Boemia

Conversando com Ailton Krenak

Ambientalista e escritor, Ailton Krenak é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro
Postado por Simão Pessoa

Por Carlos Alberto Almeida

Entro no avião procurando a cadeira 14, meu assento no corredor, e lá estava ele, junto à janela, um pouco encolhido, parecendo querer o anonimato. Era Ailton Krenak, aquele líder indígena elegante que discursou, emocionado, pintando a cara com tinta preta de jenipapo, na Constituinte de 1988. Corro o risco de uma abordagem no escuro, mas não resisti:

– Quer dizer que hoje terei a honra de viajar junto a Ailton Krenak!

Recebi um sorriso amistoso como resposta.

Na conversa preambular descubro que os Krenak são de Minas Gerais, e que Ailton, como eu, também mora longe de grandes centros urbanos, “… bem além de confins”, disse, rindo com o trocadilho.

– Uma vez fiz uma citação sobre você, quando um secretário de educação do Amazonas disse para uma plateia de meninas europeias que se pensavam que só iriam encontrar índios no Amazonas estavam enganadas, porque iriam descobrir que lá também existia gente bonita. Perguntei ao camarada, na primeira ocasião em que o encontrei, se ele achava índio gente feia, se ele já havia visto Ailton Krenak?… O sujeito perdeu a linha…

Ele riu.

Ailton falou da ocasião em que pintou o rosto na Constituinte, explicando que naquele tempo carregava muita revolta pelo desrespeito aos direitos de seu povo. Que era muito jovem, tinha apenas 32 anos de idade.

Ele demonstrou conhecer os povos e muita gente da intelectualidade engajada amazonense, citando muitas vezes o professor e antropólogo Paulo Monte, como homem dedicado à causa indígena e seu amigo dileto.

Contou que foi alfabetizado aos 18 anos, mas isso – deu a entender – foi como aprender uma outra língua, pois já tinha domínio da cultura de seu povo. Falou do paradoxal despreparo dos garotos civilizados que, estudando em “boas escolas”, exaurem a juventude sem preparo para viverem em seu próprio meio.

Falei do genocídio recente dos índios arredios dos afluentes do Purus, ocorrido nos anos 70, quando madeireiros faziam a “limpeza da área”, porque os índios os flechavam tentando defender seus territórios. Os madeireiros matavam os índios e empalavam os corpos em estacas no fundo dos igarapés para sumirem as evidências.

Disse do manejo que os paumarís estão fazendo com pirarucu, no rio Tapauá. Falei de um livro perdido, “Cuxiuara, o purus dos indígenas”, que um amigo de meu pai escreveu. Falei do massacre da Família do Totinha no seringal Vista do Tapauá, nos idos de 1960, quando apurinãs mal orientados pelo seu pajé Ponciano, acharam que Totinha havia feito mandinga para eles pegarem aquela gripe tão forte e fatal para muitos deles.

Lembrei de notícia dos apurinãs capturados e trazidos a Manaus em porões, bebendo água do fundo do barco. E da espetacular maneira como teriam voltado para o médio Purus, depois de soltos pelo SPI, em ubás feitas com toras de madeira cortadas no lago do Puraquequara.

Ailton falou de Hans Staden, do diálogo com Cunhambebe, onde o índio questionado pelo armeiro alemão sobre comer carne humana, respondeu “Eu sou uma onça!”. E concluiu:

– Carlos, essa noção de humanidade é recente na trajetória do homem, toda estrutura civilizatória que nos cerca é uma construção cultural, realidade relativa.

Assim, contou que quando Orlando Villas Boas andava pelo Xingu, tinha um índio “chapinha dele” que um dia levou até a base de Cachimbo, em um avião do CAN (Correio Aéreo Nacional). Numa outra ocasião, Orlando ausente, o indiozinho entrou no avião e o comandante, lá pelas tantas, perguntou se ele estava gostando do voo. “E nós estamos voando?!”, reagiu. “Sim, estamos”. O índio desesperou-se e precisou ser contido à força. Quando voltou ao Xingu foi ao Oxim que lhe disse: “Você fez uma coisa muito perigosa!” O indiozinho nunca mais quis saber de avião.

Ailton completou:

– Galinha que anda com pato morre afogada.

Contei que um dia, dando aula na Faculdade de Direito, ao criticar a postura dos salesianos nas missões do alto Rio Negro, um aluno fez ponderações contrárias e eu falei das “meninas da escola doméstica” que eram escravas das freiras do Patronato Santa Terezinha, em Manaus, falei do Museu do Índio, neste mesmo colégio, onde estão instrumentos mágicos, flautas, tambores, arte plumária sagrada de gente maku, aruak, tukano e outros povos do Rio Negro. Na aula seguinte, o aluno, que era um padre salesiano, me levou um belíssimo livro ilustrado com fotos, sobre a vida dos ianomâmis, do qual eu lembro de memória uma máxima daquele povo, “quando desaparecer o último pajé, o universo acaba”.

Em 2006, eu e minha filha Tatiana estávamos jogados no aeroporto de Manaus, naquele famoso caos aéreo resultante do overbooking, quando vi Gilberto Mestrinho, então senador da República, também bastante enfadado de esperar ser chamado para ir a Brasília.

– Quem tiver a sorte de viajar ao lado desse camarada pode ter uma experiência única – avisei.

A minha filha foi sorteada e o boto tucuxi conversou de maneira aberta e franca com ela durante toda a viagem.

Contei isso a Ailton. Ele disse que havia tido agora essa mesma sorte, mas a sorte, na realidade, foi minha.

 

Carlos Alberto Almeida é professor universitário e Procurador do Ministério Público de Contas do Estado

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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