Verso & Prosa

Verissimo antológico

Postado por Simão Pessoa

Por Milton Hatoum

Quando a realidade é abalada por várias formas de violência e por todo tipo de desvio ético, as artes e a literatura nos ajudam a mitigar o abatimento, a impotência, talvez a desesperança. Para sair da lassidão, passei ótimos momentos na companhia de Luis Fernando Verissimo Antológico – Meio Século de Crônicas, ou Coisa Parecida (Objetiva). Reli, nesta edição caprichada, várias crônicas publicadas na imprensa e em livros, e li outras pela primeira vez.

Em textos breves Verissimo é capaz de armar uma trama, construir bons personagens e dar coerência a assuntos heterogêneos, e mesmo díspares. A linguagem meticulosa e exata desse mestre da síntese aponta para algo grande. Outra singularidade é a combinação de humor e ironia, que resulta numa expressão cômica, sempre crítica, sutil e inteligente. Os assuntos explorados pelo narrador – um caso trivial ou um tema elevado – nunca perdem um ar de naturalidade, que, no entanto, é apenas aparente.

Não são poucos os contos em que o leitor é atraído por uma atmosfera de suspense, até se surpreender com as viravoltas do enredo, como se lê em O Crime da Rua Tal, A Mancha e O Caso dos Três Pimentas. Neste último, narrado por um amigo de um detetive homossexual, é notável a articulação da política – durante e depois da ditadura – com diferentes camadas sociais de Porto Alegre.

Nesse sofisticado relato policial, o detetive e o amigo dele (e o leitor) são conduzidos ao imbróglio numa família rica, mas decadente, cuja matriarca move e manipula as peças de um jogo insidioso.

Outro jogo – dessa vez mais intelectualizado – é o assunto da crônica Borgianas. Nela, o narrador e Jorge Luis Borges jogam uma partida de xadrez e conversam sobre alguns temas do escritor argentino: o tempo, o espelho, os tigres, a literatura e, claro, a biblioteca. No fundo, Verissimo glosa, com humor, um dos grandes poemas de Borges: Xadrez, em que a disputa de peças com cores que se odeiam alude à guerra, “cujo anfiteatro é hoje toda a terra”.

É sempre um prazer – com ou sem desgraça pandêmica, política, social, econômica e cultural – reler O Olhar da Truta, Robespierre e Seu Executor, O Expert, Rio Acima, Borboletas, Sozinhos, Náufragos, Os Crus e os Podres… Parece que todos os seres, coisas e situações narrados nesses textos dão a volta ao mundo: este mundo bárbaro, em mais de um sentido.

A leitura dessa antologia foi, para mim, um remanso na loucura. É possível pedir algo mais verdadeiro a Verissimo?

(*) Milton Hatoum é escritor e arquiteto, autor de Dois Irmãos e Cinzas do Norte

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment