Boemia

A turma do butiquim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Às vezes soa pejorativo, um abanar de desdém, quando se referem à turma:

– Ele fica ali com aquela turma do bar, um desocupado!

Mas sinceramente, é uma instituição necessária em qualquer birosca decente onde a família é respeitada, ninguém nota o decote da esposa, o desenvolvimento físico da filha, ou as porrancas que o pai toma quando é novamente expulso de casa.

Bar discreto, mas turma fiel, daquelas que organizam passeios a estâncias minerais ou, em datas religiosas, uma ida a Aparecida. Tem time de futebol uniformizado e conta com uma parede no estabelecimento em que são guardados pequenos troféus, medalhas de honra ao mérito, com a foto de quando a turma, todos juntos, pesava trezentos quilos a menos. Fazem churrasco, pedindo à “patroa” maionese e farofa para ninguém beber de estômago vazio, e escolhem no sorteio quem faz o molho à campanha; ruim de fazer, fácil de azedar.

A mesa tem quatro lados, a chapinha tem trinta dobras e a turma tem seus personagens. O chato fundamental que nunca se reconhece como tal; o aposentado que virou despachante de tanto quebra-galho pedido; o que só bebe; o que paga. O traído nunca se aproximou da mesa da diretoria, prefere amargar a vida na genebra (a bebida, não a cidade) e, no fim, lamentar, no canto perto do mictório, pela saudade implacável. O sempre engraçado, munido de piadas antigas, que nunca passou da segunda garrafa e ri sozinho sem notar o fastio de sua presença.

Cabe um segredo de batida: às vezes passam a vida sem conhecer a casa do amigo íntimo, apontam da porta do bar a direção para onde o amigo mora, mas desconhecem o número, o reduto; o cafofo, como se diz no subúrbio.

Voltando à mesa: conversa animada, um gaiato lembrou que o grande Ernesto, sujeito que sempre compareceu a qualquer evento sem nunca ter passado do limite, estava internado num hospital próximo, vítima de gota. Ácido úrico de tanto ingerir siri.

Comovidos, saíram a pé, contando esquinas para realizar a visita, quarto tal, sexto andar, e, em meia hora, estavam todos em volta da cama, saudando o enfermo. Até que fulano, o mais íntimo, reclamou do calor. Ensaiados, notaram a janela fechada e uma série irregular de pregos enormes lacrando de vez a única abertura, Ernesto, cabisbaixo, confessou ter ameaçado se suicidar com a comida insossa servida na véspera. A ordem foi do diretor: “Lacrem a janela!”

Fulano, indignado, procurou, então, o responsável por tamanha insensibilidade e voltou com um papel timbrado, no qual era solicitado que um responsável assumisse as consequências das atitudes de Ernesto durante a internação.

Em dois minutos, o quarto ficou às moscas. Nem deu tempo para despedidas. Sumiram todos. Ficou às moscas, as mesmas do meu butiquim preferido. Vamos às moscas.

Papo reto com Chico do Bracarense

A cidade do Rio de janeiro tem a carinhosa mania de eleger personalidades e sobre elas lançar mito, um mito saudável. O Chico é um garçom que, sorrindo, serve ao mesmo tempo todas as pessoas do mundo que querem beber. Trabalha no Bracarense, bar de chope maravilhoso e tira-gostos imbatíveis, onde costumeiramente atende a dois pedidos: mais bebidas na mesa e mais uma foto com outro visitante. Eu mesmo já tirei umas duas! A cada ano, os guias especializados o incluem na categoria de melhor garçom. Este Manual também o elege.

Você também é do Ceará, como todo bom garçom?

Sou de Crateús, cidade dos garçons.

Você já derrubou alguma bandeja em cima de algum figurão?

O povo é que me cutuca. Eu fico com a bandeja fazendo malabarismo pra não derrubar em alguém.

Se fosse pra você, tiraria o chope com muito ou com pouco colarinho?

Sempre com muito colarinho. Noto quando o freguês gosta do colarinho e penso: esse sabe beber! Tirador de chope só gosta de servir com muito colarinho. É um dom!

Já acordou de ressaca e seguiu pra outro bar achando que é lá que trabalha?

Uma vez, no Devassa. Fui fazer um extra por lá, mas bebi na véspera e acabei parando no Bracarense. Só depois é que me lembrei que tinha que preparar o salão. Mas cheguei a tempo.

Bom freguês é o que dá boa gorjeta ou aquele que não cospe quando fala?

Aqui no Bracarense tinha um sujeito que o cuspe chegava a descer do balcão pra rua. Eu não aguente e um dia chamei sua atenção. Até hoje ele me agradece e dá a orelha brincando que é pra eu puxar.

Você acha que toda turma tem sempre um chato de plantão?

Toda turma tem, fora os avulsos. Eu reconheço logo um chato, mas essa observação fica dentro de mim e até tenho mais paciência com ele.

Já aconteceu, por exemplo, de um cliente colocar uma mixaria no seu bolso pra que você esqueça de anotar a porção de pernil?

Nesses casos, eu faço um olhar do tipo: “Isso é suborno?” E o sujeito, sem graça, fala que é só um agrado. Nem assim eu aceito.

E o sujeito que fica gritando o seu nome de longe, todo íntimo, sendo que você nunca o viu mais gordo?

Tem dia aqui que é tanto turista querendo tirar foto comigo que eu chego a me esconder.

Algum freguês virou amigo, daqueles de um frequentar a casa do outro?

Ah, sim. O dono do trem do Corcovado me convida sempre para o seu revéillon. O Bacará, outro cliente, acabou sendo padrinho da minha filha.

Você daria alguma receita pra curar ressaca?

Não tem jeito, a receita é pedir outro chope.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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