Por Rafael Galvão
A única coisa mais chata que essa nova subcultura “gourmet” é reclamar dela, admito. Mas eu não tenho problemas em ser chato, e é quase impossível controlar minha profunda antipatia a essa moda, quase tão irritante quanto ver alguém chamar um gato ou cachorro de “serumaninho” ou “filhinho”. Uma porra de um gato.
Cresci achando que “gourmet” era substantivo. Transformá-lo em adjetivo, tascar um “gourmet” depois de qualquer palavra — “hambúrguer gourmet”, “self-service gourmet”, “podrão da esquina gourmet” — é, para mim, apenas garantia de comida pretensiosa com ágio excessivo, nada mais que isso. Ninguém jamais viu um “El Bulli Gourmet”, ou um “Ducasse Gourmet”. Eu poderia encerrar meus argumentos aí. E encerro, porque o que vem a seguir é basicamente a eterna arenga de um velho cansado da estupidez que tem virado a norma nos dias de hoje.
Essa coisa de gourmet é, em essência, contraditória: é profundamente antidemocrática, mas é também resultado de uma certa democratização. A princípio, me parece a convergência de dois fatores curiosos. Um é a proliferação do cursos superiores de gastronomia, que fez com que um bocado de gente sem talento real para a coisa, como sói acontecer em qualquer profissão (e eu sou a prova viva disso), precise ganhar a vida de maneira digna, que pelo menos pague os dinheiros gastos nos anos de curso — embora, sem querer desmerecer ninguém, mas pouco me lixando se desmereço, parece desaforo alguém passar anos estudando técnicas gastronômicas para depois ganhar a vida como pouco mais que chapeiro de luxo. O outro, e certamente o mais importante, é a necessidade de uma sociedade perdida no labirinto de um interminável fin de siécle, cujo hedonismo crescente nunca deixa de me espantar, de se diferenciar individualmente através do que tem ou daquilo a que aspira ter. Comer todo mundo come; mas só uns poucos comem diferente, porque podem pagar mais por isso — e esse pagar é a garantia de superioridade da bobagem que estão comendo, da “experiência”.
Obviamente eu não posso fazer nada quanto a esse estado de coisas. É inútil e uma implicância extremamente pessoal. Junto minha antipatia àqueles que não gostam de, sei lá, Beatles ou suco de mangaba: reclamar é ainda mais chato, e no fundo não interessa a ninguém, ou pelo menos não interessava antes que virasse moda doirar a própria vida medíocre no Facebook ou no Instagram: o idílio com o marido que trai você, a viagem cuja foto no Instagram esconde a bolsinha da CVC, o filho horroroso que você diz ser lindo (você quer acreditar nos comentários, uma sucessão de lindo lindo lindo, sem maiúsculas nem pontos; saiba que eles estão mentindo) — tudo isso está umbilicalmente ligado a essa coisa de gourmetização.
O que posso fazer é me recusar, por princípio, a fazer algumas coisas.
Eu não como hambúrguer gourmet, ponto. Não como porque a ideia de hambúrguer gourmet é um contrassenso para mim, uma confissão abjeta de uma civilização em processo acelerado de decadência. O hambúrguer foi inventado para tornar mais palatável e macia uma carne dura mas saborosa, e é coisa para ser combinada de maneira rápida e simples, o que na prática é antitético à a ideia de comer realmente bem, que pressupõe uma elaboração e riqueza de sabores impossível de ser alcançada por aquela mistura de pão, carne e otras cositas más em uma mordida só.
É uma razão diferente da que me faz não comer macarrão na rua — eu faço melhor, quase sempre —, e diferente também daquela que me faz olhar com reservas esse pessoal que tenta reinventar a comida do cotidiano, aquela comida entrincheirada na cultura e tradição de um povo e feita de maneira simples, quase automática, por quem não precisa sobrevalorizar o que faz com aquela conversa intragável e canalha de que “cozinhar é um ato de amor”. Por exemplo, há poucas coisas mais gostosas que sarapatel, do jeito que é feito. Inventar sobre isso é chover no molhado, e o resultado por ser justamente o contrário do que se pretendia.
Claro que em tese — embora eu duvide muito— seria possível fazer isso, reduzir o sarapatel à sua eventual essência (para entender melhor o que quero dizer, é só lembrar da ratatouille servida ao crítico gastronômico no desenho homônimo). Mas para isso é preciso um talento que as pessoas, em sua virtualmente absoluta totalidade, não têm. O resultado é garam masala na rabada.
Eu já vi hambúrguer de filé mignon, e custei a acreditar no que via. Porque o filé não é, nem de longe, a carne mais saborosa de um pobre boi. É a mais macia, apenas, e por isso os franceses inventaram tantos molhos para acompanhá-la. Um hambúrguer de filé mignon é uma confissão de estupidez como poucas outras no mundo culinário. Maior só aquele infeliz que colocou pó de ouro em seus pratos, um sujeito que certamente merece os mais dantescos castigos que o inferno pode oferecer.
Da mesma forma, acho tão estranho essa mania de “degustar” cerveja cara. O sujeito compra uma cerveja de 50 reais, 300 ml apenas. Não. Está errado. Que me desculpem os aficcionados, mas isso é um desrespeito à cerveja, à sua história e à sua finalidade.
Cerveja é bebida de quantidade. É bebida social, feita para beber em grupo, em grandes quantidades. Você fica bêbado com uma cerveja? Se não, não vale a pena empurrar 60 reais numa cerveja artesanal feita por monges trapistas em Connard de Poche-Pleine, só porque é a última explosão da moda. Se vai me dizer que bebe apenas pelo gosto — por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado. Mais degradante que isso, só cerveja sem álcool.
Mas a cultura gourmet faz você sentir que precisa comprar coisas caras, singulares — mesmo que você precise fingir não perceber o paradoxo da singularidade na cultura de massa. Mais que isso, é a disposição em ser roubado que me incomoda. Tem pouca coisa como uma Guinness tirada na hora, ou uma Urquell preparando o seu apetite para seu joelho de porco que vem chegando. Não porque são boas, exatamente, mas porque são baratas em seus respectivos buracos. E no entanto as pessoas se esforçam para mostrar que estão bebendo uma cerveja cara. Estão se esforçando para serem otários.
Acontece algo semelhante com o vinho. Eu gosto muito de vinho. Muito, mesmo. Bebo mais que a média brasileira, o que não é grande coisa: no Brasil se bebe dois litros de vinho por cabeça ao ano, enquanto os padres do Vaticano bebem mais de 54 — embora não se saiba quanto disso é destinado a embebedar garotinhos inocentes. O desnível é muito maior porque a lista brasileira provavelmente inclui clássicos imorredouros como Dom Bosco, Canção e Sangue de Boi; se se restringir a vinhos minimamente decentes deve dar menos de uma garrafa por pessoa, e posso apostar que o grande campeão é aquele Reservado Concha y Toro — contra o qual, a propósito, eu não tenho nada. Só para comparar, cada brasileiro bebe 82 litros de cerveja por ano.
Eu bebia mais que os padres do Vaticano, e olha que nem gosto de menininhos. E sei que com 50 reais você compra uma garrafa de um vinho honesto, e com uns 100 compra um bem decente, naqueles dias em que você se sente muito rico. É o bastante para mim. Ainda é caro, e pode ser ainda mais — aqui você compra por 800 reais um bom Brunello di Montalcino que sai lá fora por uns 50 euros —, mas é o mercado, fazer o quê. No limite, não nego que se tivesse dinheiro eu seria capaz, uma vez na vida, de derramar 4 mil euros num Chateau Pétrus — se 4 mil euros equivalessem a uns 200 reais para mim —, apenas para saber por que é tão caro. Mas jamais, jamais, jamais jogaria fora 20 mil euros para comprar um Romanée-Conti, porque não acredito que alguém tenha papilas suficiente no diacho da boca para sentir a diferença desses 15 mil tostões. A cultura gourmet, no entanto, é a eterna busca pelo Romanée-Conti, e cada um vai se contentando com o mais próximo a que pode chegar dele, uma proximidade medida em reais.
É isso que essa conversa de “gourmet” significa para mim. É apenas um desvirtuamento do que significa prazer, comer e beber bem. Comida tem apenas duas funções reais: encher a barriga e, se possível, dar algum prazer sensorial. Vinho também, com o prazer sensorial tomando a dianteira. Mas a cultura gourmet os eleva acima disso, e por isso, para esse pessoal, qualquer chianti de 400 reais é por definição melhor que um portuga de 60, não interessa quais sejam.
É isso. Agora que as definições mudaram, que gourmet deixou de ser um sujeito que gosta de comer bem e variadamente, a palavra para mim passou a definir algo diferente: aquele sujeito mais interessado em espalhar aos quatro ventos que dormiu com uma mulher do que em fazer safadeza com ela.