Boemia

Iniciando os Trabalhos

Postado por Simão Pessoa

Por Jaguar

Este livro não é um guia convencional, muito pelo contrário, cheguei a pensar em nem dar endereços, mas aí é sacanagem dando trabalho ao leitor porventura interessado em algum dos bares citados. Sem cotação ou ranking falo de lugares por onde andei na base do samba do Zé Kéti: “em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro”. Grifo: por botequim entenda-se desde um pé-sujo como o Bunda de Fora até o sofisticado Esch Café, onde tenho uma garrafa cativa.

São lembranças – até onde um cara que tem amnésia alcoólica consegue lembrar – de coisas e de conversas jogadas fora (na verdade as únicas que me interessam em torno de rodelas de chope, copos e garrafas, que sempre balizaram minha vida desde anos tão verdes quanto o licor de menta de Clementina de Jesus).

A coisa começou quando Millôr Fernandes sugeriu reunir em livro uma seção intitulada “Conversa de Botequim”, que fiz durante algum tempo num saudoso matutino.

Adicionei escritos que têm a ver com bebidas espirituosas e bêbados às vezes nem tanto. Salpiquei com alguns cartuns a propósito, publicados, quase todos, na revista Drink.

Espero que o coquetel desça redondo e no dia seguinte não vos dê ressaca.

Braseiro da Gávea

Já foi açougue, boteco e bazar. Agora é parte do complexo do Baixo Gávea. Durante o dia pode ser enquadrado na categoria boteco-família, com uma varanda aprazível, onde se pode comer um honesto PF – carne assada com batata, arroz e feijão, bife à milanesa com salada de batatas e arroz ou carnê à mineira a preço pra lá de razoável. Se achar muito barato, peça uma bagaceira Neto Costa, portuguesa com certeza, que sua despesa dobra.

As porções dão para alimentar dois famintos e ainda sobra.

Caso alguém duvide, uma imodesta tabuleta pendurada na parede garante: “nós somos os reis da picanha”. E não se fala mais no assunto.

À noite o cenário continua o mesmo, mas o elenco muda radicalmente, com várias tribos se acotovelando nas mesas e transbordando para as calçadas e a rua entre o Braseiro e o Hipódromo, para alegria dos ambulantes que faturam vendendo latas de cervejas aos sem-mesa. A muvuca rolava até altas horas até que um subprefeitinho ouviu os protestos de mal-amadas e generais de pijama e mandou fechar tudo à uma hora da manhã.

Com vários teatros na área (a Casa da Gávea fica em cima do Braseiro), os artistas pululavam, era só levar o caderno de autógrafos que Paulo Betti, Cláudia Ohana, Cissa Guimarães, Regina Casé, Alceu Valença, Guilherme Fontes e Luís Melodia eram figurinhas fáceis nas noites de embalo no Baixo: agora devem ter debandado para paragens menos regulamentadas, como a Cobal do Leblon, fora da jurisdição municipal.

Depois de cassar e caçar os fumantes, a fúria dos governantes se volta para os que gostam de tomar uma cervejinha com Steinhager e um Underberg para rebater, sem serem aporrinhados.

Tá feia a coisa pra nós, da turma do funil, neste começo de século.

Em São Paulo o falecido Pitta, dando uma de aiatolá, obrigou os bares e fecharem as portas à uma da madrugada. Caceta, a única coisa que curtia em São Paulo era a vida noturna.

Não consigo imaginar os botecos do Bexiga fechando na hora em que os profissionais vão chegando. Os amadores, depois da terceira dose, apagam e aprontam confusão. E vão, aos troncos e barrancos, dormir cedo não sem antes dar uma porrada na mulher e um chute no cachorro. Já os profissionais ficam o resto da noite bebendo e falando as abobrinhas metafísicas dos biriteiros.

Quando a gente pensa na cara insípida do Pitta, ainda dá pra entender.

Mas quando o nosso rubicundo e jovial ex-alcaide, que tem o physique de rolê de quem é bom de copo e de garfo, enveredou pelo mesmo caminho do colega paulistano, pra assustar. Primeiro mandou fechar cedo os bares do Baixo Gávea, depois proibiu a venda de latas de cerveja nas lojas dos postos de gasolina. E o atual – o prefeito factoide – vai pelo mesmo caminho.

Fala-se até em fechar os bares nas proximidades do Maracanã. Os rumores abundam e são alarmantes: a medida seria estendida a toda a cidade, coisa que nem durante a ditadura se cogitou. Consta que querem acabar até com uma tradição carioca, a dos vizinhos se reunirem em torno de um churrasco com cervejota na calçada. Qual é a deles? Apaulistar o Rio?

Por outro lado a Prefeitura patrocina o Rio Botequim, um simpático guia dos botecos do Rio. O prefácio da edição de 98 é do próprio Conde: “os cariocas curtem o botequim, que transformaram em verdadeira instituição”, escreveu, com carradas de razão.

Mal comparando, parece coisa de Dr. Jekill e Mister Hyde.

Se continuar reprimindo aqueles que, como disse também no prefácio, “gostam de jogar conversa fora, de preferência com um copo na mão”, muitos dos bares citados no guia vão falir.

Dá pra entender? Faz lembrar aquela marchinha de carnaval: “nós é que bebemos e eles que ficam que ficam tontos”. Por que não aproveitam esse frenesi persecutório e proíbem celulares e televisão – invasiva poluição sonora – em bares e restaurantes?

Braseiro da Gávea. Praça Santos Dumont, 116. Tel. 239-7494

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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