Boemia

A aposta no butiquim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Tem uma hora no butiquim que é batata: quem vai pagar o cafezinho? Aquele tomado em pé, no balcão, no cantinho, onde dá para encostar a sola do sapato no azul do azulejo, pegando no açucareiro e no adoçante de última categoria. A máquina quente uma pantera esculpida no chapéu do alumínio, o pano de prato úmido passando no mármore e está combinado: vamos ao jogo.

Aparece o motorista de madame. Depois, um eletricista e o porteiro do prédio ao lado. Fazem uma barreirinha, um cercadinho como se alguém fosse mijar, e começar quase entreouvidos a famosa porrinha.

Preciso fazer um traçado porque pode o amigo achar que a ladainha de hoje seja fofoca de butiquim, mas é que quando começa a porrinha (ou palitinho), os malandros estão todos falando baixo – um olho na mão, o outro na redondeza vez por outra; um olho na mão, o outro na vizinha maravilhosa, uma afilhada da região, que viu crescer, coisa e tal, mas tudo na educação – três como vier, lona, os dois da tua mão, tudo, e vai por aí.

D e repente, cansado de queimar os beiços, o primeiro malandro pede um chope, mas avisa que esse é por fora, o que está valendo é o cafezinho.

De maneira nenhuma, responde o motorista de madame, desligando o celular.

– Traz três chopes e quem perder paga o cafezinho e os chopes.

Aposta fechada, o porteiro aceita a gelada, mas tem que ter uma “da roça”, uma branquinha para forrar o fígado (onde é que já se viu?) e uma fatia de queijo prato, só uma.

– Três como vier, os teus dois e mais dois da mão dele, lona, tudo e quem perder não paga o tira-gosto, emenda o eletricista, pedindo para guardar a maleta no caixa. Meio salaminho, queijo prato e um pãozinho fatiado.

É meu amigo, nessa hora não tem filho no colégio, mulher presa no elevador, mau contato no ventilador de teto, nada.

A tarde começa a cair e com ela caem também o cheque pré-datado, a rifa de TV tantas polegadas, um jogo de ferramentas e o escambau.

O sussurro do início pediu a conta faz tempo, o gerente está gritando que é a última vez que tem jogo nesta casa, os três têm certeza de que alguém está roubando, o síndico veio tomar satisfação e “três como vier, dois na tua mão, tudo ou nada, que eu não vou ficar no prejuízo”.

É isso aí, meu compadre, porrinha que se preza sempre acaba com gosto de dúvida, feito futebol em mesa de entendido: “Fulano foi reserva na Copa de 70, aposto o que quiser!”

Papo reto com Luiz Carlos da Vila

Falar do Luiz daria um livro. Já viajamos juntos em shows pelo Nordeste, colecionando histórias carinhosas. Sambista consagrado, tem como eu uma relação próxima com os butiquins mais vagabundos. É dele uma obra de arte da música brasileira: O show tem que continuar. Entre as nossas parcerias, tenho orgulho de Benza, Deus ter dado título a um CD que ele acaba de lançar.

Você se considera bom de porrinha?

Eu até já joguei muito quando estudava no Colégio Cristo Rei, em Vaz Lobo, mas eu não sou bom de jogo, não. Tanto que eu sou Botafogo.

Você já foi visto à tarde, numa dessas rodas no balcão do butiquim, apostando cafezinho?

Já fui mesmo disso, inclusive tem um episódio nas bodas de prata dos meus pais… O que rolou foi que nessa data apareceram o Jorge Aragão, já estourado com “Vou Festejar”, e o Ubirany, do Fundo de quintal, grande sujeito que levou esse povo lá em casa. Estava a Beth Carvalho também e, no final, tudo acabou na padaria do Nelson, que existia na Vila da Penha. Todo mundo num jogo de porrinha.

E você vem mais de lona ou sempre cheio?

Eu adoro esses jargões e por isso venho sempre de lona, até porque você só tem a ganhar, já que alguém vai por algum na frente.

Prefere moedinha a palitinho? Ou tem seu próprio material?

Eu prefiro moeda. O palito pode quebrar e virar dois – aí só pode embaralhar o jogo.

Que sensação dá em você quando o homem perde até as calças numa rodada sem sorte?

Essa é a parte ruim do jogo. Jogar pra perder as cuecas é muito ruim até pra quem ganhou.

Você acredita que existe um dia de sorte, aquele em que já se parte para cima pedindo tudo de cara?

Eu acredito muito na intuição, sinceramente. Portanto, pra mim existe mesmo esse dia de sorte. Vou contar outro episódio. Um dia, eu tava no Cacique de Ramos com o Ubirany, que dá muita sorte em jogo. Temos um amigo comum, o Gravatinha. Esse amigo tinha sido dono de firma, coisa e tal, e acabara de receber uma multa na empresa. Choroso, ele mostrou o papel pro Ubirany. Você acredita que ele jogou o milhar do documento e no dia seguinte deu pra pagar a multa e ainda sobrou pra muita cerveja?

Que aposta você não faria mesmo ganhando tudo?

Eu não aposto nunca na sorte, porque a sorte não te acompanha todo dia.

Conhece a lenda de que dinheiro de jogo não presta? O que dizer disso?

Eu tenho minhas superstições e acho que dinheiro de aposta é bom pra se aproveitar em coisas produtivas.

Já acertou algum milhar que te fez ficar de porre durante dias seguidos?

Quando eu ganhei na Vila Isabel, com “Kizomba”, foi por apostar na vitória do samba. É nisso que eu aposto todo dia.

E depois de beber? Tem alguma solução pra ressaca?

Eu curo mina ressaca indo pro samba. Quando a cabeça dói, samba!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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