem por isso deixou de me comover, pois era tocada para mim, e logo mandei arriar outra champanhe.

Neste ponto, tenham santa paciência, eu me detenho. Não contarei o caso do americano bêbado que queria brigar com o francês, em cujo caso tive uma intervenção bilíngue; nem como me retirei sem conseguir pagar a conta, que a pianista disse que ela pagaria porque assim seria mais barato 35 por cento, mas me daria oportunidade aquela noite mesmo de comprar outras bebidas que beberíamos com outra senhorita e um oficial ruivo que tinha um jipe que nos levaria não sei onde; sendo que eu deveria estar na porta do bar à hora de sua saída, ao que afiancei que estaria como pão quente. Paremos por aqui.

A versão de Joel Silveira sobre meu encontro com Ingrid Bergman no Coq d’Or vale tanto quanto a do Egídio Squeff sobre os perigos que corri nas mãos de uma suposta espiã que se dizia tcheca, embora seja verdade que na confusão dos tempos guerra há mulheres que se fazem passar por espiãs para atrair os incautos. A mistura dessas duas histórias tem dado lugar a uma grande confusão ainda mais quando combinada com o passeio no carro puxado por cavalo branco, pela madrugada. Sou um homem de certa idade, e tenho visto coisas. Algumas aconteceram comigo, porém poucas. Calarei. Além do mais a Suécia era um país neutro.

(Setembro, 1946)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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